22 de jul. de 2011

Crônica Artificial 0.7A

Jornalistas
(XX)



A XX AF. Vive num apartamento minúsculo no primeiro andar do prédio P. Gomide, numa esquina larga e arborizada da Capital Federal: sua kitnet não passa de um pequeno quarto-cozinha separado por uma bancada. Do lado oposto à porta de entrada, um par de janelas com cortina dá para um buriti espalmado e super verde, que deita folhas sobre a esquina ensolarada: no momento a ducha está ligada, e por detrás do ruído da água, é possível distinguir gemidos sufocados e soluços: sobre o colchão de casal, no centro do quarto, se espalham toda sorte de roupas e objetos, na maioria livros: As portas do guarda-roupa estão escancaradas, e muitos de seus compartimentos foram esvaziados pelo chão.

            AF. saiu do banho vestindo um roupão azul claro, sobre uma camiseta branca de gola esgarçada: seu cabelo estava quase seco, com mechas castanhas que desciam até o ombro: os olhos verdes chispavam, vermelhos de chorar e ainda cobertos por uma camada de lágrimas: da vista esquerda escapou uma gota, que se perdeu na curva da maçã e escalou o lábio pronunciado: a moça correu a manga do roupão sob o nariz e passou as mãos pelos cabelos, enquanto se aproximava da janela: lá embaixo, pra lá das grades do condomínio e a coisa de 25m de distância (ΔABC), estava estacionada uma antiquada viatura de polícia, com bagageiro grande e rodas sujas de terra. Em torno dela, três policiais de alturas distintas se distribuíam em escadinha: o mais baixo era branco, tinha o ventre arredondado e os braços musculosos, além de uma barba castanha cerrada, que coçava com as duas mãos. O do meio era um mulato esguio e conformado, de bigode, e fumava um M. vermelho com ar arrogante. Já o mais alto era de porte atlético e traços nativos fortes, com olhos rasgados, corpo sem pêlos e a pele escura. O mais baixo e o mais alto carregavam uma submetralhadora e um fuzil de assalto, respectivamente; enquanto o sujeito de bigode, patente mais alta, não levava mais que a pistola no coldre. Os três vestiam um uniforme verde escuro, com calça de lona cheia de bolsos, cinto preto de fivela prateada, e camisas de manga arregaçada, com o colarinho aberto até o peito. Sobre as cabeças usavam um boné de bojo curto e aba envergada.

            AF. ficou a observá-los através do vidro por algum tempo, com ar desorientado. Num gesto automático ela colocou os óculos que estavam no bolso e estreitou os olhos, tentando enxergar: as lentes se distorceram um pouco, como se fossem líquidas, e AF. conseguiu um zoom dos três soldados: enquadrados num palco do comprimento da viatura e da largura da calçada: súbito o mais alto gritou pelo colega barbado, chamando-o duas vezes: O som não chegava até a moça que, lendo os lábios do grandalhão, sussurrou o nome:

- P.?

            Os dois colegas se voltaram para o mais alto, que continuava falando: conforme distinguia as palavras nos lábios do sujeito, AF. ia repetindo num sussurro:

- ...achando... u’a pequena?... não olha ...ão olha... às doze horas...

            O sujeito de bigode deu as costas para a janela. P., o barbado, cruzou os braços e ficou com o pescoço rígido, movendo os olhos na direção do prédio enquanto falava: AF. leu o que ele dizia também:

- ...capitão... olha não... é muito... beleza... será que bebeu? B.! B.! direto não... porra... olha não... trouxa...   

            Nisso o grandalhão B. riu baixando a cabeça e cobrindo a boca. Em seguida também deu as costas pra janela, recostando na viatura e cutucando o cara de bigode com o cotovelo. P. se colocou diante dos dois e continuou falando:

- ...é bonita... roupão!... lembrei de... era bem mais!... na minha cara, ela disse... não é não B.?... não é não?... o H. quem sabe... H. manda... e quem ia dedar?... maloqueirada... multidão... vão pegar geral mesmo? ... cê duvida?... quem cagüetava?...  Fudeu. Fudeu. Fu-deu... santo... o capitão santo!... príncipe... caralho... olha agora H.... agora H...

            O capitão se voltou discretamente pra janela e topou com o olhar de AF., que deu mais um passo na direção do vidro e sorriu: H. segurou a aba do boné e balançou a cabeça em cumprimento: a moça acenou e fechou a cortina com um gesto brusco, dando um passo pra esquerda: através da cortina transparente, atrás da palma do buriti, ela viu o grupo dispersar numa gargalhada nervosa: H. bateu palma uma vez e cruzou os braços, segurando o cigarro nos lábios; P. jogou a alça da arma de lado e se curvou, abraçando a barriga; B. puxou o fuzil pra junto do peito e cobriu o rosto com uma das  mãos, soluçando de gargalhar.       

               AF. sorriu por um instante, mas logo entristeceu com uma expressão angustiada: ela olhava pela janela com os dois braços apertando o peito e os dentes rangendo: lá embaixo o capitão acendeu outro cigarro. Com a mão direita ele fazia um cone pro ouvido e andava de um lado pro outro, gritando e aguardando pra dar mais gritos; P. e B. escutavam com ansiedade: os lábios de AF. ia repetindo o que ele dizia:

- ... mantida coronel... agitação nenhuma senhor... os beatos?... Asa-Norte?!...ainda não... mas tomaram o quartel é?... quais?... arriscado, senhor... altamente arriscado, quantos são? Minha nossa.... positivo, positivo... mas senhor, o nosso contingente... – nesse instante três viaturas de polícia cortam a rua em alta velocidade, com sirenes ligadas e atiradores empunhando armas pelas janelas: eles cumprimentaram os colegas com gritos e golpes no capô. - ... isso é uma loucura, meu coronel!... eu entendi, senhor... o programa, sei, sei... o programa. O programa... a gente segura a posição, senhor: a gente fica, a gente fica, a gente fica! Câmbio! – e deu um tapa no teto da viatura com a mão que estava perto do ouvido.

Os três estiveram em silêncio por algum tempo, então P. se voltou para os dois, que deram as costas pra janela, e começou a falar: assim leu AF.:

-... cês lembram?... um samba... esse sambapelo?... meu apelo... começa assim... vou acabar enlouquecendo, se você não... quiser? me quiser?... lhe quero tanto bem...ah ... meus olhos choram lágrimas doídas, das tristezas dessa vida, onde você não me quer, meu amor... me amar... Dê atenção ao meu apelo... por...fa...vor... Dê atenção ao meu apelo... por...fa...vor...

AF. se afastou da janela: ela tocou a superfície de pedra da bancada e uma tela de vídeo surgiu projetada no ar: era um retângulo de um 1m por 50cm, que mostrava a imagem de um homem negro fotografado da cintura pra cima e sorrindo: dos alto-falantes escondidos pelo quarto começou a soar, com muita chiadeira,  ao de som de cavaco e violão:

Vou acabar enlouquecendo
   Se você não me quiser
   Eu lhe quero tanto bem...

- Cala a boca! - gritou AF. do fundo dos pulmões: a imagem dispersou em ondas concêntricas, que deformaram a superfície da tela. Em seguida a projeção mudou num quadrado negro.

Ela encheu uma xícara com café frio, contornou novamente a bancada e se sentou na beira da cama, de frente pra projeção: deu dois goles na bebida e contorceu o rosto por conta do amargor. Num sussurro ela disse:

- ...que tá acontecendo?...  

            A tela preta começou a ganhar cor a partir do centro, apresentando os contornos de uma imagem: a figura tentava se formar em blocos (quadrantes) conforme o quebra-cabeça ia se acomodando, mas sem muito sucesso: a moça ficou impaciente e gritou:

- Notícia, notícia!

            A tela então ficou branca num flash, antes de começar a mostrar as imagens de um litoral devastado: destroços, carcaças de carro e entulho flutuavam entre esqueletos de prédios, golpeados pelas ondas do mar. A voz feminina que narrava a matéria tinha um forte sotaque estrangeiro:

- ...já aqui na cidade de F., na antiga P. do Futuro, o mar continua avançando em direção a zona da mata, devastando tudo que encontra pela frente. O campo de refugiados São T., que abriga quase 500 mil imigrantes ilegais do cone sul, está na rota das águas, e será atingido nos próximos minutos. A administração dinamarquesa declara em nota que “o sofrimento conjunto das nações em um momento de reestruturação como o nosso representa...”

- Aqui! O que tá acontecendo aqui!

            A projeção ficou preta novamente, e em seguida passou a mostrar uma multidão que marchava por uma rodovia no meio do cerrado. O número de pessoas era imenso: o grupo era formado, na maior parte, por mulheres com crianças pequenas e gente idosa. Ao redor, porém, são seguidos por milhares de  adolescentes de ambos os sexos, que vestem farrapos e carregam AKs-47, além de granadas: muitos deles usam coletes ou abadas vermelhos onde se lê a inscrição Jovem Guarda: diante deles um sujeito magro, cabeludo e barbado, vestindo uma batina azul escura, decotada e fina; era seguido de perto por um grupo de pré-adolescentes fortemente armados. Enquanto isso uma voz grave e estilizada narrava a matéria, alongando os R’s  e reforçando os B’s e P’s e T’s e D’s: 

- “... a multidão de farrapos que segue o fanático H. Nascimento vem arrebatando milhares de romeiros nas cidades-satélite por onde passa, incitando outros focos de Romaria na região... A polícia diz que é impossível dispersar a marcha por conta da perda maciça de homens na recente defesa do litoral, e que agora cabe (eu cito) ‘ao governo dinamarquês e seu aparato repressivo o restabelecimento da ordem na capital da Antiga Democracia, pois foi a ela que essa corporação serviu, entregando para a morte certa seus melhores homens e mulheres’... Enquanto isso no cerrado, à beira da BR-X, ou rodovia Vaza-Barris, e a poucos quilômetros de B., os militantes ouvem os sermões de... “beato H.” no acampamento móvel, chamado pelos favelados de ‘Belo M’. Agora são 16H21, e você acompanha o discurso em tempo real em:

5...4...3...2...1...:
[mind [escape] to exit]

            Sentados em volta de um pequeno elevado com capim alto, uma multidão se distribuía em leque diante do beato H., que pregava ao lado de uma árvore enegrecida e sem folhas: com o rosto sujo de fuligem e empapado em suor, o homem fitava o horizonte com olhos vermelhos, e pra além dos milhões que o ouviam: todos sentados e em silêncio. Apenas os soldados adolescentes vagavam entre as fileiras com armas em punho: o beato retomou o discurso com voz potente: ao seu lado uma menina negra com chapéu de cangaceiro, vestido de renda e capa vermelha, segura um cajado retorcido com um microfone na ponta, inclinando-o na direção de H.: sua voz era transmitida por uns poucos alto-falantes em redor e as palavras, muitas vezes, acabavam carregadas pelo vento:

- ... mas por que Deus tem precisão de profetas? E por que J. foi o maior de todos?... Por que se a Palavra pudesse morrer pelo fim de um único homem, ou de um único povo, ela já não seria mais a Palavra de Deus!... Foi por isso que Ele se fez carne e viveu a chaga da miséria neste mundo: pra mostrar que nem a Morte! pode se colocar no caminho que a Palavra tem que percorrer... E que a Palavra leva à Vida Eterna, porque ela desafia o espírito com a Igualdade sem limite... Ai daquele que ouve o chamado da Igualdade! Ai daquele que já se vê no Monte das O.! E que suando sangue, em calafrios, quer endurecer o coração pras lutas que estão por vir!... Em verdade vos digo: J. viu muito antes a tragédia que esperava Jerusalém na curva do futuro...: Grande desgraça caiu sobre aquele povo! A cidade veio abaixo na mão do dominador imundo! Seu templo foi profanado! As famílias degoladas ou prostituídas no estrangeiro! Vergonha! Vergonha!... O que tem de podre em D. tem de podre em todo lugar....: Podre é um dos nomes dele... Do Mafanho. Do Pé Preto: O Inimigo do Amigo e do Inimigo... Por isso o Povo de Deus deve marchar sobre quem traiu essa terra primeiro! Sobre as pilastras de mão dupla, as duas estradas, pro paraíso e pro inferno, que cortam essa Terra!:



a da riqueza obscena e a da miséria total:
[ ̮ ‖ ̯ ]
o prato que implora e o prato que nega!

 )
  =
(

 Eles venderam nossa gente antes! Agora querem mudar pro estrangeiro pra clarear a pele e afinar os narizes! ? O Litoral Novo, comido pela peste e pela fome, agora é um mar de cana! A gente fugida dos conflitos de terra não tem mais nem um país, nem um chão! Em todo canto, a bandeira vermelha com uma cruz branca no meio, marca o lugar do sofrimento sem fim... Por isso essa cidade vai ser do Povo de Deus! Finalmente! B. vai ser o novo B.! ... B.: Coração do Mundo Pátria do Evangelho! É o destino dos Capelinos que se cumpre! Melhorar sempre! Progredir sempre! Infinity Power! Infinity Consciousness!... E viva Macedo! Viva Xavier! Viva Cícero! Viva Vicente Mendes Maciel!

            A multidão ergueu os braços e gritou tanto que foi preciso que o beato parasse: as últimas fileiras de pessoas, muito longe, iam recebendo com atraso a ovação, e mandavam gritos para o centro já silencioso:

 –. ..E não pensem que o faraó, rei de D., não vai mandar os Anjos da Morte pra nos sujeitar...: a peste não vem pela flecha de A. nem pelo Arcanjo G., mas pelos ares... É preciso manter os olhos no alto e não sentir medo dos teleguiados, Jovem Guarda, pois é a força do seu medo que atraí a angular maligna de...

            Nesse momento AF. se levantou e deu um soco na projeção do beato: a tela oscilou com uma ondulação líquida e se tornou preta de novo: a moça cobriu o rosto com as mãos e soluçou, caminhando pra janela: com lágrimas nos olhos, ela limpou os óculos e observou o movimento dos policiais: eles agora riam e mudavam de lugar em ritmo acelerado.




            Cruzando os braços sobre o peito, AF. se voltou para a tela com raiva:

- Imbecil... falta de respeito com o sofrimento desse povo!... Fascista barato... monstro... acha que vai ser o paraíso na terra quando a polícia fugir? Quando os beatinhos armados entrarem nas casas sem o santinho pra vigiar?!... Filha da puta... e com a bomba de nêutrons a gente vai volta pro tempo das cavernas...os dinamarcos vão varrer a cidade do mapa... varrer a mosca, a grande mosca, a mosca que perturba... – e das caixas de som começou a soar baixinho, com chiadeira:

- observando e abusando. Olhe pro lado agora, eu tô sempre junto de você...
- Shhh... – fez a moça pro retângulo negro, e o som parou.

           
Ela se voltou pra fora de novo, sussurrando a leitura dos lábios: o capitão agora falava com os subordinados de braços cruzados, sorrindo uma fileira de dentes brancos sob o bigode:

- ... mais de três horas discursando... que nem o F.!... o F. Castro ... F. Capão: sem graça essa, hein... Cê cheira cueca?... F. Casto: boa... diz que ele vai separar as águas... do Paranoá, ué!... Vai arreganhar o L. Paranoá erguendo o braço assim ó... o lago vai sentir a sovaquera do beato e vazar pros lados!... Que nem Noé, não: Moisés! Moisés! Fugiu da escola?... oh, outro samba bom... Juízo Final, conhece?... Exterminador? É samba, carai!...meu vô curtia... era bombeiro... a milícia matou... como era mesmo?... O sol... há de brilhar mais uma vez... A luz... há de chegar aos corações... O mal... será quemada a semente... – e novamente a canção começou a soar pelo quarto num registro cristalino, com instrumentos ao fundo e coro:     


-  “...O amor...será eterno novamente
       É o Juízo Final, a história do bem e do mal
       Quero ter olhos pra ver, a maldade desaparecer...”


            Enquanto a música rolava, ela fez seu caminho até o banheiro e ligou a luz branca em cima do espelho: sobre a pia havia uma toalha branca dobrada, uma escova de cabelo preta e uma tesoura grande, toda em metal:

- ...

            Ela puxou uma mecha de cabelo colocou entre as lâminas, medindo o cumprimento do corte: seu rosto então ficou vermelho e as mãos tremeram. Ela baixou a lâmina e golpeou a pia com o punho cerrado três vezes:

- “...o amor...será eterno novamente...”
- Quieto! - e a música parou.

            AF. saiu do banheiro e começou a se mover de um lado pro outro, no espaço entre a cama e a bancada, em frente à tela negra: seu braço direito apertava as costelas num abraço, enquanto roia as unhas de olhos no chão: ela se sentou novamente na beira da cama e lágrimas subiram aos olhos: caiu num choro transtornado, batendo nos joelhos e rangendo os dentes: diante dela, na tela preta, surgiu a imagem de uma mulher uns 20 anos mais velha que AF.: era como se a moça se olhasse num espelho, e visse a imagem da outra em seu lugar. A diferença é que mulher na tela está contra um fundo negro e veste uma bata branca simples: era bonita como AF. , mas como a outra também chorava, inconsolável.

            A moça congelou quando percebeu a mulher na tela: seu rosto perdeu cor e os dentes começaram a bater. Tremendo ela formou um X com os braços sobre o peito e cerrou os punhos, fazendo cara de espanto:

- ...mãe?!...
- ... fia... minha filha... sai daí... sai logo, filha, sai...
- ...
- ... sabe...: ele não tinha o direito de fazer aquilo comigo... Ele não tinha o direito!... o que seu pai me fez sofrer nessa vida... o que ele me fez sofrer não tá escrito...(choro) largou a gente, e eu não tinha nada, eu não tinha ninguém (choro)... você era pequena e não lembra: sorte sua... Seu pai foi um crápula!... Era o melhor homem do mundo... um menino... Meu amor, meu amor, onde for... O que foi que eu fiz? Hein? Por que ele não tá aqui?... ele não me quer mais... você é meu bebê, minha linda... Seu pai é um monstro... queria que ele voltasse. Ia ser como era... Você começou a ler com quatro anos! Linda... ele não me quer... cê terminou o que se tinha que fazer? Por que cê é enrolada assim?... Mas que roupa feia é essa... Por que você não põe a amarela?... ai filha, cê tá com cc... não fica bancando a oferecida, tá ouvindo?! Se dê ao respeito: sonsa! E cuidado com os moleques, não dá uma de uma de idiota...ficar grávida, só faltava essa... Seu vô foi mexer com garimpo uma época: ele voltava tão barbado, tão cabeludo que eu não reconhecia ele! Eu chorava, chorava... O pai tinha negócio meio triste... era triste o papai. O pai era triste.
- ...mãe, oh mã... por que que o pai foi embora?
- acho que foi culpa sua, meu anjo... tenho quase certeza, porque eu era tão bonita... o povo dizia, na rua tamém, a gente sente isso... Mas daí você apareceu... Não sei porquê você tinha que chegar. Pra quê?  Eu quis tanto você... por que cê roubou ele de mim?... Por que?! Por que!... Você é linda, meu amor, minha vida... Nunca vou deixar você sozinha, viu?... O papai é assim mesmo, estouradão!... papai é quietão... ele era tudo pra mim... Tava disposta a tudo... Disposta a tudo, ele sabia... É você. Ele preferia você. Só ficava em casa por sua causa: a culpa é sua. A culpa é sua...
- Minha culpa!? Cê tá delirando!... Não lembro?... claro que eu lembro! Você aí, toda santinha, sempre a última a saber de tudo..: ele nunca tava lá de verdade, cê não via?: sempre fechado num canto, sempre com um olha pra rua, sempre com uma mania nova. Ficava contornando a gente, contornando sair, não conversava, passava o domingo vendo TV e fumando, fumando, fumando!  
- Antes de você chegar era perfeito!... Ingratidão sua... Menina enjoada... Você sabe o que ele me jurou? Cê sabe?!... Eu não sabia quem eu era até ele me jurar aquilo... Daí eu soube: mas você tinha que vir... Você tinha que vir, entende?!... e ele me largou... não tem um dia que eu não sonhe (choro)... tem um punho que me aperta o peito... a culpa é...
- Cala a boca! Some! Escapa, escapa!
- ... Fia... oh filha... sai daí! Sai daí, fia! Não fica aí!
           
            AF. se ergueu e avançou com as duas mãos sobre a mulher na tela: seus braços atravessaram a projeção, que mudou novamente numa tela negra, oscilando num par de ondas concêntricas: a moça caiu de bruços sobre a bancada e depois deu um pulo pra trás, com cara de susto. Depois de ofegar um pouco seu rosto foi se contorcendo, até terminar numa gargalhada. Ela se deixou cair sobre os objetos na cama e continuou gargalhando: passado o riso esteve séria por um instante e, esfregando as lágrimas que lhe cobriam o rosto, se ergueu com ódio:

- Esses filha da puta! Como a gente vê um negócio desse?! Querem que eu fique louca?! Eu vou ligar pro P. e reclamar dessa bosta! Não é possível, puta que pariu! Puta que pariu!

            Na tela negra havia uma mensagem em caixa baixa, escrita em branco, que dizia:

“a Mental Screen telas mentais não se responsabiliza pelo uso indevido de seu Device. Conferir Art.69 do Código de Defesa do Consumidor on cláusula 25-P: Psychoactive Appliance

            Ela então sacou um celular de bolso e começou a discar um número freneticamente. Segundos depois se levantou e bateu com o celular no balcão, como se quisesse acertar a tela: a projeção ficou preta e o celular em pedaços: bufando ela apanhou uma calça jeans jogada pelo chão e a vestiu, enquanto tirava o roupão sobre a camiseta branca: em seguida colocou os óculos e se aproximou da janela, agora sem nenhuma cautela: H. e P. estavam recostados no veículo. B. estava voltado pra ela e falava muito, gesticulando: AF. estreitou os olhos e começou a sussurrar a leitura, mas antes que tivesse chance de falar uma voz eletrônica, de gênero indefinido, começou a dublar o que o marmanjo dizia. AF. sorriu:

-“... não, não, não, não: nem... chama Nanaê Nana naiana... Nanaê nana... que é? Vai ficar rindo, excelência? Cê tamém barbudo? Foda-se ué: é bonito que só a porra... Vózinha me ensinou, ela era da linha de Umbanda... Oxóssi espreitadô!... a história é bonita... a negra Nanaê tinha voz de anjo e cantava pra sinhazinha dormir. Mas se a sinhazinha acordasse de noite e a negra tivesse no batuque do canjerê, a sinhazinha chorava querendo Nanaê, e o senhor mandava dar chicotada na Nanaê... É, barbaridade isso aí... e se fosse sua mãe? Sua filha? Culto da gente... depois de grande a sinhazinha apanhou respeito pelos Orixás!... fez um povo forte... Cantá? Canto ué: mas se ri sento a quadrada no cês, o respeito!... Nanaê, nana naiana, Nanaê... Nanaê, nana naiana. Como mano e mana na jangana... como mano e mana na jangana, Nanaê...

            O aparelho silenciou a voz eletrônica e mais uma vez começou a tocar a canção, agora com voz clara e imponente de mulher:

- “...Nanaê...
Cantava pra sinhazinha dormir ao luê
Pra ir pra debaixo do pé de café
Fazer canjerê,Nanaê

Nanaê,Nanã,Naiana...

Se sinhazinha acordasse
Antes de Nanaê chegar e começasse a chorar
Senhor mandava amarrar Nanaê
E chibatar Nanaê ...”

- Foda-se. Foda-se... eu vou pra Padre B. Vou pra Padre B.!... Vou procurar a cooperativa de mulheres, uma fazenda comunal, as operárias da indústria de armas, a Milícia das Mães e Viúvas do cerco Dinamarco! MMVD!...

- “... Mas Nanaê,
Se incorporava de Nanã Buruquê
E não sentia a pancada doer
Nanaê...

Nanaê,Nanã,Naiana...

Sinhazinha ninada,embalada no cantar da negrotina Nanaê
Herdou todo o seu ser
Hoje em noite de luana é sinhazinha
Quem vai dançar na Mujungana,Nanaê

Nanaê,Nanã,Naiana...”

            Nisso as sirenes da viatura lá fora começaram a soar e a moça pediu silêncio à tela mental, que obedeceu: em seguida ela correu pra janela e abriu a cortina e o vidro: lá embaixo os três já estavam dentro do veículo e com motor ligado. H., que estava ao volante, acenou para AF. segurando um cigarro entre os lábios e com um sorriso amarelo. Os outros dois, entre apreensivos e excitados, olhavam pra ela também:

- À tout à l’heure, sinhazinha! – gritou o capitão: ela não se manifestou.

            Os três explodiram numa risada exagerada e partiram cantando pneus e buzinando: AF. esteve por um momento olhando a rua deserta. Fazia um silêncio absoluto. Súbito se ouviu uma explosão ao longe, e um suave coro de gritos que começou a vir de lá: dentro do quarto, as luzes e a projeção de tela se apagaram. Não se ouvia nada além do rumor dos gritos e o ranger de dentes de AF., que com dois saltos alcançou a porta do banheiro, sumindo lá dentro.





Jangana
Substantivo De Dois Gêneros
Indivíduo muito alto e desajeitado; Jangaz

Canjerê
Reunião de pessoas para rituais de religiões afro-brasileiras.

Lenda de Nana-Buruquê



Juízo Final:




Meu apelo:





Árvore queimada durante a filmagem:

Nanae Nana naiana

Juízo Final

Meu apelo







4 de jul. de 2011

Crônica Artificial 0.7



Jornalistas
(XY)

            O XY AN. seguia a passo rápido pela madrugada, cortando as vielas de concreto que conduziam à estação P. do metrô. Ele vestia um par de jeans rasgados, botas militares, uma camiseta branca de gola esgarçada, suspensórios vermelhos e um casaco preto reforçado: o cabelo era preto, bem curto, e a barba cerrada. Da lateral do pescoço e sobre o punho esquerdo escapavam (pontiagudas) as arestas de uma grande tatuagem negra, em estilo tribal.

            Ao dobrar uma rua estreita e longa, o rapaz parou sob um poste de luz branca e olhou em redor: à sua direita um muro fino e poroso, montado com placas de concreto, acompanhava a linha do trem, com novelos de arame eletrificado no topo. Pontos de luz branca se sucediam ao longe, até a estação: do outro lado da rua se intercalavam galpões de fábrica, depósitos, barracões com placa de aluga-se e terrenos baldios guardados por cães.

            O rapaz então sacou do bolso um maço de cigarrilhas argentinas da marca Smile-O, e acendeu um com ar desconfiado, segurando-o entre o indicador e o polegar. Depois de algumas tragadas, pouco a pouco, AN. foi perdendo a expressão tensa e suas pálpebras baixaram: lentamente ele ergueu o rosto na direção do foco de luz e estreitou os olhos: através do halo branco que chispava da lâmpada, era possível ver os contornos de uma esfera de vidro...: o rapaz parecia confuso, e as sobrancelhas baixaram com ar de ?... Então: !

            Um ruído alto de corneta desceu sobre AN., que com o susto curvou o corpo, cobrindo a cabeça. Do mesmo alto-falante e no mesmo volume ensurdecedor uma voz sentenciou:

- Flagrante. Flagrante em andamento: viatura 2469-E, contornando o quadrante B6 às 04h20min11seg, interceptará o objeto em 5,4,3...

            Nisso um som de sirene começou a soar, e o brilho do giroflex tingiu de vermelho os fios sobre os trilhos: AN. disparou na direção da estação, atirando o maço de cigarrilhas, a ponta e o isqueiro na linha do trem. No instante seguinte a viatura dobrou a esquina, e o vermelho intermitente das luzes cobriu o caminho de AN.: o rapaz finalmente alcançou a estação, subiu o lance de escadas com dois pulos, tocou o painel da cancela com o polegar e cruzou a persiana de vidro da catraca:

- Pára, pára, pára, carai!

            Ao cruzar a barreira AN. foi interceptado por dois seguranças do metrô, que vinham subindo pela escada rolante: ambos vestiam uniformes pretos com colete a prova de balas e carregavam armas de fogo, além de cassetetes. O mais alto tinha barba e longos dreadlocks, que desciam até o meio das costas. O mais baixo usava um cabelo black armado e encaracolado, além de um prego no lugar de brinco, trespassando o lóbulo da orelha esquerda: nos seus crachás lia-se, respectivamente, C. e P.: claramente seus apelidos.

- Ou, ou, ou, onde cê vai, carai?- disse C. segurando o rapaz pelo colarinho do casaco.

P. sacou a arma com a mão esquerda e apontou na direção da catraca, contra os policiais:

- PP. não bota banca aqui não: vamo ficando atrás da linha amarela, faz favor.

            Os guardas que seguiam AN. eram dois sujeitos de barba feita, que vestiam uniformes caqui com botas de cano alto marrons e bonés da mesma cor. Também estavam armados de pistola e cassetete. Enquanto recuava um deles, o que tinha bigode, disse:

- Passa o paisano pra cá, jurisdição nossa, tem flagrante dele no circuito externo.
- Flagrante?  Seria fragrante né camarada... – disse C. coçando o nariz e se voltando para AN., que ainda sustinha pelo colarinho. Em seguida ele ergueu os braços do rapaz e separou suas pernas com dois chutes, iniciando uma revista. Enquanto fazia a busca sussurrou:

- Cadê o maço, onde cê jogou?...
- Na linha.
- Mas onde na linha, caralho!...
- ... um pouco depois da câmera, do lado de cá... no B6...
- Tá... Ok. Que cartão é esse aqui?... Jornalista... Cê é da Independente, é? Eu sou da Mancha, seu merda... Tava com cara mesmo...  Mas cê deu sorte hoje, hein boy? Vai, sai da minha frente: e fica ligeiro, porra!

            Vendo que o rapaz se afastava na direção das escadas, o guarda da PP. Assoviou e deu um grito:

- Ou, se cê desce essa porra te sento o dedo, filha da puta! Passa o paisano pra cá!
- Baixando a bola aí, PP., quem faz aqui dentro é a Interail, não é não? Tá tirando nossa firma?! Vai, cruza a faixa amarela de novo que eu dô com o caibro na tua cara, bicho! - disse P. golpeando a lateral da cancela com o cassetete.
- PP. Passa fome do caraí... tá atrás do maluco por causa de cigarrilha argentina? Não tão atrás de outra coisa, não? O boy puxa ferro...
- Ahn, já tinha sacado esse bigodinho aqui. O que tá escrito no crachá dele? H.?! Que porra de nome de matuto é esse! O desgraçado não deve saber nem o verbo to be, não durava uma semana no Concentration C.
- Uma semana, nem isso... Ia levar dos polacos até ficar todo assado!
- Ya suck my mother fucking dick! Pricks!
- Ah, mãe da foca, mãe da foca... Fala direito, porra! - dizendo isso C. fechou o punho, ergueu o polegar fazendo jóia e o aproximou da boca. Enquanto falava sua voz saía a todo volume dos alto-falantes espalhados pela estação:
- Attention, attention Interail Security staff: achieving critical mass at gate one. Look for: yellow bastards Yel-low Bas-tards. – e baixando a mão voltou-se para P., que apontava a arma pra a cara de H.
- E aí P.: a bala na agulha é dumdum?
- Dumdum, se é: pra arrancar metade da cara do bigodinho. Não é não, bigodinho?! Não é não, gordinho?! - disse P. para o outro guarda. Os dois recuaram devagar, deram meia volta e foram saindo da estação resmungando e cuspindo no chão:
- Ei, soldado amarelo: a Interail vai pegar geral, de leste a oeste: vagabundo não cruza nossa linha não! E cuidado com essa empresinha de vocês aí: tem gente de olho aqui na área, bom fazer seguro de vida...
- O pior é se tiver que vender pro Estado e virar reiúno! Já pensou? Soldadinho do governo? Babá de maloqueiro? Vão mandar os amarelo pacificar o interior, vish!
- “A vaga tá lá, esperando você...”
- “Já ouviu falar de Lúcifer? Que veio do inferno, cheio de moral, aqui ele é só mais um, comendo rango azedo!”
- É hoje qu’ Interail vai in-va-di!

Nisso os PP. já estavam fora da estação e os seguranças riam alto, intercalando repentes antigos. AN. desceu a escada rolante antes que os guardas se voltassem pra ele: eram na verdade dois lances de escada muito largos, que desciam por um túnel de concreto estreito, de teto baixo. Esse túnel descia por dezenas de metros, quase ao ponto de não se enxergar o fundo: sobre os corrimões que separam uma escada da outra, uma linha de lâmpadas fluorescentes acompanha o caminho até embaixo, muitas delas queimadas:

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            AN. alcançou a enorme plataforma subterrânea, que estava vazia: o rapaz esperou pelo trem muito próximo do fosso, com os dois pés sobre a linha amarela e olhando pra baixo. Por fim o carro n.25 despontou no túnel à esquerda dele, com seu enorme letreiro em neon: o trem não tinha condutor e estava completamente vazio. Dentro do aparelho os vagões não tinham separação interna, e era possível ver o veículo de ponta a ponta: AN. procurou o lugar mais à retaguarda do trem,  de modo que pudesse enxergar todo o comboio, sentando-se alinhado com o corredor.

Antes que o trem partisse, porém, entrou um tipo de macacão verde com o número 25 estampado no peito. O sujeito passava dos 50 anos de idade, era um mulato magro de óculos, bigode e cabelo curto todo branco. Ele carregava uma vassoura e um bastão com um reservatório de lixo, pra recolher o que fosse varrendo: na cintura um molho de chaves tilintava a cada passo que ele dava: o tipo cumprimentou AN. com um aceno de cabeça, foi até o fundo do trem e, com uma das chaves, abriu o painel de controle pra verificar alguns gráficos na planilha digital. Em seguida fechou tudo e começou a varrer o chão com esmero, procurando os cantos mais empoeirados entre os bancos. O rapaz esperou que ele se aproximasse e perguntou:

- O senhor tem horas?

O n.25 parou de varrer, segurou a vassoura diante de si (alinhada com o queixo) e fechou os olhos. Segundos depois os abriu de novo:

- São quatro e 29, velho amigo. E me fala uma coisa, quando cê entrou aqui era de dia ou de noite?
- O senhor não sabe?
- Essa semana tô dobrando todo o dia em turno cruzado. A empresa paga o rebite né, mas a gente fica meio atordoado, com zonzeira... Às vezes não sei se tô indo pra casa ou voltando pro serviço!... Mas é de dia ou não?
- São 4:30 da manhã, amigo. Madrugada...
- Jurava que era dia, bicho... Paciência.

            O funcionário seguiu varrendo entre os vagões articulados, que iam serpeando pela linha irregular: nas curvas mais acentuadas que o trem fazia, os vagões dianteiros desapareciam completamente pra quem estava na retaguarda. Noutra curva reapareciam de repente, num jogo de espelho em que o mesmo ambiente se replicava diante de AN., surgindo e sumindo.

            No fim das curvas, quando os vagões se alinharam mais uma vez, AN. notou a presença de uma terceira pessoa no trem: sentada(o) na cadeira equivalente à sua, três compartimentos adiante, um(a) adolescente de cabelo curto e loiro, vestindo o mesmo jeans maltrapilho, os mesmos suspensórios e coturnos e o casaco reforçado. Ela(e) se levantou e avançou na direção dele com ar decidido, e sem titubear com o sacolejo do trem. Em seguida se sentou de frente para o corredor, muito próximo(a) e já no mesmo vagão de AN.: o rosto da(o) adolescente era sem mácula, de uma androginia conforme, mas transtornado de ódio. Tinha os olhos vermelhos, o maxilar teso, mastigando a si mesmo, a respiração acelerada com movimentos de cabeça que iam da esquerda pra direita, sem descanso: com ar apreensivo AN. não tirava os olhos de uma faca borboleta, cujo cabo despontava de um dos bolsos do(a) outra(o).

            O(A) adolescente então pulou para o banco em frente do rapaz e lhe mostrou uma credencial costurada no forro de seu casaco: era um trapézio invertido e vermelho, com um martelo negro desenhado no centro.

- Salve... É militante da independente também?
- Mais que isso, eu tenho um recado pra você, A.
- Como é?... E quem falou que meu nome é esse aí?
- Eu conheço você A.
- Conhece sim...cê tá na fissura da pedra, amigo, já te saquei. Não tenho nada contra, não irmã, mas precisa sorte: uns vão pelas veia, outras mata, outros morre...
- Mas eu não conheço mais ninguém nesse mundo: cê é a única pessoa que eu conheço, mano velho.
- Na militância?
- ...
- Cê é loco, meu chapa... e não pensa que eu não tô ligado na tua faca de acrílico não. Tá querendo rouba no metrô? Tá maluco? Quem tá na fissura do oxi não gasta crédito com passagem de trem, mina, cê é verde...
- Verde não: tudo que cê sabe eu sei... Mas só conheço você no mundo, então não me vale de porra nenhuma... Mas tem uma coisa, uma única coisa só, que eu sei e que você não sabe. E eu vim pra testemunhar e sumir... Mas é bom sumir: tô pouco me fodendo: sumiu, ficou,  pa puta que pariu...
- ...
- É isso AN...: uma das pessoas que você conhece, e que convive com você há anos, é uma criação sua.
- ...
- Essa pessoa é um delírio seu. Não tem existência física. A relação dela com outros conhecidos em comum é outra ilusão que você arma. Tudo falso, você fala com as paredes... 
- Pô, cê tá no bico do corvo, hein mina? Fumou os miolos?! Moleque folgado do caraí, hackerzinho do icq... Tá querendo me sugestiona é, dona cuca? Sabe meu nome? Sabe meu CPF tamém?!

            Nisso o(a) adolescente sacou a lâmina de fibra com dois giros do cabo articulado:

- Não encosta em mim! Não toca em mim, caralho! Se encosta ni mim te arranco o olho! - urrou a(o) jovem com um fôlego que silenciou AN.

            O trem já se aproximava da estação e ia parando. O(a) adolescente se levantou com a arma em punho e o rapaz, ainda sentado, o encarava com um ódio indisfarçável. Depois do sinal sonoro o jogo de portas se abriu e entrou um segurança no vagão deles: com um sorriso exagerado e desfigurante a(o) jovem se voltou para AN. e disse:

- E eu que, eu que, sempre quis um lugar. Gramado e limpo, assim, verde como o mar!

            E na seqüência se atirou contra o segurança com a faca, cortando-lhe o rosto com um gesto preciso, enquanto atirava o sujeito no chão. Com o susto AN. se viu de pé no centro do corredor, com os braços abertos: encarava o segurança caído, que ainda não reagira. Já não havia mais jovem nenhum(a) e a faca estava jogada num canto: o sinal apitou novamente e as portas começaram a fechar. Ele se atirou pra fora no último momento, mas o segurança não o seguiu: lá de dentro, porém, sacou a arma e apontou para o rapaz através do vidro. O trem  não se moveu por alguns segundos, tempo em que os dois ficaram se encarando, ofegantes. Quando os vagões começaram a andar, o segurança  foi movendo a arma pra mantê-la apontada contra AN. E o manteve assim sob mira, até sumir do ângulo de visão.