10 de abr. de 2016

Crônica Artificial 0.2.0

        

          X
                                                                [comossomos]


P. e J. subiam de braços dados a escada rolante que vinha do subsolo da estação.  À superfície, uma garoa fina e leitosa castigava a cidade, ocultando na neblina o topo dos prédios:

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                                 IIIIIIIIIIIII ̪  IIIIIIIIIII IIII  
                                   . . . . . .. . . ..  ..     ..  .. .  ..  .  .    ...... ... ... ..  .... ...

Os dois estremeceram ao entrar na nevoa e tiveram de se aproximar ainda mais, enroscando os cabelos compridos e as barbas. Seguiram pelo calçamento imundo em silêncio, de cabeça baixa.

Mais à frente, uma das faixas da avenida estava tomada por um grupo de fanáticos: e uma longa fila de carros se aproximava deles muito devagar, manobrando para contorná-los. Os automóveis avançavam como em procissão, pois não se ouvia nenhum grito ou som de buzina.

A multidão se concentrava no Vão-Livre sob o antigo museu, a enorme Laje de Concreto, pois ali havia um imenso tanque de vidro sobre um palco elevado:
                                                                                  ̪
                                             
                                                             
          O grande aquário tinha as proporções de um container, e os ângulos vedados com chapas de metal. A face de trás da sala de vidro estava coberta por um papel de parede vermelho, pontilhado de flores douradas. No meio, em destaque, uma cortina de veludo azul, presa num trilho de chuveiro, circundava um pequeno altar de pedra:

             [̟̽* ̽ ̟* ̽ ̟*̽ ̟ ̟* ̽ ̟* ̽ ̟*]



Para se proteger da chuva, P. e J. pararam sob o mesmo Vão-Livre, mas pouco antes da aglomeração. Em seguida passaram a torcer os cabelos, secando as barbas nas mangas do paletó. Diante deles o grupo de devotos era formado quase exclusivamente por homens de meia idade, alguns poucos acompanhados dos filhos. Eles se persignavam e rezavam em coro, puxados por alto falantes instalados no topo do grande aquário. Ali também havia dezenas de travestis, que se aglomeravam afastadas da massa: elas cobriam as cabeças com véus e seguravam rosários de búzios junto ao peito, orando a meia voz.  Como a função estivesse prestes a começar, os dois engravatados se viram rodeados de transexuais e garotos de programa, que iam chegando timidamente, de mãos postas, tomando distância segura dos extremistas.

Em torno do palco de vidro havia uma faixa de isolamento. Atrás dela, um sujeito alto: vestindo batina preta com uma gravata borboleta vermelha, apareceu e se colocou entre a vidraça e o povo. Ele estava muito maquiado, com o rosto coberto de pó, e tinha os lábios exageradamente vermelhos, além da sombra pesada sob os olhos. Súbito ele ergueu os braços e os alto-falantes calaram: a multidão foi silenciando em ondas, até que só se ouvisse entre eles tosses espaçadas. O mestre de cerimônia então baixou os braços num gesto lento, formando semicírculos no ar.  Em seguida juntou as palmas das mãos sob o queixo e inclinou o rosto para cima: na direção do teto de concreto. Seus olhos ficaram brancos como os de um convulsivo, e ele principiou a gemer tão alto que podia ser ouvido entre as últimas fileiras da multidão. De repente engatou no gemido o primeiro verso de um uma estranha oração, que começava dizendo:        

- Oh, flor do céu!

Após uma pausa a multidão respondeu em coro:

- Oh flor cândida e pura...

E seguiram declamando os versos enquanto o apresentador saia pela esquerda, inclinando-se quase até o chão. Todos se voltaram para o altar no centro do tanque: e os versos iam sendo cantados com mais intensidade na medida em que as cortinas começaram a se separar. Logo, dentre os cortes de veludo, surgiu uma adolescente magra e assustada:

              [̟̽* ̽ ̟* ̽ ̟*̽ ̟ || ̟* ̽ ̟* ̽ ̟*]


A moça tinha uma cabeleira castanha que lhe descia até a cintura, e usava um vestido de chita azul-claro, além de chinelas de dedo. Percebendo o tamanho da multidão a pequena engoliu em seco, rangendo os dentes através do vidro. Ao vê-la os carolas todos vieram abaixo com aplausos e lágrimas: alguns senhores desmaiaram.

 P. se sentiu tocado pela visão da moça e teve de desviar o olhar: assediado por um choro incontrolável. J. tocou-lhe o ombro e, com os olhos rasos d`água, P. levantou o rosto e tornou a acompanhar a apresentação. A garota descera do altar, tinha a mão esquerda pousada no peito e a direita sobre os lábios, que forçavam um sorriso. Todos cantavam louvores apaixonados à mãe gentil e olhavam suplicantes para a pequena, que em seguida ergueu o braço num aceno. Um dos beatos que estava à beira do palco, sentindo-se alvo do cumprimento, caiu em prantos e passou a gritar ainda mais alto que a ladainha:

- A benção, santinha! Eu não mereço a tua saudação, Dona, eu não mereço!...       

Logo todos começaram com a mesma súplica: empurrando-se de lado a lado pra chamar a atenção da moça. Ela passou a andar ao longo do aquário, distribuindo acenos e sorrindo, e os que se sentiam tocados por seus olhos caiam de joelhos ou gritavam em histeria. O barulho tornou-se insuportável e a situação parecia querer sair do controle. A garota então parou com os acenos e tocou o ouvido direito com o indicador, olhando pra o alto com expressão angustiada.

Com um aceno positivo ela retornou para o altar e esperou algum tempo, olhando ora para esquerda ora para a direita de modo impaciente... Súbito ela tocou novamente o ouvido interno e, de modo atrapalhado, moveu os lábios com um pouco de atraso pra dublar uma voz potente, de mulher madura, que soava pelos altos falantes:

- Meus filhos... Eu-amo-todos-vocês...  Muito...

Os homens explodiram mais uma vez em aplausos e assovios, que foram pouco a pouco amainando. A moça, imitando os gestos do sacerdote, inclinou o rosto na direção do teto de vidro e juntou as mãos sob o queixo. Das caixas de som, uma canção antiga ecoava com chiado em meio à multidão silenciosa. A moça mantinha-se na mesma posição de êxtase, os olhos virados para o alto. Foi então dentro do aquário, à sua direita: um alçapão se abriu na parte inferior, e um capacete de metal despontou dele. Ergueu-se dali um sujeito vestindo um velho uniforme de mergulhador, na verdade um escafandro: com botas de ferro e uma mangueira de ar presa na parte de trás da cabeça. Trazia consigo um punhado de rosas vermelhas:

          [ * ● ]

Aproximando-se dela devagar, ajoelhou-se à sua direita e lhe estendeu o buquê. Come que em transe, olhando pra cima, a pequena baixou as mãos e abraçou feixe de flores, que se espalharam sobre ela, cobrindo-lhe o pescoço e o peito. O escafandrista, ainda de joelhos, enlaçou com os braços os quadris da moça, e segurou com as mãos a barra do vestido. Os olhos dela, então, reviraram nas órbitas: brancos como leite. Apertando ainda mais o buquê junto de si, ela começou a subir com as rosas, bem devagar, na direção do próprio rosto. Enquanto isso, o mergulhador ia subindo seu vestido de chita até o meio das coxas.
 Quando as flores terminaram de cobrir-lhe a face ela já estava nua a partir do umbigo. A visão do sexo dela causou grande algazarra entre os homens, alguns batiam no próprio peito de punho cerrado e berravam como crianças. Outros jogavam os braços para o ar e cantavam com as caixas de som:

-... Da minha vidaaa, do meu destino, do meu caminho... Cuida de mim!

Os espinhos da roseira acabaram por rasgar a pele da pequena: grossos filetes de sangue começaram a escorrer por seus braços e estômago.

No outro extremo, P. desabara num choro aberto: gritando palavras de ódio por sobre o coro dos crentes. Soltando-se do amigo, forçou passagem em meio à multidão para se aproximar do aquário, mas no caminho se abaixou e agarrou um pedregulho. J. o seguiu de perto e conseguiu impedi-lo, segurando o punho que carregava a pedra:

- Assim você faz mal a ela só, não adianta...

-Mas não pode esses filhos da puta! Não pode!... Porque não proíbem essa merda?...
- ...

J. puxou P. para longe e voltaram pra avenida P. sob a chuva rala. Cruzaram a rua entre os carros parados e foram se afastando da aglomeração em silêncio. P. se refazia esfregando os olhos vermelhos nos punhos fechados...  

À esquerda deles, as copas das árvores transbordavam por sobre a muralha que circundava o parque T. Aqui e ali se viam pixações em forma de alvo, feitas pelos radicais do PV, que prometiam botar o muro abaixo:


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                    Ý,;.Ϋ.;,;Ÿ.;.Ŷ.;.Ȳ,;Ÿ.,.;;ȲŶʏÝ.,.
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P. e J. circundaram o parque e, alguns metros à frente, chegaram a um prédio de escritórios mudado em alojamento. Na entrada, o porteiro descansava por detrás de uma barricada improvisada: fizera para si uma poltrona de sacos de areia, e cochilava com o fuzil entre as pernas. Quando notou a aproximação dos rapazes o sujeito, sem demonstrar constrangimento, tocou a aba do boné e acenou com a cabeça. Os dois então saltaram a barricada, contornaram um par de catracas enferrujadas e cruzaram o saguão.

 Os rapazes se acomodaram no fundo do elevador, de costas para um espelho estilhaçado, e a porta dupla fechou diante deles. J. se voltou para P. e correu-lhe a mão esquerda sobre o peito até alcançar o ombro oposto, envolvendo-o num abraço. Esteve assim por algum tempo, de olhos fechados, com a testa colada à lateral do rosto do amigo. Por fim deu-lhe um beijo na face que se oferecia. O outro não demonstrou reação. 
             
 J. suspirou, afastando-se dele novamente e cruzando os braços. Em seguida deu com a ponta dos dedos no paletó do amigo e um frasco de metal retiniu no bolso interno.

- O que é que você andou misturando com esse gim? 

- Nada, umas paradas aí...

O elevador parou com um solavanco e os dois saltaram num corredor de paredes brancas.  J. deu-lhe um tapinha nas costas:

- Não fica bravo. Só queria saber o que é que te dá tanta coragem... Cê sabe que o sangue ali na moça, com as rosas, era falso né? [avançam  pelo corredor]

- O sangue era falso?

- Claro. Pois como é que vão ficar cortando a coitada a cada apresentação todo dia? Essa trupe roda a cidade inteira, a performer precisa estar bem. E tem a possibilidade de que ela nem seja mulher de verdade, digo, ser mulher nas células, com XX registrado de fábrica lá. Pode ser que ela seja operada...

- ... [suspiro]
                                              
Ao final do corredor havia uma janela que dava para o parque T. A noite se aproximava depressa, trazida por densas nuvens carregadas. O arvoredo abalado pelo vento chiava com grande clamor: é uma cabeleira crespa que emaranha com o céu... Assombrou-se P.

                                                  [ŸŶȲŸ]

J. chamou pelo companheiro duas vezes sem ouvir resposta: o outro olhava pra rua com a boca entreaberta. Nisso meteu a mão dentro do bolso do companheiro, procurando pela chave. Encontrou-a, deu um passo à direita e abriu a porta. Entraram.

P. se sentou à beira da cama com as mãos sobre os joelhos, enquanto J. se aproximou das persianas e as abriu: deixando entrar uma luz minguada e cinza. O quarto de P. estava em completa desordem: cobertores e lençóis se enrolavam pelo chão, rodeados de pilhas de livros, revistas e papeis rasurados. Nas paredes, noticias de jornal dividiam espaço com recortes ampliados de gravuras japonesas: em que os amantes tinham genitálias enormes. Aqui e ali, montes de papel higiênico usado se misturavam a tufos de cabelo, poeira e embalagens de chocolate.

J. ajoelhou-se ao pé do amigo catatônico, que parecia olhar através dele. Por fim bocejou, baixando as pálpebras, e J. o sacudiu:

- Cara, eu vou viajar nesse fim de semana, vou visitar meu pai lá em I...

- ...

- E porque você não faz alguma coisa também, P.? Procura alguém. Onde estão teus irmãos?

- Eu não sei, não sei... Mas ainda que ela seja operada, isso não muda em nada a situação miserável que a gente vive, bicho... Que história esquisita essa nossa, não é, J.? Que mundo cão esse, meu deus, quem tem vontade de estar aqui?

- Oi? Ah, cê tá continuando a conversa do corredor com uns minutinhos de atraso, ok... [risos - levantam-se]

- Mundo cão... [sussurra - acompanha o amigo até a porta]

- Mas é o único mundo que a gente tem, não é verdade? Ainda que cão, que cão...  Cacofonia?

- ...

- E porque a gente estudou direito, afinal, P.?

- Pra trabalhar, ué...

- Ah, não só pra trabalhar, meu amigo, mas pra servir de lubrificante em relações de exploração e sugar mais-valor das veias do povo! [risos-dá um tapa no ombro]
- ...

- Não quero esconder nenhuma contradição de mim mesmo, custe o que custar... O capitalismo promove a destruição da natureza, do dinheiro e do trabalho, e a gente precisa...

- [suspiro]

- Mas faz alguma coisa esse fim de semana, P. Procura alguém... De qualquer maneira a gente se vê na segunda, querido, beijo...

- ... [selinho]

P. fechou a porta discretamente e se voltou cambaleante para o quarto. Esteve de pé ao lado da cama por algum tempo, olhando o vazio com expressão angustiada, e em seguida passou a procurar por algo sobre o criado-mudo. Quando encontrou um frasco de comprimidos, destampou o vidro com o polegar e entornou duas cápsulas num suspiro. Inclinando-se pra cama ele se deitou de paletó e sapatos e chorou até dormir.



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IIIIIII



Dá pequena janela via-se a tempestade rugir dentro da noite, ouriçando os galhos da mata. O poste da rua despejava uma luz mortiça e avermelhada dentro do quarto. P. estava deitado a descoberto, e abraçava as próprias costelas, aproximando a testa dos joelhos. Como o frio ameaçasse acordá-lo, principiou a sonhar as cenas que se seguem:

Na primeira cena ele se viu nu e imerso num líquido frio e gomoso. Sentia-se a ponto de congelar, e por isso teve de se encolher muito, fazendo cada parte do corpo se aconchegar numa outra o quanto possível. Dado momento P. olha para cima e o rosto do pai primevo encarando-o da superfície. O rapaz se encolhe novamente, enquanto uma mão enorme atravessa o espelho d’água e vem buscá-lo, lentamente, na escuridão. Ela o agarra pela nuca e seu corpo se estica. Na seqüência um punhal de pedra se aproxima dele, empunhado pelo gigante, e faz-lhe um corte vertical na base da espinha.

P. sentiu-se escorrer inteiramente pela ferida, como num desarranjo, e perder-se no abismo abaixo de si. Enquanto isso o pai trazia para a superfície sua pele esvaziada de órgãos e ossos. No meio do caminho, porém, a subida se interrompe e o gigante continua a suster o couro esfolado: agora submerso da cintura pra baixo.

Na segunda cena P. se encontrava numa enfermaria improvisada na quadra de uma escola: e estava sentado ao pé do leito de sua mãe. Enfermeiros e voluntários andavam de um lado para o outro carregando baldes cheios de sangue e braçadas de lençóis sujos: todos com roupa branca manchada de vermelho. As mulheres estavam todas doentes: deitadas em camas de armar. Percebendo a palidez e o ventre inchado da mãe, P. segurou-lhe a mão fria entre as suas. No instante seguinte a mulher entra em trabalho de parto, gemendo e chorando.

Alguns enfermeiros fecham roda em torno do leito e olham sem se mover. Dentre eles surge uma transex vestindo um sári branco, que se senta na cama e segura a mulher pelos joelhos. Em tom de desafio ela diz para a doente: “Ele é seu... Empurra meu anjo, empurra que ele é seu!” O último gemido da mulher engasgou-se e silenciou. P. se viu então num corredor escuro, e diante dele um sujeito de costas segurava uma criança embrulhada num lençol. Assustado, tratou de recuar alguns passos, mas o tipo continuava sempre a mesma distância. O estranho, então, começou a se virar e P., temendo encarar-lhe o rosto, voltou-se para a criança no colo. Com um choque que o fez despertar, viu nos braços do homem o rosto desfigurado e rubro de um bebê sem pele.

Apenas no final da tarde do dia seguinte P. saiu da cama: esteve todo o tempo deitado e em silêncio, ainda vestindo as roupas da véspera. Com algum esforço arrancou-as e ficou nu. Levantou-se, caminhou até o banheiro e tomou uma ducha demorada: muito atento ao ruído que vinha do ralo. De volta ao quarto, abaixou-se procurando qualquer coisa debaixo da cama. Em seguida voltou para o banheiro carregando uma grande caixa preta: