Zona
Azul
*
* *
* ? *
*
*
[XX] *
[XY]
- E se
tu tivesse que andar pelo centro da cidade agora de noite sem os óculos? -
perguntou C. estreitando os olhos de
curiosidade.
- Vish, sai fora: nunca. Eu não consigo
ler nem aquela placa ali sem óculos. - respondeu G. apontando pra um letreiro no poste a poucos passos de distância,
onde se lia [Zona Azul].
A
dupla estava sentada numa mesa de madeira na calçada da rua A., sob o toldo de um bar completamente
às escuras. Apenas a luz acobreada da
iluminação pública caia sobre els num plano inclinado: atravessando os copos
dourados de colarinho branco e o casco suado de cerveja.
- Nossa,
e tu tem quantos graus então?... Cinco!... Nem imagino como seja isso, minha
vista sempre foi boa. Já meus dentes... Eu ranjo muito os dentes, sempre rangi.
- E o
que tem que ver a miopia com ranger os dentes?
- Ah,
você não acha que tem que ver com essa coisa de conter uma tensão interna? Segurar uma vontade, um impulso? [ergue
o punho cerrado contra o peito]
Porque todo mundo tem isso de alguma forma, de concentrar as tensões em alguma
parte do corpo, desde que a gente é bebê... - desconversou C. enquanto procurava por um cigarro.
- ...
- É tipo
a criança quando mama num seio, mas não quer enxergar que tem outro peito ali
do lado, sabe? Aí ela desfoca um pouco a vista pra não ver, e isso vai moldando
a retina...
- Faz
sentido.
- Todo
mundo tem alguma coisa contida, é o traço de personalidade nas pessoas. O pacto
delas com o amor, ou sei lá o quê...
Eu, por exemplo, quando criança, tinha a pisada muito torta: pisava pra dentro.
Mas será que isso não era uma inibição minha?
- Pode
ser.
- Porque
é uma rede de inibições que forma o nosso eu: uma série de proibições, de
interditos, que a gente vai aprendendo enquanto cresce... [trago] Tipo uma ameba que alguém fosse cauterizando os tentáculos, até ela se
encaixar numa forma fixa. [gesticula com a brasa do cigarro]
- Caramba,
que loucura isso, mas explicaria muita coisa... [gole de cerveja] E você soube do caso do pastor
que liderou um ataque contra uma delegacia?
- Não sei...
- Parece
que foi durante um protesto, porque um soldado matou um rapaz naquela
comunidade, daí um pastor exaltado subiu numa sacada e talhou uma cruz de sangue à faca na palma da mão,
pra conclamar o povo... Era tanta gente que a polícia fugiu e tomaram a
delegacia.
- Nossa,
e depois?
- Depois
nada! Ficaram lá olhando um pra cara do outro sem saber o que fazer. O pastor fugiu.
- Não
são só pessoas que surtam por aí, os lugares também enlouquecem né. Coitado desse povo...
- Não é?
E falando desse negócio de ameba, li
também que, num país mulçumano do sudeste asiático, eles agora mutilam as
meninas em oficinas mecânicas. Já não cortam mais o clitóris fora com uma gilete
enferrujada como antigamente: eles cauterizam o órgão com um aparelho de
solda...
- Ah, chega... Acho que já esgotou a cota de
assunto trash por hoje, não? A gente
podia ir pra casa fazer uma janta com o pessoal, o que tu acha?
- Muito
bom. Ah, mas nem perguntei se você gostou do filme que a gente assistiu. Você curtiu?
- Hum,
hum, não muito. É filme desses caras que se acham feministas só porque mostram um
monte de mulher se ferrando...
- Então
ele é “desses caras”, é?- perguntou G. rindo, ao que C. respondeu que sim com ar desapontado enquanto apagava o cigarro
na sola do sapato.
*
[anticatexia]
[C = XY] [G = XX]
C. digitou o código de acesso à
entrada do prédio e a tranca se abriu com um zumbido e um clique. Ele segurou a porta para que ela
passasse, e em seguida a bateu atrás
de si com um estrondo de vidro e metal.
- Essa porta é um escândalo.
- Pois
é...
Entraram pelo corredor estreito até um
elevador antiquado, de paredes vermelhas.
Quando a porta fechou els se encararam, sorrindo por um instante antes
de desviar o olhar. Como se se lembrasse de algo subitamente, C. avançou sobre G. com a mão levantada e começou a puxar os respiradores nas paredes do velho elevador, que eram uns buracos
circulares moldurados com tubos. E C.
foi testando uma a uma as saídas de ar, até descobrir qual delas estava solta.
- Tá
fazendo o quê?
- Tem um
tubo desses que sai...
- ?
Nisso o elevador parou com um
solavanco e o tubo solto caiu no chão: C.
e G. pararam por um instante,
esperando alguém entrar. Do lado de fora, uma pessoa não identificada perguntou
através do gradeado:
- Desce?
- Sobe.
- responderam G. e C. em uníssono.
Quando
a porta do elevador se fechou els abaixaram, ao mesmo tempo, pra apanhar o tubo
do respirador e bateram as cabeças.
- Ai! [risos]
Conforme o riso dispersava se entreolharam em silêncio: C. ainda segurava a cabeça com os olhos
cheios d’agua: a orelha vermelha escapando da moldura de cabelos cor de trigo,
a boca pequena e carnuda fechada num muxoxo de dor... Enquanto isso G. levantava a cabeleira negra e
encaracolada por trás dos óculos, mordendo o lábio inferior com uma expressão
preocupada. Ele então se aproxima de
G. e, esfregando a testa dela com a ponta dos dedos:
- Cê
acha que a gente... - sussurrou G.
- Claro!
- disse C. resoluto e, tomando as
mãos dela, beijou-a num gesto lento.
- Espera
eu terminar de falar, jogador! -
brincou G. puxando de leve a orelha
do rapaz.
O elevador parou no [13] andar e saltaram. C. tinha a chave que dava acesso à
cozinha e entraram por lá:
- Você já leu o conto “A causa secreta” do M. de A.? - perguntou G. enquanto acendia a luz do quarto. Em meio à quantidade
abundante de livros, mais ou menos organizada pelas paredes, destacavam-se: uma
cama de casal sem cabeceira, uma rede armada entre duas paredes e uma grande
mesa de estudos, sobre a qual uma luminária de luz branca iluminava um grande aquário:
- Oh... - fez o rapaz C. indo na direção da mesa. Ele
aproximou o rosto do vidro e seus olhos arregalaram:
- Essa
aí é a Slorca: a lesma. Minha lesma chamada Slorca...
. .
\ /
○
[hi,
how are you?]
- Ela é muito linda! E meu deus, que grande, que poderosa ela… Mas por que mesmo que tu tens uma lesma, G.?
- Ah, é que o goiano
ia fazer uma performance com ela:
iam colocar a bichinha viva dentro de um círculo
de sal e depois ir estreitando o círculo pra fazer ela subir numa navalha...
- Ai, que horror...
O horror, o horror! [risos]
- No começo eu até que achei a ideia interessante,
sabia? Tanto que me dispus a criar a lesma
aqui no meu quarto até ela ficar de
um tamanho bom, porque ela chegou
bem pequenina, a Slorca...
- Quer dizer então que não vai mais ter navalha nem círculo de sal...
- Nem a pau! Agora todo mundo ama ela aqui em casa né. Aí no aquário tem
presentinhos de todo mundo pra ela:
essas pedras de turmalina foi o goiano
que deu e a casinha de madeira com teto de palha foi obra da marciana.
- Que fofo...
- Já o
laguinho rodeado de pedras foi talento da menina
do rio, e esses cogumelos lindos crescendo no tapete de musgo são culturas trazidas pelo moço da ilha, seu conterrâneo e nosso
amigo micólogo.
- Ah, eu também queria fazer alguma coisa pra Slorca.
- Ela
gosta muito de pepino... [risos]
- Tava pensando mais num brinquedo... - disse C. voltando-se
para G. com um beijo. Ela estava sentada na beira da cama e ele de joelhos diante dela, que parou um instante pra
perguntar:
- Conhece essa
música? Trying to remember, but my
feelings can’t know for sure…
[tentando lembrar, mas
meus sentimentos não podem saber com certeza]
- Não... -
respondeu C. espantado e com um
sorriso, porque G. cantava com perfeita
voz de criança. Ela continuou:
- Lucky stars in your eyes... I’m
walking the cow... [risos]
[estrelas da sorte em
teus olhos] [eu estou passeando com a vaca]
- !
- I really don’t know how I came here... I
really don’t know why I’m stayin’ here...
[eu realmente não sei
como vim parar aqui]
[eu realmente não sei por que tô
ficando aqui]
- Oh, Oh, Oh.
I’m walking the cow... Muuu!
- cantou C. junto e riram deitando e
se abraçando:
- A vaca é um animal
sagrado, a vaca profana...
- E ela
tem olhos bondosos! Que nem os da Helena de Tróia...
- E agora quem tá falando o quê?
- Eu digo: beijo.
Beijo e procura...
- Também digo beijo!
- Então beija-me,
Benjamin... Me beija.
- Hum...
- ...
~~~v ~~~v ~~~v ~~~v
[catexia]
[C = XX] [G = XY]
C. digitou o código de acesso à
entrada do prédio e a tranca se abriu com um zumbido e um clique. Ela segurou a porta para que ele
passasse, e em seguida a bateu atrás
de si com um estrondo de vidro e metal.
- Essa porta é um escândalo.
- Pois
é...
Entraram pelo corredor estreito até um
elevador antiquado, de paredes vermelhas.
Quando a porta fechou els se encararam, sorrindo por um instante antes
de desviar o olhar. Como se se lembrasse de algo subitamente, C. avançou sobre G. com a mão levantada e começou a puxar os respiradores nas paredes do velho elevador, que eram uns buracos
circulares moldurados com tubos. E C.
foi testando uma a uma as saídas de ar, até descobrir qual delas estava solta.
- Tá
fazendo o quê?
- Tem um
tubo desses que sai...
- ?
Nisso o elevador parou com um
solavanco e o tubo solto caiu no chão: C.
e G. pararam por um instante,
esperando alguém entrar. Do lado de fora, um rapaz negro atlético e bem vestido
abriu a porta, perguntando em seguida num tom quase infantil:
- Desce?
- Sobe.
- responderam G. e C. em uníssono.
Quando
a porta do elevador se fechou els abaixaram, ao mesmo tempo, pra apanhar o tubo
do respirador e bateram as cabeças.
- Ai! [risos]
Conforme o riso dispersava se entreolharam em silêncio: C. ainda segurava a cabeça com os olhos
cheios d’agua: a orelha vermelha escapando da moldura de cabelos cor de trigo,
a boca pequena e carnuda fechada num muxoxo de dor... Enquanto isso G. levantava a cabeleira negra e
encaracolada por trás dos óculos, mordendo o lábio inferior com uma expressão
preocupada. Ela então se aproxima de
G. e, esfregando a testa dele com a ponta dos dedos diz:
- Desculpa,
será que vai fazer galo?...
- Espero
que sim, espero que cresça... - disse
G. rindo e, tomando as mãos dela, beijou-a num gesto lento.
- Ou,
você não perde tempo hein, jogador! -
disse C. puxando de leve a orelha do
rapaz. Ele aproveitou o movimento
pra se aproximar, tentando outro beijo ao que ela sorria, desviando a boca algumas vezes pra provoca-lo.
- Não sei, não sei... Mas será quê?... - sussurrou
C. e, por fim, retribuiu o beijo,
que se alongou por alguns andares.
O elevador parou no [13] andar e els saltaram ainda se
abraçando, com os cabelos em desalinho. Quando abriram a porta encontraram a
cozinha às escuras, exceto pela luz de
uma vela.
- Mas o
que será que aconteceu aqui? - perguntou G.
incrédulo.
- Sei
não...
- Vamos
pro quarto deitar um pouco até els chegarem? Deixa essa vela aí... [sussurrando]
- ...
- Você
já leu o conto “A causa secreta” do M. de A.? - perguntou G.
enquanto acendia a luz do quarto. Em meio à quantidade abundante de livros,
mais ou menos organizada pelas paredes, destacavam-se: uma cama de casal sem
cabeceira, uma rede armada entre duas paredes, e uma grande mesa de estudos,
sobre a qual uma luminária de luz branca iluminava um grande aquário vazio:
G.
se adiantou e sentou na rede pra tirar os sapatos. Em seguida se jogou de
costas com um suspiro profundo, balançando e abrindo os braços. C. chegou-se e deitou sobre ombro
direito dele, puxando uma coberta. Estiveram ali por algum tempo sem falar. Até
que C., suspirando, começou:
- Por
que aquele aquário tá vazio?
- Não tá
vazio, tem um pouco de água.
- Sim,
mas só água?... Tem alguma criatura ali?
- Que eu
saiba não, nada visível pelo menos, não quero essa responsabilidade...
- O que os olhos não vêm né... Mas deve
ter uns nematoides ali, vai.
- Sim, ou
uns nematelmintos! Esses caras são terríveis...
- Mas e “A causa secreta”?
- Ah, claro, o conto “A causa secreta”, é que pra mim ficou um assunto mal resolvido com
essa história, e precisamos discutir isso um pouco aqui na rede...
- Sei...
Mas tu perguntaste se eu já tinha lido este conto aí né, e na real eu não li
não. Li pouco do M. de A.
- É uma
história mó triste né, nem sei por que estou falando disso... Mas é que tem uma cena terrível na história, em que um cara corta um ratinho com uma
tesoura, e depois vai chamuscando o bicho
vivo numas chamas que ele fez com espírito
de vinho...
- Ai,
que horror... O horror, o horror! [risos]
- Pois
é, e eu fiquei com essa imagem na cabeça... Só que o restante da história tem
muita relação com isso, com o prazer
doentio que um sujeito pode sentir com o sofrimento dos outros... É uma
história muito boa, mas terrível, digo, tremenda né. Fala da nossa má infinidade, das loucuras que se reproduzem no país
desde sempre. Aqui é o grande catálogo de
patologias mentais, fruto de toda essa crueldade
social né, que deixa o povo dessa
nação maluco...
- Nossa... Agora que tu disseste assim não
sei se quero ler esse conto não.
- Leia,
leia sim. O conto é muito mais do que isso que isso que tô falando. A morte do
ratinho é só a ponta do iceberg, isso porque as pessoas na história também são
uns animais em perigo, por assim
dizer...
- E quem
não? Nós também... Agora fiquei com
vontade de ler de novo. [beijam-se longamente]
- [suspiro] Ai, que vida boa, olerê... Ai, que vida boa, olará...
- O estandarte do sanatório geral vai passar...
[cantando]
- O Estandarte
do sanatório geral! [risos]
- ... [longo
silêncio - bocejos]
□