28 de mai. de 2011

Crônica Artificial 0.4


Na Colônia Circular

P. e F. voltavam da roça de cânhamo pelo estradão de terra batida: ao longo do caminho, hortas de cana, coca e café se alternavam em roçados pequenos, separadas por cercas de arame farpado ou eletrificadas: por detrás das folhas, o céu claro e sangüíneo do fim de tarde ia escurecendo.

            A estrada terminava num trevo e se abria para um pasto minúsculo, abarrotado de bois brancos que tinham de se escorar uns nos outros pra dormir: P. e F. pararam um instante na intersecção do T pra ajeitar as tralhas que traziam num carrinho de mão: à esquerda, o caminho era de terra até onde a vista alcançasse, iluminado aqui e ali por lâmpadas de vapor de sódio: já à direita, depois de um pouco de cascalho, iniciava uma via pavimentada em ascendência, iluminada por postes cromados, de intensa luz branca: no entanto apenas alguns metros de estrada eram visíveis dali: o resto se escondia atrás do elevado, ladeira abaixo.

            F. procurou alguma coisa entre os objetos e tirou de lá um pedaço de fumo de corda: sentando-se à esquerda da encruzilhada, sob um dos postes de luz avermelhada, ele puxou o canivete do cinto e picou um punhado de fumo dentro de uma palha de milho: P. deu dois passos para a direita e cruzou os braços, apoiando-se de pé sob o poste de luz branca:

- Pô, pai, mas vai pitar de novo? Tá com bobeira depois de velho é: isso mata. – disse P. aborrecido. F. fingiu não escutar e continuou enrolando o cigarro. Na seqüência riscou um fósforo, acendeu-o e foi pro meio do trevo: olhou pra direita, pra esquerda, e finalmente pro pasto dos nelores sonolentos: naquele rumo, no céu descoberto, faiscava uma estrela vermelha, que era Marte: os olhos de F. se encheram d’água e ele apontou pro planeta com o cigarro, voltando-se para o filho:

- Imagina que legal se a gente tivesse um telescópio, hein. Dava pra ver a Colônia Circular...

P. suspirou e se afastou do poste, unindo-se ao pai no centro do trevo:

- E não é por isso que a gente sofre no eito aqui embaixo? Pela nossa Casa?- continuou F.- Pode anotar aí: um dia, o que há de mais refinado na nossa linhagem vai ser mandado em embrião pra lá, eu tenho fé... Não digo que vá ser o meu Y, nem o seu né... Mas um dia, se a gente continuar lutando pela nossa Casa, se fazer o capital certo... Nosso povo vai viver na Colônia Circular e depois, terminando a terraformagem, no Mundo Novo, Novo Mundo da Igualdade: MNNMI...
 
            F. parou de falar com a voz embargada: P. olhou para a estrela e seu rosto se anuviou, baixando as sobrancelhas:

- Não sei não, esse lugar aí... - disse P.
- Ué, é uma utopia em movimento: eu não sou tonto, sei separar o trigo do joio, nasci ontem? Mas a Colônia é o lugar onde não se compra nem vende nada nem ninguém, nunca! Todo mundo é igual e trabalha sua cota pelo todo, não por dinheiro: e mesmo as mulheres (que lá andam sem camisa e de cabeça raspada!) não sabem o que é parir filho: os meninos vêm do espaço e são criados por todos! Sem apego! Sem violência!
-...
- Ôba... – disse uma voz alguns metros dali: surgindo do elevado, na estrada pavimentada, descia um homem troncudo, de estatura mediana, vestindo uma camiseta branca de campanha política, calças beges e alpercatas: ele se aproximou dos dois de nariz erguido e peito estufado: parecia estar ao relento já há alguns dias, e os encarava com os olhos em brasa. Dando o ombro para P., ele se aproximou bastante dos dois e, voltando-se para F., começou com autoridade:

- Primeiramente, boa noite. Deus abençoe o senhor e seu filho aí... A verdade é que eu acabei de sair da Colônia Penal de aqui de Curralinho e tô precisando pegar um ônibus pra minha cidade. Será que você não podia me ajudar com...
- Sinto muito, amigo, tô vindo da roça e não tenho nada de dinheiro comigo. – cortou F. com rispidez. Nesse meio tempo baforou a fumaça do cigarro duas vezes no espaço entre o desconhecido e o filho:

- Pode ser qualquer coisa: como eu tava explicando pro senhor, assinei o 157 tem dois anos atrás: cumpri o que eu devia, e agora tô tentando voltar...
- Mas não tenho nada aqui, bicho, que cê quer que eu faça?
- O senhor não teria um cigarro?
- Esse aqui eu mesmo enrolei.
- E não tem dos de maço nessa sua carriola aí? Ou diamba...
- Tem não, quer ver? - dizendo isso se voltou para o carrinho com as ferramentas e sacou de lá um facão metido numa bainha de couro: ele apontou o objeto para o rosto do desconhecido e depois deixou a ponta cair, mostrando-o na vertical:
-Viu? Só o de a gente trabalha. – e continuou segurando o facão pelo cabo.
-Tá certo, senhor. Deus lhe pague aí. Tô tentando é voltar pra minha cidade, né. Pro rancho da minha véia.
-Mas se cê saiu da penal de Curralinho por que é que tá vindo pra esse lado? A rodoviária é pra lá. – disse F. apontando o caminho com o facão. O sujeito concordou com um aceno de cabeça e voltou por onde tinha vindo, sumindo no horizonte da ladeira.

- Vâmo dá um tempo aqui.- disse F.
- Maluco folgado...
-...

            Passados alguns minutos os dois juntaram as coisas e seguiram pelo estradão de terra com seus focos de luz cor de cobre. Lá pelas tantas P. pigarreou e perguntou ao pai:

- O senhor não chegou a ler os testemunhos da Colônia Circular que vazaram na net, né. A Administração tá negando tudo: lógico.
-...
- Diz que tá muito difícil por lá, estourando umas greves...: parece que um grupo de XY que representa a Administração não quer saber de trabalhar: e quem forma com eles sobrecarrega os outros... Andaram estuprando umas pessoas... Diz que as XX têm de se passar por XY pra escapar do assédio! Elas até ensaiaram um movimento sindical, ou algo assim, mas foram reprimidas por uma milícia de XX organizada pela Administração...
-...
-Fora que não é muito bom viver ali também, não: todo mundo só tem um leito pra dormir e a roupa do corpo. O acesso a computador é vigiado, conteúdo censurado... Muita gente passa por uma castração química...
-... E quem disse que isso é verdade? Você sabe quanto tempo demora pra informação chegar aqui? Quanto tempo viaja a luz de uma estrela? O que tem mesmo é muita gente que não quer que esse país dê certo, povo nazista!
-...

            Passados alguns minutos F. começou a procurar algo nos bolsos e tirou de lá uma cartela de N.:
- Tá com enxaqueca?
- Vai vir: eu senti a pontada.
- É por causa do cigarro.
- Eu sei. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário