11 de jun. de 2011

Crônica Artificial 0.5



Crônica Artificial 0.5


A Coluna P.

            Os XY R., M. e R. faziam parte do Grupo de Atiradores de Precisão da famigerada Coluna P., que cruzava o sertão da província de G. a caça de dinamarqueses. Os três formavam o destacamento voluntário que devia verificar um sítio abandonado nos arredores do acampamento: eles seguiam por uma vereda batida numa formação em V, com o primeiro-tenente M. no ângulo central: em torno deles, até onde a vista alcançasse, havia um descampado plano e sem árvores. No céu, torreões de nuvens negras dividiam espaço sob o sol a pino com um nauseante fundo azul.

            O grupo vestia uniformes idênticos, com calças de lona, coturnos de cano médio, camisas caqui com grandes botões pretos e um pequeno barrete quadrangular (espécie de boné sem viseira), além de um cinto discreto com compartimentos: levavam, a tiracolo, um fuzil neo-Mauser 1895, com 1,25m de comprimento; mais um bornal de pano com alças.

            À direita deles havia uma cadeia de morros de pedra, ladeada por um bosque de buritis: a formação voltou-se pra aquela direção, e foi se aproximando do buritizal que terminava junto do elevado de rocha. Nesse instante, M. ergueu o braço para os companheiros que o seguiam e cerrou o punho. Pararam:

- E aí, Rô, tá farejando algum alemão aí?

R. ajeitou os óculos e ergueu o nariz contra o paredão e as árvores, inspirando algumas vezes.

- Negativo Mau. Mas acho que tem jaguar aí... e um bicho morto.
-E você, Rafa, viu alguma coisa?- perguntou M. pro cara mais alto, que estava pingando colírio nos olhos.
- Pêra lá... Vi nada não, Gargamau. Só esse jaguar do Rosto, que tá mais pra jaguatirica ou gato-açu.
- Eu disse jaguar porque o bicho morto não é pequeno, não. Acho até que é cavalo. Gato-açu não mata cavalo.
- Não? E se ele tivesse doente? Ou ela pode estar comendo a carniça do bicho, não sei... Sertão é sem jeito...
- Deixa isso quieto: se não for bandeira da Dinamarca ou cheiro de chucrute, pra gente não interessa... - disse M. retomando a marcha e contornando o final do paredão: RO. (olfato) e RV. (visão) se aproximaram um do outro e seguiram cochichando, alguns passos atrás de M.

            Terminada a curva do morro uma depressão suave formava outra vereda serpeante, e os três seguiram por ela: ao final o caminho se elevava novamente, abrindo-se para outra planície: lá longe era possível ver os restos de uma cerca e, uns 300 metros além dela, um casebre de alvenaria abandonado, junto de uma árvore frondosa.

            Na cerca arrebentada, os três pararam no ponto que teria sido o da porteira de entrada: numa das pilastras ainda de pé, entalhada na madeira, era possível ler a inscrição “São B.”, em que o B. recebera dois talhos na forma de X e, um nível acima, fora escavada a palavra “Trier”: vendo aquilo RV. respirou fundo e sacou a faca da cintura, golpeando o nome estrangeiro com violência.

            Enquanto acendia um cigarro de palha, RO. cutucou M. com o cotovelo e, piscando o olho, apontou com o queixo para o amigo enfurecido:      

- Não sei por que tanto ódio desse H. Trier aí: o cara é outro pau mandado do Novo R., um dinamarco de merda.

Nisso RV., que já havia escavado o lugar do nome, voltou-se para os dois gesticulando com a faca na mão:

- Por quê? Por quê? E quem bombardeou a Baía de G.? Quem derrubou o cristo lá de cima e fritou nosso litoral com napalm? Ahn? Pois foi esse H. e seus H.s, o Mafarro, o Pé-Preto do carai! – e escarrou do fundo do peito no furo que havia talhado:
- Ou, relaxa vai, tava brincando...
- Outorgar lei racial aqui? Instituir trabalho compulsório!? Como a Democracia Velha ficou de pé? Como o Estado não sublevou?! É escravidão! Escravidão suja, sem nome!...
-...

            Nisso RV. estava com os olhos vermelhos e o rosto disforme, transido de ódio. Ele então cerrou o punho esquerdo e apertou firme contra a testa, voltando-se para o chão de olhos fechados. Em seguida respirou fundo, guardou a faca na bainha do cinturão e se voltou para os amigos, ainda trêmulo, mas sorrindo:

 - Desculpem o susto aí, companheiros: emoção dos tempos de jagunçagem: redemunho... Que nem o capitão Rosa dizia né: não tem hoje ant’tontem amanhã: é sempre. O tormento... - suspirou mais uma vez, ainda emocionado, e corrigindo a postura, principiou a recitar com ar respeitoso e voz firme:

- Por isso vejo P. caminhando
para a liberdade, para as portas
que parecem em ti, B., fechadas,
cravadas à dor, impenetráveis.
Vejo P., sua coluna vencedora
da fome, cruzando a selva,
até a Bolívia, perseguida
pelo tirano de olhos pálidos.
Quando volta a seu povo e toca
o seu campanário combatente,
o encerram, e a sua companheira
entregam ao pardo verdugo
da Alemanha.
   
- E isso é o que?
- Pronto, soltou o poeta: agora ele vai precisar de uns minutos pra se refazer... – disse M. cruzando a porteira e seguindo na direção da casa. RO. o acompanhou:

- Mas precisa ficar desse jeito por conta dum comentário? Nem elogiei o cara nem nada.
- É que sem poder chegar perto das vilas ele anda meio sozinho, entende?
- E quem não...
- É, mas é mais difícil pra algumas pessoas... – disse M. interrompendo o passo. Ambos se voltaram para RV., que seguia recitando:

- E quando disse o nome de P. foi como um rumor imenso
no ar da França: Paris o saudava.
Velhos operários de olhos úmidos
olhavam para o fundo do B. e para a Espanha.

- Olha, vai começar um pedaço que eu gosto.
- De quem é esse poema aí?
- Do P. Neruda.
- E ele recita tudo?
- O Rafa é da escola francesa: começou uma tarefa, só pára quando terminar...
- (O Chile não mantinha ainda relações
com a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas.
Por isso a polícia estúpida
proibiu que os marinheiros russos descessem,
e que os chilenos subissem.)
Quando a noite chegou
vieram aos milhares os mineiros, das grandes minas,
homens, mulheres, meninos, e das colinas,
com suas pequenas lâmpadas mineiras,
a noite toda fizeram sinais, acendendo e apagando,
para o navio que vinha dos portos soviéticos.

- Os jagunços do Rosa conseguiram a anistia também...
- Ampla e irrestrita. Os caras centraram fogo contra os pós-fascistas antes de todo mundo. O Rafa era moleque ainda, mas ele tem uns causos que... bom, depois ele te conta, vale a pena saber.
- ...
- Peço hoje um grande silêncio de vulcões e rios.
Um grande silêncio peço de terras e varões.
Peço silêncio à América da neve ao pampa.
Silêncio: com a palavra o Capitão do Povo.
Silêncio: Que o B. falará por sua boca...

            Os dois avançaram mais alguns passos e pararam: RO. inclinou o nariz na direção da sede e balançou a cabeça em negativo, pois o vento estava a favor deles: M. voltou o ouvido esquerdo na mesma direção e fechou os olhos:

- Acho que não... Não. Não é gente, não. Isso não. - disse M. tirando um objeto de metal do bolso, que era como um Y de ângulo curvo: um diapasão:
- Mas antes, Rô, queria te perguntar um negócio meio nada a ver: por que foi mesmo que aquele herói grego, o A., matou o H. e arrastou o corpo dele em volta de T.?
- Na verdade o melhor amigo do A., o P., saiu pra batalha vestindo as roupas e as armas do companheiro e acabou morto por H. Daí ele vinga o amigo, matando o H., mas acaba sendo morto por P., o irmão do H., com uma flechada no calcanhar.
- Que novela.

            Nesse momento RV. se aproximou dos dois cantarolando:

-... tout recommencera, tu verras, tu verras.  Jusqu'à la fin des mondes... Que cês tão conversando aí, seus bundeiros.
- Da guerra de T.
- Argivos uni-vos. – disse RO. -  e cês sabem que, pra escapar da convocação, os caras tentavam de tudo: o  U. se fingiu de louco. Já o A. chegou a se vestir de mulher...
- Sério? Hoje em dia, mesmo que ele passasse por uma, isso não livrava a cara dele...
- Pois é: e a justiça em campo de batalha tinha um lema: fazer bem aos amigos, e mau aos inimigos: profundo. Ainda mais quando você pensa que os “amigos” eram os caras que iam de reino em reino ameaçando arrebentar com tudo se você não aderisse.
- ...
            M. bateu o diapasão na fivela da cinta, fechando os olhos e estendendo o braço na direção da casa, como se quisesse enquadrá-la no côncavo do U. Enquanto o objeto vibrava, o vento parou e se seguiu um grande silêncio:

- É cachorro – disse M. guardando o objeto – pêlo longo, 50 centímetros de altura, tá bem magro. A casa tá vazia,  e também o entorno, se não li mal. Mas como a casa não tem porta nem janela pude dar uma checada nos fundos também.
- Quer que eu faça a volta de longe pra dar uma olhada?
- Não, deixa quieto, Rafa. Conforme a gente se aproximar o Rosto sente a situação, o vento mudou de novo.

            Os três seguiram a passo lento, escrutinando a casa e sua mangueira frondosa: sob a árvore, uma grossa camada de folhas mortas e frutos podres se acumulara no perímetro, que estava cheio de moscas. M. suspirou:

- Eu sonhei com minha vó paterna ontem. Dá até vergonha de falar mas... sonhei que tava pegando ela!
- Uau. Sua vó era gatinha?
- Não! Era minha vó! Mas isso ficou me consumindo: por que sonhar uma coisa dessas?
- Vai, Mau, que cê acha que é. Se depois eu sonhar com a minha véia, já fico sabendo.
- Comecei assim: o desejo que a gente sente pelos pais na primeira infância, e a frustração desse desejo, deixam uma marca muito funda, que define nosso modo de agir com as outras pessoas pro resto da vida. Todo desejo que a gente pode sentir paga tributo pra esse trauma. São dois sustos: primeiro amando a mãe, depois o pai... E como a criança faz pra esconder esse afeto do mundo, ahn? Como esconder dos dois? Como esconder de si mesma? Ela não tem linguagem ainda, mas vai aprendendo. E enquanto aprende vai rodeando esse amor perdido, inventando um eu que nunca sentiu nada disso... Esse segredo leva ao medo do desamparo, de ser banida do grupo, de ser castrada, violada... é estranho...
- E a vó?
- A vó é o supereu. Uma das caras dele: ela concentra as figuras parentais num tipo de pessoa “do bem”, que sabe que a vida é sacrifício pelo grupo, tem prazeres simples, é religiosa, etc.
-...
- Vovó: a príncipe da sociedade de massas: beijo que muda sapato de cristal em coturno... Mas, ôpa, vamo parando aqui vai.- disse RO.

            Os três estavam a 30 metros da casa: as paredes dela eram amareladas, de superfície irregular, mas sem rachaduras. Não havia portas ou janelas, e o chão era de terra batida, como uma continuação do terreiro. As folhas da mangueira estavam por todo lado: RO. então respirou fundo, baixando o rosto:

- Tem sangue seco no chão do quartinho, uma quantidade boa... penso que seja coisa de três dias atrás, ou menos, com esse tempo seco.
- É de gente?
- Não sei. O cachorro deve ter lambido, tem rastro dele pra todo lado, mijão filho da puta...
- E a gente nem tem nada de comer pra dar pro bicho, hein. Olha lá ele no meio das folhas. Não avançou na gente ainda. -  disse RV. retomando passo. Os dois o seguiram. O cachorro saiu da folhagem e correu pra eles trotando, com as pernas dianteiras um pouco adiantadas e o corpo inclinado pra escapar: RV. assoviou firme, esperou, depois o chamou com estalos de dedo e voz suave: o bicho subiu e desceu o rosto encabulado e se aproximou: o rapaz deu a mão pra ele cheirar, ele conferiu e correu na direção dos outros dois, cheirando-lhes os pés e as mãos.

            Os três entraram na casa: era um salão de 10x10 metros, sendo à esquerda a cozinha com um forno a lenha e uma bancada, e à direita o resto da área comum, sem divisões. Mais atrás havia um par de janelas grandes e, à direita, o tal quartinho. Os três foram até lá: o quarto era um quadrado 5x5, com piso cimentado, de superfície lisa e pintado de vermelho. Sob a única janela do aposento, um borrão enegrecido e cheio pêlos marcava o local do sangue. Os três encostaram os fuzis em pontos diversos da sala.

- Eu não sei mais o que é isso, bicho. – se queixou RO. – Tá tudo uma merda, olha. Que será que aconteceu aqui?
- Nossa, vamo pergunta pro cachorro! Faz tempo que eu queria ver isso.- sugeriu RV.
- Será? Meu, se ele fugir com o voice a gente vai ter que atirar...- respondeu M.
-Não, que nada, a gente fecha a porta com aquele tábua ali, ó. E ele é mó civilizado, esse bicho: olha ele lá, até entrou aqui com a gente.
           
            RV. correu por o tapume na porta e encontrou canaletas de madeira pra fixá-lo. Ele testou a firmeza da contenção e se juntou ao grupo: diante da bancada, voltados para o bicho (que deitou no meio da sala), M. segurava uma coleira grossa, de couro gasto e avermelhado. Essa coleira estava unida a um retângulo de metal do tamanho de uma caixa de fósforo: o corpo do aparelho era cinzento e oxidado, com a superfície vazada por uma rede de furos.  

- Coloca aí, ó. Liga pro amigo dinamarcão.- brincou M. RV. tomou o voice da mão dele e respondeu:
- Pois não, seu Mau: cê vai ver. A gente fica sabendo o tipo sanguíneo daquilo lá.           

            RV. se aproximou do cachorro, que estava muito debilitado e sem condições de reagir: ele lhe afagou o pescoço e sentiu uma coleira sob o pêlo, bem fina. Era larga o suficiente para passar pela cabeça do animal, e o rapaz conseguiu tirá-la:  na fita de couro haviam preso um H de metal, improvisado com alumínio de latinhas.

- Agá?- perguntou RV. jogando a peça para M. e vestindo a outra coleira. – nossa, ele tá pele e osso... Se cê esclarecer a gente eu tenho um charque pra te dar, viu?

            O voice ficou pendendo frouxo sobre o peito do bicho: segurando a caixa metálica entre o indicador e o polegar, ele acionou um botão com um clique e um chiado de caixa de som começou a soar. Quando o cachorro rosnou o ruído de estática se intensificou: ele então começou a latir em cadência, emitindo um som agudo e cortante:

- Shhh! Quieto! -  gritou M., ao que o bicho se calou de imediato, e a chiadeira sumiu. – Levanta. – o cachorro gemeu com o esforço mas ficou de pé – Agora senta. -  e o cão sentou:

- Será que ele é ensinado?
- Não, é o voice. Agora ele fala, e quem fala obedece.
- Ele deve tá achando tudo muito bizarro!- comentou RV. com um sorriso, e voltando-se pro cachorro perguntou:
- Então tá: qual o seu nome?... No-me. Nome.

            Passados alguns segundos veio do animal o som de um assovio em dois tempos, que começava baixo e subia, até dispersar. Os três riram.

- Ah, pergunta de novo, Rafa.
- Nome? -  e mais uma vez o assovio.
- Falar sem linguagem é foda, e com esse vocabulário curto... A memória dele deve ser toda imagem e som: ou o que a gente diz chega pra ele nessa forma.
- Ah, é? Vamos ver: ei, Assobio: sangue. San-gue.

            O cachorro não se moveu e o aparelho não emitiu nenhum som, mas um filete de baba começou a escorrer do canto da boca do animal: os rapazes riram:

- Deixa ver, deixa ver! – disse RO. – Presunto. Mortadela. Linguiça frita. Calabresa. Coração de galinha. Picanha sangrando com capinha de gordura! Frango assado com a pele torradinha, estalando!
- Pára! -  disse uma voz eletrônica no alto-falante, ao mesmo tempo em que o bicho soltou um latido irritado, rosnando entre dentes: diante dele, dois filetes de saliva que minavam dos cantos da boca iam formando uma poça. Os três riram muito.

            RV. tirou um lenço do bolso: embrulhado ali estava um naco servido de carne seca: o cachorro se levantou e agitou a cauda, olhando fixamente para o charque que o rapaz segurava:

- Oooohh... bom, bom....oh... Me dá! Me dá!- disse a voz digital acompanhada de rosnados e dois latidos, que secundaram os “me dá”.
- Quieto aí, Assobio. Senta. Isso. Espera eu cortar o pedaço... oh carai, não morde minha mão, não, porra! Coitado... Tem uma cuia d’água ali, deve ser dele beber né. Vou por um pouco pra ele. -  e serviu o cachorro com um cantil tirado da sacola: o animal bebeu em desespero. – E agora, hein? Esse cara não sabe nem ver as horas, não vai lembrar do que aconteceu três dias atrás...
- Lembrar ele lembra, só não sabe que lembra. – disse RO. – Tenho certeza que ele tava aqui durante o acontecido. Mas vamos levar o bicho pra sala: olhando a mancha as coisas voltam.

            Os três entraram novamente na pequena sala, mas o cachorro não os seguiu, ocupado que estava em lamber o fundo da vasilha d’água: M. voltou até o batente da porta e chamou o animal pelo nome, assoviando em dois tempos: ele ergueu a cabeça e as orelhas num susto:

- Senhor?- disse a voz metálica do transmissor. E o bicho correu pra dentro da sala com os outros.
           
            Lá o trio se dispôs em torno da mancha de sangue sob a janela: o sol inclinado descia direto sobre a gosma coagulada e cheia de mosquitos: o cachorro parou diante daquilo e se sentou olhando pra cima:

- Amiguinho: sangue. Sangue? Interrogação.- tentou RV. ficando de cócoras e apontando a mancha com o dedo.
- É... podre. Era... bom.- disse a voz digital com dificuldade.
- Mas de quem era? Quem era?... Quem? Era?- cortou RO.
- Era? – engasgou a voz robótica. E num lance o cão olhou para o chão e bufou.
- Era... eu. E meus eus. Meus eus. Era.
- Puta merda, não vai... Mas deixa o bicho falar: que “eus” é esse? Outro cachorro? Ca-chor-ro. Cão. Era?
- Cães. Era. Meus eus... Era... Não é. – articulou a voz. E percebia-se que o animal entristecia, deixando a cabeça pesar sobre os ombros. M. coçou a barba sob o queixo e estreitou os olhos:
- Será que... os irmãos dele? Ei, Assobio: irmãos? Irmão? Era?

            O cão se colocou de pé, abanou a cauda e latiu três vezes com a boca bem aberta:

- É! Era! É! – secundou o alto falante a cada latido.
- Fudeu: ele não tá lembrando do que aconteceu aqui, tá lembrando de quando foi separado da ninhada... – concluiu M.
- Oh, irmãozinho, você lembra dessa época? Que cabeça boa! – disse RV. fazendo um agrado no cachorro. RO. esperou ele terminar e fez um agrado também.
- Mas a gente vacila também, não: é só perguntar por que.- sugeriu RO.- Ei, fedidão, sangue por que? Sangue: por que? Por que?

            Nisso o animal olhou pra cima: na viga do teto que escorava as telhas havia um saco plástico transparente e vazio: RV. esticou o braço e apanhou o que parecia ser a bolsa de um banco de sangue: a etiqueta de identificação estava toda em chinês, mas no topo da tabela, em negrito e caixa alta, era possível ler um B+:

-Não falei, Momô! Pena que a gente não apostou, hein. – e mostrando a bolsa pro animal perguntou: - Assobio: quem? Quem? Hein?
- Muitos: fujo. Fujo. – disse a voz.
- Fugi, Assobio, fugi! A gente precisa ter uma conversa sobre os tempos verbais, rapaz... – e arrancou a coleira com o voice, recolocando a que tinha o H. – pois é: os dinamarca passaram aqui e deixaram essa piada do vampiro. Pôxa, bem mais espirituosa né: normalmente eles dão um cagão...
- E agora, a gente larga o cachorro aqui? Ele nem salvou nossa vida, nem nada...
- Tá mais o contrário... Mas não sei se a gente pode chegar com um bicho desse no acampamento. – lamentou-se M.
- Dá um toque pra comissária F., caramba, ela pode aconselhar alguma coisa ou deixar o bicho com aquele borracheiro da vila que cuida. – disse RV.
- Tá, mas eu não lembro as iniciais do escritório dela...
- Eu sim: SBBHQK.
- Caramba, Rosto, que memória! -  nisso M. tapou o ouvido esquerdo com o indicador e aproximou a boca do relógio de pulso, olhando para cima enquanto falava:

- Atenção: SBBHQK. SBBHQK. Aqui é M. falando com a Terra. Aqui é M. falando com a Terra.
- Terra respondendo... Terra respondendo...
- Não podemos regressar? Não podemos regressar?
- Lero lero... Lero lero...



3 de jun. de 2011

Crônica Artificial 0.6




Esta que tá aqui atrás

            O escritório central do SNI funcionava num gigantesco galpão subterrâneo, 30 metros abaixo da superfície: as paredes em torno do fosso foram escavadas na pedra e reforçadas com escoras de concreto: canos de cobre saiam do paredão aqui e ali, minando filetes de água cristalina ou barrosa.

            No meio da vala circular, alguns metros depois da canaleta que recolhia a enxurrada dos canos, um conjunto de 100 mesas e cadeiras se distribuía de forma eqüidistante e quadrangular, com 10 linhas e 10 colunas de 10 mesas e carteiras cada: as mesas e cadeiras eram completamente negras, com tampos de vidro e estofamento discreto e anatômico: sobre as mesas, trapézios baixos e pretos inclinavam uma de suas faces na direção dos funcionários sentados: eram páginas de super-contraste preto e branco, com as proporções de uma folha de jornal.

No centro do grande quadrado, ocupando as posições E-5 e E-6, as XX, F. e L., voltavam para seus lugares trazendo copos brancos de plástico cheios de café: L. tomou seu lugar à esquerda de F. e suspirou, olhando pra cima: grandes lâmpadas fluorescentes de luz branca avançavam aos pares em linhas intermitentes sobre as mesas: (==========)
Nesse momento, o par de lâmpadas que iluminava o quadrante de L. oscilou emitindo cliques, e se apagou:

- Fran, olha isso: eu não devia nem ter saído de casa, sabia...
- Tsc tsc: é o inferno astral, linda. Mas logo acende, quer ver? – as duas se voltaram juntas para as lâmpadas e elas acenderam num flash.
- Viu? A única coisa que gosto nesse buraco é da iluminação, acho que me favorece!
- Prefiro a do banheiro, queria que a do alojamento fosse igual...
- Pra você qualquer luz vai bem, sua insuportável. - disse F. Ao que L. negou com a cabeça.

            Da fileira diante delas, no quadrante F-5, virou-se uma jovem de rosto conformado e cabelo curto e loiro: apoiando o peito no espaldar da cadeira, ela baixou o queixo sobre os braços cruzados e perguntou num suspiro forçado:

- E eu, Fran, que luz é boa pra mim?
- Luz negra! Ainda mais agora com você loira desse jeito.
- Que abusada! Mas eu não tô mais loira...
- Como não, C.! Não tá? – disse voltando-se pra L.
- Tá bem bonita: parece a santa J. dos matadouros...  E quanto deram pelo seu cabelo, Cá?
- 150 créditos...
-  Nossa, cê tá pensando em vender? Não faz isso, me arrependi demais... – disse F. ajeitando os cachos.
- Ai, vamo começa né gente, senão não acaba nunca!... – disse C. enquanto voltava pra posição anterior. - Luz negra...: cê vai ter que me explicar isso aí direito, dona flor!

            F. riu e tocou o lado direito da tela no trapézio: um retângulo branco surgiu e dentro deles alguns links ilegíveis e enormes se distribuíam em lista: F. pressionou um dos links com o polegar e o arrastou até a borda do enquadramento, fazendo-o desaparecer enquanto cerrava o punho:

- Psiu, C.: quer confete? Toma aí. – em seguida ela fez o gesto de quem atira alguma coisa na direção da amiga, que do seu lado agarrou o objeto invisível com a mão: na sequência, C. tocou o próprio trapézio e esperou, até que a imagem em preto e branco de um tipo barbado e de toga surgiu na tela.
- Fran, que foda! Eu via com a minha vó...
-...

            Enquanto isso L. já se movimentava intensamente, suando no uniforme negro: Todos ali vestem peças de algodão que descem folgadas sobre o peito e os ombros, e não têm mangas: já a parte de baixo se ajusta ao corpo, terminando num par de sapatilhas pretas.

A moça manuseava dados na tela em preto e branco: com o dedo médio da mão direita ia virando páginas, subindo e descendo a barra de rolagem enquanto ampliava, destacava e recortava os trechos lidos, com movimentos de pupila ou toques da outra mão. Vendo-a naquele ritmo frenético, F. pausou o registro em super-8 de uma parada militar que estava assistindo e comentou com a amiga:

- Você ficou boa nisso, hein. O que cê tá investigando essa semana?
- Ah, tudo! Todo o conteúdo de páginas pessoais do período pré-Hecatombe: tem umas palavras chave aqui pra catalogar o desenvolvimento de ideologias distópicas, digo, das utopias anti-ideológicas que alimentaram as lutas entre as Facções Principado e o Terror-Terror dos anos 80: que-cha-to! Cassete...
-...
- Você não fica com vontade de fazer o teste vocacional de novo, Fran?
- Ué, mas eu já passei no que eu queria: imagem e som. Precisava começar com as aulas de música, mas... É isso ou isso.
- Que inveja, eu não passei no que eu queria não... Estudei tanto pra aquele teste vocacional, que angustia.
- Mas o que você estudou? Foi análise textual e design ideológico, não?
- Isso, mas sempre quis narrativa corporal e estruturas simbólicas. Isso aqui é um negócio que faço bem, mas detesto...        
- Bom, então faz menos bem que cê tá me dando taquicardia! Relaxa, Lí, eles não têm pressa de concluir nada... Só de te consumir.
-...
- Eu também queria narrativa corporal... –suspirou C. lá da frente.- e tô aqui vendo  vídeo mexicano.
- Que é essencial pra nossa investigação, hein! Ascensão de movimentos neofascistas, o México dos anos 70, tá tudo ligado...- disse F. piscando o olho.

De repente ela olhou pra cima e ergueu a mão esquerda até a orelha, tapando-a com o indicador. Em seguida se levantou, ergueu a mão direita e acenou para uma grande janela de vidro que ficava lá adiante, dentro do paredão de rocha:

- Positivo? – disse F. se sentando e olhando pra tela. O indicador esquerdo continuava no ouvido:

- É claro que a nossa conversa é sobre o trabalho, você não sabe quanto!... Sei. Os índices você consegue checar daí, não? Que eu saiba fiquei entre as primeiras e... Comportamento disruptivo? Olha, desculpa: isso é conversa de eletricista. Eu realmente tenho que voltar pra análise até... Oi? Não, amiga, eu não “corro o risco de ser desligada” porque não sou torraderia... Ah? Cinismo? Você sabe o que é cinismo? Você sabe o inferno que o mundo tá por conta disso aí? Pois vá se informar do significado de cinismo antes de atirar isso na cara de alguém... Não, eu não vou aí, tenho que terminar a pesquisa e cumprir meu prazo de avaliação: se eu perco tempo, ganho desconto. Passo no seu escritório no final do período e... Olha, não vou. Não: aliás, se eu for aí agora vai ser pra discutir o caso Trier! Lembra? ... Alô?... (suspiro)... Ok. No final do período... Boa tarde. - e deixou a mão cair sobre o colo.  
- O que foi isso?
- Nem queira saber: picuinha, pequenos poderes...: aí, meu-eu, me dê paciência, porque se me der força eu mato!

            Nesse meio tempo C. havia se levantado e trouxe um copo de plástico branco cheio d’água:

- Bebe aí, Fran. Eu não peguei dos canos, viu? É do bebedouro.

            C. ainda de pé voltou-se para a própria tela e arrastou um link até o punho cerrado, unindo as palmas das mãos em seguida: colocando-se entre a mesa das duas amigas, ela abriu os braços e tocou ambos os trapézios ao mesmo tempo. Enquanto voltava para o lugar perguntou:

- Vocês sabem quem é essa mulher?

            Diante das duas surgiu a fotografia em preto e branco de uma mulher muito bonita, de traços latinos: F. e L. se entreolharam com cara de ? .

- É a P. Cruz. Lembra dela?
- Agora sim! Estudei esse diretor em Cannon I o... P. alguma coisa.
- Enfim: essa aí foi primeira atriz artificial post-mortem, lembram? Na época eles já tinham recurso à animação fotográfica, mas essa P. foi a primeira que, depois de morta, continuou trabalhando como persona de ficção: a atriz avatar!
- Credo, que horror, que coisa cafona... Jura que fizeram isso?- perguntou F.
- Me deu um arrepio... – disse L.

            F. e C. riram um pouco e depois calaram. Em seguida C. se virou pras duas mais uma vez e, sorrindo, perguntou:

- Mas cê sabe, Fran, tem uma moça lá da linha B que é a cara dessa P. Cruz: chega a dar medo.
- Jura? – perguntou L.
- Hum, hum. Só que eu não lembro se é a B-5 ou se é a B-6...
- Bom... - disse F. – Não sei, mas pra mim... é esta que tá aqui atrás.
- Qual?
- Esta que tá aqui atrás.
- Qual?
- Esta que tá aqui atrás.
- Qual?
- Esta que tá aqui atrás.
- Qual?
- Chega, C.!