13 de jul. de 2016

Crônica Artificial 0.4.0






Zona Azul

                                                                                      *
                                          *                         *
                       *          ?          *
                   *              *
                      [XX]   *   [XY]

- E se tu tivesse que andar pelo centro da cidade agora de noite sem os óculos? - perguntou C. estreitando os olhos de curiosidade.
- Vish, sai fora: nunca. Eu não consigo ler nem aquela placa ali sem óculos. - respondeu G. apontando pra um letreiro no poste a poucos passos de distância, onde se lia [Zona Azul].
A dupla estava sentada numa mesa de madeira na calçada da rua A., sob o toldo de um bar completamente às escuras. Apenas a luz acobreada da iluminação pública caia sobre els num plano inclinado: atravessando os copos dourados de colarinho branco e o casco suado de cerveja.
- Nossa, e tu tem quantos graus então?... Cinco!... Nem imagino como seja isso, minha vista sempre foi boa. Já meus dentes... Eu ranjo muito os dentes, sempre rangi.
- E o que tem que ver a miopia com ranger os dentes?
- Ah, você não acha que tem que ver com essa coisa de conter uma tensão interna? Segurar uma vontade, um impulso? [ergue o punho cerrado contra o peito] Porque todo mundo tem isso de alguma forma, de concentrar as tensões em alguma parte do corpo, desde que a gente é bebê... - desconversou C. enquanto procurava por um cigarro.
- ...
- É tipo a criança quando mama num seio, mas não quer enxergar que tem outro peito ali do lado, sabe? Aí ela desfoca um pouco a vista pra não ver, e isso vai moldando a retina...
- Faz sentido.
- Todo mundo tem alguma coisa contida, é o traço de personalidade nas pessoas. O pacto delas com o amor, ou sei lá o quê... Eu, por exemplo, quando criança, tinha a pisada muito torta: pisava pra dentro. Mas será que isso não era uma inibição minha?  
- Pode ser.
- Porque é uma rede de inibições que forma o nosso eu: uma série de proibições, de interditos, que a gente vai aprendendo enquanto cresce... [trago] Tipo uma ameba que alguém fosse cauterizando os tentáculos, até ela se encaixar numa forma fixa. [gesticula com a brasa do cigarro]
- Caramba, que loucura isso, mas explicaria muita coisa... [gole de cerveja] E você soube do caso do pastor que liderou um ataque contra uma delegacia?
- Não sei...
- Parece que foi durante um protesto, porque um soldado matou um rapaz naquela comunidade, daí um pastor exaltado subiu numa sacada e talhou uma cruz de sangue à faca na palma da mão, pra conclamar o povo... Era tanta gente que a polícia fugiu e tomaram a delegacia.
- Nossa, e depois?
- Depois nada! Ficaram lá olhando um pra cara do outro sem saber o que fazer. O pastor fugiu.
- Não são só pessoas que surtam por aí, os lugares também enlouquecem né. Coitado desse povo...
- Não é? E falando desse negócio de ameba, li também que, num país mulçumano do sudeste asiático, eles agora mutilam as meninas em oficinas mecânicas. Já não cortam mais o clitóris fora com uma gilete enferrujada como antigamente: eles cauterizam o órgão com um aparelho de solda...
- Ah, chega... Acho que já esgotou a cota de assunto trash por hoje, não? A gente podia ir pra casa fazer uma janta com o pessoal, o que tu acha?
- Muito bom. Ah, mas nem perguntei se você gostou do filme que a gente assistiu. Você curtiu?
- Hum, hum, não muito. É filme desses caras que se acham feministas só porque mostram um monte de mulher se ferrando...
- Então ele é “desses caras”, é?- perguntou G. rindo, ao que C. respondeu que sim com ar desapontado enquanto apagava o cigarro na sola do sapato.


*
[anticatexia]
[C = XY] [G = XX]
C. digitou o código de acesso à entrada do prédio e a tranca se abriu com um zumbido e um clique. Ele segurou a porta para que ela passasse, e em seguida a bateu atrás de si com um estrondo de vidro e metal.
- Essa porta é um escândalo.
- Pois é...
            Entraram pelo corredor estreito até um elevador antiquado, de paredes vermelhas.  Quando a porta fechou els se encararam, sorrindo por um instante antes de desviar o olhar. Como se se lembrasse de algo subitamente, C. avançou sobre G. com a mão levantada e começou a puxar os respiradores nas paredes do velho elevador, que eram uns buracos circulares moldurados com tubos. E C. foi testando uma a uma as saídas de ar, até descobrir qual delas estava solta.
- Tá fazendo o quê?
- Tem um tubo desses que sai...
- ?
            Nisso o elevador parou com um solavanco e o tubo solto caiu no chão: C. e G. pararam por um instante, esperando alguém entrar. Do lado de fora, uma pessoa não identificada perguntou através do gradeado:
- Desce?
- Sobe. - responderam G. e C. em uníssono.
Quando a porta do elevador se fechou els abaixaram, ao mesmo tempo, pra apanhar o tubo do respirador e bateram as cabeças.
- Ai! [risos]
              Conforme o riso dispersava se entreolharam em silêncio: C. ainda segurava a cabeça com os olhos cheios d’agua: a orelha vermelha escapando da moldura de cabelos cor de trigo, a boca pequena e carnuda fechada num muxoxo de dor... Enquanto isso G. levantava a cabeleira negra e encaracolada por trás dos óculos, mordendo o lábio inferior com uma expressão preocupada. Ele então se aproxima de G. e, esfregando a testa dela com a ponta dos dedos:
- Cê acha que a gente... - sussurrou G.
- Claro! - disse C. resoluto e, tomando as mãos dela, beijou-a num gesto lento.
- Espera eu terminar de falar, jogador! - brincou G. puxando de leve a orelha do rapaz.
            O elevador parou no [13] andar e saltaram. C. tinha a chave que dava acesso à cozinha e entraram por lá:
 - Você já leu o conto “A causa secreta” do M. de A.? - perguntou G. enquanto acendia a luz do quarto. Em meio à quantidade abundante de livros, mais ou menos organizada pelas paredes, destacavam-se: uma cama de casal sem cabeceira, uma rede armada entre duas paredes e uma grande mesa de estudos, sobre a qual uma luminária de luz branca iluminava um grande aquário:
 - Oh... - fez o rapaz C. indo na direção da mesa. Ele aproximou o rosto do vidro e seus olhos arregalaram:
- Essa aí é a Slorca: a lesma. Minha lesma chamada Slorca...
                 .  .  
                                 \  /
                                                                                               
                                     [hi, how are you?]

- Ela é muito linda! E meu deus, que grande, que poderosa ela… Mas por que mesmo que tu tens uma lesma, G.?
- Ah, é que o goiano ia fazer uma performance com ela: iam colocar a bichinha viva dentro de um círculo de sal e depois ir estreitando o círculo pra fazer ela subir numa navalha...
- Ai, que horror... O horror, o horror! [risos]
- No começo eu até que achei a ideia interessante, sabia? Tanto que me dispus a criar a lesma aqui no meu quarto até ela ficar de um tamanho bom, porque ela chegou bem pequenina, a Slorca...
- Quer dizer então que não vai mais ter navalha nem círculo de sal...
- Nem a pau! Agora todo mundo ama ela aqui em casa né. Aí no aquário tem presentinhos de todo mundo pra ela: essas pedras de turmalina foi o goiano que deu e a casinha de madeira com teto de palha foi obra da marciana.
- Que fofo...
 - Já o laguinho rodeado de pedras foi talento da menina do rio, e esses cogumelos lindos crescendo no tapete de musgo são culturas trazidas pelo moço da ilha, seu conterrâneo e nosso amigo micólogo.
- Ah, eu também queria fazer alguma coisa pra Slorca.
- Ela gosta muito de pepino... [risos]
- Tava pensando mais num brinquedo... - disse C. voltando-se para G. com um beijo. Ela estava sentada na beira da cama e ele de joelhos diante dela, que parou um instante pra perguntar:
- Conhece essa música? Trying to remember, but my feelings can’t know for sure
                                                         [tentando lembrar, mas meus sentimentos não podem saber com certeza]
- Não... - respondeu C. espantado e com um sorriso, porque G. cantava com perfeita voz de criança. Ela continuou:
- Lucky stars in your eyes...   I’m walking the cow... [risos]
   [estrelas da sorte em teus olhos]              [eu estou passeando com a vaca]
- !
- I really don’t know how I came here... I really don’t know why I’m stayin’ here...
  [eu realmente não sei como vim parar aqui]                         [eu realmente não sei por que tô ficando aqui]
- Oh, Oh, Oh.  I’m walking the cow... Muuu! - cantou C. junto e riram deitando e se abraçando:
- A vaca é um animal sagrado, a vaca profana...
- E ela tem olhos bondosos! Que nem os da Helena de Tróia...
- E agora quem tá falando o quê?
- Eu digo: beijo. Beijo e procura...
- Também digo beijo!
- Então beija-me, Benjamin... Me beija.
- Hum...
- ...
                                             ~~~v    ~~~v     ~~~v     ~~~v    



[catexia]
[C = XX] [G = XY]


C. digitou o código de acesso à entrada do prédio e a tranca se abriu com um zumbido e um clique. Ela segurou a porta para que ele passasse, e em seguida a bateu atrás de si com um estrondo de vidro e metal.
- Essa porta é um escândalo.
- Pois é...
            Entraram pelo corredor estreito até um elevador antiquado, de paredes vermelhas.  Quando a porta fechou els se encararam, sorrindo por um instante antes de desviar o olhar. Como se se lembrasse de algo subitamente, C. avançou sobre G. com a mão levantada e começou a puxar os respiradores nas paredes do velho elevador, que eram uns buracos circulares moldurados com tubos. E C. foi testando uma a uma as saídas de ar, até descobrir qual delas estava solta.
- Tá fazendo o quê?
- Tem um tubo desses que sai...
- ?
            Nisso o elevador parou com um solavanco e o tubo solto caiu no chão: C. e G. pararam por um instante, esperando alguém entrar. Do lado de fora, um rapaz negro atlético e bem vestido abriu a porta, perguntando em seguida num tom quase infantil:
- Desce?
- Sobe. - responderam G. e C. em uníssono.
Quando a porta do elevador se fechou els abaixaram, ao mesmo tempo, pra apanhar o tubo do respirador e bateram as cabeças.
- Ai! [risos]
              Conforme o riso dispersava se entreolharam em silêncio: C. ainda segurava a cabeça com os olhos cheios d’agua: a orelha vermelha escapando da moldura de cabelos cor de trigo, a boca pequena e carnuda fechada num muxoxo de dor... Enquanto isso G. levantava a cabeleira negra e encaracolada por trás dos óculos, mordendo o lábio inferior com uma expressão preocupada. Ela então se aproxima de G. e, esfregando a testa dele com a ponta dos dedos diz:
- Desculpa, será que vai fazer galo?...
- Espero que sim, espero que cresça... - disse G. rindo e, tomando as mãos dela, beijou-a num gesto lento.
- Ou, você não perde tempo hein, jogador! - disse C. puxando de leve a orelha do rapaz. Ele aproveitou o movimento pra se aproximar, tentando outro beijo ao que ela sorria, desviando a boca algumas vezes pra provoca-lo.
- Não sei, não sei... Mas será quê?... - sussurrou C. e, por fim, retribuiu o beijo, que se alongou por alguns andares.
            O elevador parou no [13] andar e els saltaram ainda se abraçando, com os cabelos em desalinho. Quando abriram a porta encontraram a cozinha às escuras, exceto pela luz de uma vela.
- Mas o que será que aconteceu aqui? - perguntou G. incrédulo.
- Sei não...
- Vamos pro quarto deitar um pouco até els chegarem? Deixa essa vela aí... [sussurrando]
- ...
- Você já leu o conto “A causa secreta” do M. de A.? - perguntou G. enquanto acendia a luz do quarto. Em meio à quantidade abundante de livros, mais ou menos organizada pelas paredes, destacavam-se: uma cama de casal sem cabeceira, uma rede armada entre duas paredes, e uma grande mesa de estudos, sobre a qual uma luminária de luz branca iluminava um grande aquário vazio:
            G. se adiantou e sentou na rede pra tirar os sapatos. Em seguida se jogou de costas com um suspiro profundo, balançando e abrindo os braços. C. chegou-se e deitou sobre ombro direito dele, puxando uma coberta.  Estiveram ali por algum tempo sem falar. Até que C., suspirando, começou:
- Por que aquele aquário tá vazio?
- Não tá vazio, tem um pouco de água.
- Sim, mas água?... Tem alguma criatura ali?
- Que eu saiba não, nada visível pelo menos, não quero essa responsabilidade...
- O que os olhos não vêm né... Mas deve ter uns nematoides ali, vai.
- Sim, ou uns nematelmintos! Esses caras são terríveis...
- Mas e “A causa secreta”?
 - Ah, claro, o conto “A causa secreta”, é que pra mim ficou um assunto mal resolvido com essa história, e precisamos discutir isso um pouco aqui na rede...
- Sei... Mas tu perguntaste se eu já tinha lido este conto aí né, e na real eu não li não. Li pouco do M. de A.
- É uma história mó triste né, nem sei por que estou falando disso...  Mas é que tem uma cena terrível na história, em que um cara corta um ratinho com uma tesoura, e depois vai chamuscando o bicho vivo numas chamas que ele fez com espírito de vinho...
- Ai, que horror... O horror, o horror! [risos]
- Pois é, e eu fiquei com essa imagem na cabeça... Só que o restante da história tem muita relação com isso, com o prazer doentio que um sujeito pode sentir com o sofrimento dos outros... É uma história muito boa, mas terrível, digo, tremenda né. Fala da nossa má infinidade, das loucuras que se reproduzem no país desde sempre. Aqui é o grande catálogo de patologias mentais, fruto de toda essa crueldade social né, que deixa o povo dessa nação maluco...
- Nossa... Agora que tu disseste assim não sei se quero ler esse conto não.
- Leia, leia sim. O conto é muito mais do que isso que isso que tô falando. A morte do ratinho é só a ponta do iceberg, isso porque as pessoas na história também são uns animais em perigo, por assim dizer...
- E quem não? Nós também... Agora fiquei com vontade de ler de novo. [beijam-se longamente]
- [suspiro] Ai, que vida boa, olerê... Ai, que vida boa, olará...
- O estandarte do sanatório geral vai passar... [cantando]
 - O Estandarte do sanatório geral[risos]
- ... [longo silêncio - bocejos]
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