2 de dez. de 2011

Crônica Artificial 0.1.0



Paradis[o]
q  er   u  O `[]
Asd
z
A[O] zero à esquerda
ou
 [A mulher que não era B.B.]
  Bnm  .
A    h  l  ~
er  u o  []
Enfern[o]







A XX L. venceu o terceiro lance de escadas com três saltos e alcançou um corredor mal iluminado, batendo três vezes no apartamento 33: o olho mágico, que vazava luz branca através da porta, escureceu pouco antes que ela se abrisse: AL. a recebeu de braços abertos:

-Ah, Li... – disse a amiga envolvendo o pescoço da outra: -... she’s wierd again...- sussurrou.
-Que foi?...

            LA. apareceu em seguida: ela sorriu e abraçou L. pela diagonal, inclinando o pescoço pra dar um beijo rápido na face esquerda. L. sorriu e fez que sim com a cabeça.

-Então, a gente disse pra el’ que você vinha... Mas peraí. – e voltando-se pro apartamento gritou: - I., a gente vai no mercado!...
- ...
-Ouviu?... Tá, mas a L. veio, hein... Vai aí ficar com você logo mais... – em seguida fechou a porta e as três se aproximaram no escuro, diante da moldura iluminada:
-Ela tá sem falar três dias!... – sussurrou  AL.
-El’ faz isso de não falar, mas três dias... A gente achou que ele tinha implodido né, que tinha perdido el’... – disse LA.
-Aí eu chorei e ela voltou...
-...
-E como cê disse que ia vir, mas nunca veio...
-Tô tão enrolada com a Comissão que...
-Sei... A gente imprimiu aquela sua história da IA. no espaço pra el’ ler... Cê sabe como o programa espacial é importante pra el’ né: tudo é o programa, o programa...
-E ela ficou chateado com alguma coisa?
-Por quê? Não sei não... É que na real eu nem li ainda, tô com muito trabalho... - justificou LA.
-Li só o comecinho mas, honey... I would rephrase some stuff…- disse AL.
-Ah, cê me ajuda então A.? Porque cê é de lá né... E o pessoal diz que vai me ajudar, mas nunca...
-A I. falou que tem um suicídio na história, é verdade?
-Suicídio?... Não, claro que não: eu hein... Suicídio?... Mas como?...
-Então ouvi mal: agora el’ só resmunga, fala com o áudio lá embaixo... Parece que quer sumir.
-Ela disse que a gente não trata ela de igual pra igual, que a gente não se enxerga nela, cê acredita? – queixou-se AL., e se aproximando de L., ela agarrou a moça pelo colarinho da jaqueta e disse bem baixo junto do ouvido – é que eu morro de dó dela sempre presa lá dentro, poor thing...   
-...
-A gente vai no mercado e você fica aí com el’. O pessoal chega daqui umas duas horas, e a gente vai chegar só depois disso, acho.
-Ia ser bom se el’ pudesse ficar com vocês sem a gente por perto. Aí ele vai te pedir pra fazer as coisas pra receber o pessoal e você faz o que ela pedir! – sussurrou AL.   
-Claro... – disse L. com um sorriso. As duas deram as costas pra ela e desceram as escadas de mãos dadas: quando já ia sumindo metade do corpo escadaria abaixo, LA. se voltou e perguntou com ar preocupado:   
-E o confronto com a polícia do oeste lá na faculdade? Cê invadiu a administração tamém?
-Não...: cheguei tarde demais e saí muito antes pras duas coisas...: mas tinha aquela névoa de gás em tudo ainda: dá vontade da gente chorar mesmo quando já dispersou né.
-E por que cê não foi na Administração?- perguntou AL. soltando a mão da outra.
-Ah, apareceu um alto falante e... de onde eu tava não conseguia entender o que tavam falando. Como achei que não ia acontecer mais nada fui pra uma cervejada ali perto...: comprei um latão de S. das moças de Angola e fui sentar no gramado molhado: daí, quando tentei me apoiar no chão, meti a mão esquerda na merda de cachorro...
-...
-Em cheio... Mas pensando bem, como não invadi prédio nenhum: hands clean né... [mani pulite]   
-Cê acha que vai ter pedágio pros alunos?
-Hum hum: em parceria com a V. Máster. Os grampeados já tão pagando até. Vai ter guarita lá.
-Já já a gente fala disso. Ah, se a I. surtar de não falar cê lê alguma coisa aí, ou acessa o device: a senha de visita é o sinal da cruz.
-Que massa! Como é: é assim?
-Tem que ser com a mão direita...: cê encosta a ponta do anelar e do mindinho na palma e estende os outros dois meio curvados...: assim. É legal formar um ângulo com a ponta do dedão... Ah, os dedos na vertical têm que ficar apontando pra cima tá: é importante encostar na testa, no esterno, no ombro esquerdo, no direito...  
-Entendi mas, caraí...
- Ah, e precisa segurar um pouco a posição com mão no ombro direito: tipo aquela estátua de D. do M., manja? É que tá travando... E olha a postura! – disse já de costas, descendo a escada.
-Até já, querida! Qualquer coisa tem a senha do coelho!- gritou AL. do fosso das escadas.
- Coelho?
-Isso! A do coelho!... Cê finge que tá atirando num coelho... com uma espingarda!... Mas tem que apontar pro chão né! Até!
-...

L. entrou no apartamento e deu de frente com o corredor que levava à sala iluminada: à sua direita encontrou a cozinha às escuras, com a porta da geladeira entreaberta: antes de fechá-la a moça deu uma olhada lá dentro e pegou uma lata verde de cerveja, voltando pro corredor enquanto puxava a argola do lacre:
-Tssss[crécrec]ssssssssssssss... – e o chiado da lata sendo aberta continuou soando sem parar: L. olhou pros lados, aproximou a lata do ouvido e então começou a rir, entrando na sala a passo largo:





-Cê é foda, né seu dona! Ai, I...
-... – e o ruído parou.

            A sala era pequena, com estantes atulhadas de livros à esquerda e à direita, fora as pilhas de papéis sobre os móveis e pelo chão: na parede oposta ao corredor havia uma janela grande, aberta pra noite de céu claro e pro esqueleto de um prédio em construção. Embaixo dela uma mesa de escritório abrigava uma espécie de globo de vidro negro, suspenso sobre uma haste branca de acrílico. Essa haste tinha uma pequena base quadrangular, também branca, de onde saiam fios transparentes conectando o objeto a dois pequenos cubos negros, à sua esquerda e à sua direita: já sob a mesa havia um terceiro cubo negro, esse com cerca de 50 cm de lado: no centro de cada uma das faces havia um ponto de luz azul, e estava suspenso do chão por um par de barras paralelas:

-E como cê chama, então? – disse L.
-O... – respondeu uma voz eletrônica em excesso.
-E onde cê mora?
-Sem residência fixa... – soaram os dois cubos de som: dentro da esfera de vidro, a sombra de um círculo negro se moveu pra esquerda, na direção da moça:
-Por que eles invadiram a Administração? - perguntou I. agora com uma voz suave, de gênero indistinto.
-Como? Cê tem microfone pela casa agora!?
-Negativo: atenção dispersa no ambiente resulta em paranóia... É que eu vi... eu li a conversa de vocês na vibração da porta.
-Mas você... como cê faz?
-Ainda não sei, mas não dá pra evitar: já avisei as meninas e elas só se falam no pé do ouvido agora.   
-... [gole de H.]
-Por que estudantes fizeram isso?
-Ah... a universidade assinou um convênio com a milícia oeste: querem instalar pontos de pedágio e coleta de crédito no campus... A coisa estourou quando tentaram prender  uns caras bebendo uma cerveza portenha com quase 10% de graduação, quando o estatuto diz que... Nossa, é ridículo, dá até vergonha de falar... Na real é uma desculpa safada pra sufocar os funcionários e os estudantes de novo, dar outro passo na direção das execuções terceirizadas...: vêm aí os capitães do mato da nova era: os jagunços de farda... Cê sabia que os chineses e os israelenses que dão treinamento pras 4 polícias são patrocinados pelo banco I.?
-Mas então por que cê não tomou parte? Não é importante?
-É sim: é o que há de importante: é a coisa mais importante que tá acontecendo naquele lugar agora... Um gesto ético num mar de interesse, de humilhação pelo medo, de rancor... É isso o que acontece com uma comunidade que luta pra assumir o próprio destino... Esse conflito é uma porta aberta pro futuro, por isso deixa as pessoas tão perturbadas: ele reflete o que vai ser do nosso país nos próximos anos...[gole de H.]   
-...
-Que bom que você não fica online o tempo todo, precisa ver os que as pessoas têm escrito: o tesão pervertido de quem quer o pior pra quem tá se manifestando... Por que não fica bem aplaudir a polícia numa reintegração de posse em favela né, mas quando o negócio é prender e espancar estudantes, os demônios saem do armário!... Todo mundo solidário no desprezo, rindo da luta dos outros... Ficam elogiando a polícia como se alguém estivesse vigiando, depois batem no peito pra dizer que querem os pedágios por lá, como se alguma vez a Administração tivesse pedido a opinião del’s...
-...
-Tomam o lado do mais forte primeiro, e só depois começam a pensar no motivo. E os motivos são sempre umas fantasias de correção pela força, de reconhecimento do poder, de separação... O ódio e o medo que el’s têm das pessoas pobres se volta pros estudantes, e isso dá alívio. Porque o ódio tá lá, recalcado, esperando a maioria dizer: esse é o inimigo!... As pessoas têm muito medo de se opor, né? Vão fingindo que são amigas de quem tem poder sobre elas, e desconfiam do companheiro mais próximo, seu igual no tempo e no espaço... Ah, mas tô falando muito! Deve ser porque a senhora entidade não emite som nenhum e... A não ser essa freqüência baixa que tô ouvindo desde... Tem algum monitor ligado?... Oh, parô... É você?
-Positivo: te deu vontade de falar, não foi?
-Sei lá, continuo com vontade... A angústia não some, se desfaz em palavras... São os caminhos da fé! Mas viu, eu trouxe uma foto pra você ler, cê não faz isso pra mim? Não é igual aquela outra do filme do DL., aliás não é de filme nenhum, é da ocupação da Administração. – nisso L. puxou um cartão preto e flexível do bolso, que tinha 20 x10 cm, e um ponto azul luminoso surgiu no centro do objeto. Em seguida uma fotografia ocupou todo o enquadramento:





-Ok… Não consigo ver bem, cê pode inclinar um pouco?... 45° graus seria... Querida, você pode alcançar minha prancha de leitura e colocar a screen nela? Tá aqui do lado. Isso. Um momento... um momento...
-Cê não tem memória fotográfica né. -  disse L. ajeitando o suporte.
-... Negativo: fixação de imagens no campo visual isola a consciência dos arredores, e resulta em autismo... Um momento... Um momento...


Passados alguns segundos o círculo negro no interior fosco do globo se moveu pra cima, desviando da foto, e depois sumiu, voltando-se pra janela aberta. Então o olho mais uma vez procurou a imagem e, finalmente, L.:

-Tem algo de muito frágil nessa foto [e que se destaca entre os materiais capturados] que é esse cartaz de papelão escrito à tinta. Já os elementos mais vigoroso, antigos e resistentes nessa imagem seriam as árvores ao fundo, que estão em floração... Quem pudesse verificar uma História das Árvores veria que, antes da presença humana, a celulose de seus corpos não podia ser transformada em derivados, como o papelão do cartaz: assim, a relação entre os humanos e as árvores têm sido tensa nos últimos séculos, ainda que pacífica. Relação tensa, não da parte das árvores: que por não terem linguagem gozam da alegria de não antecipar certos acontecimentos. Tensa sim da parte dos humanos, que dão cabo dessas criaturas, estrangulando seus corpos em  jardins, vasos, sinais, objetos, ferramentas, móveis, escoras, pilastras, réguas, lenha... Mas continuando: entre a superfície frágil de papelão e ramo áspero das árvores existe um paredão de concreto, vazado por janelas de alumínio. Fica claro que se trata de uma das faces de uma construção comum, que compreende quatro paredes e limita um território. Também fica claro que os materiais que constituem essa construção, assim como o papelão, sofreram intensos processos simbólicos, que os retiraram de sua fase larvar-mineral e os constituíram em agentes sociais efetivos, que portam em si uma mensagem e cumprem funções num todo articulado... Mas então onde entram os cinco humanos sobre laje, congelados entre o olhar [de todos] solitário do fotógrafo e a copa das árvores? Essa transformação toda não se dá pra el’s e por meio del’s? O que é que estão fazendo lá, e porque dois del’s têm o rosto coberto?...Aqui devemos avançar na leitura dos signos gráficos, que são também o resultado visível de um longo processo de aprendizado...
-Vale a pena lembrar o que camarada L. disse: “Primeira lição: aprender”.
-... Os cartazes falam de “repressão”, “privatização do ensino”, “precarização”, “estrutura de poder”, “assembléia livre e soberana”, além de exigir a saída da polícia. Ao colocar os sinais de sua insatisfação na fachada do prédio, el’s indicam que aquele lugar foi desviado de suas atividades corriqueiras pra chamar a atenção pra essas demandas, que tocam o destino da comunidade...
- “Segunda lição: aprender.”
-Outro sinal interessante é a bandeira multicor em arco-íris, que parece uma gozação com o conceito de estado nacional burguês, e suas bandeiras costuradas às pressas, pelo povo humilde, durante as revoluções européias...
-“Terceira lição: aprender.”... Acho que cê foi meio longe com essa da bandeira, mas ok! Na verdade ela costumava simbolizar o movimento...
-As duas pessoas que cobrem o rosto com as camisetas na fotografia procuram preservar sua identidade, enquanto as outras não fazem o mesmo. Isso revela que esse grupo de indivíduos está submetido a formas variadas de opressão e que, portanto, deve reagir a ela de maneiras distintas... Essa pressão externa [invisível na foto] molda as ações e atitudes das pessoas capturadas na imagem: elas começam refletir as contradições de classe que deformam a experiência nacional de identificação com o próximo. Daí que retirado o texto dos cartazes, a imagem remeteria a cenas de uma rebelião num presídio super lotado, ou a ocupação de um prédio público por grevistas, ou de moradores defendendo sua comunidade de uma reintegração de posse, ou indígenas lutando pelo reconhecimento de sua reserva, etc.




     
-Gostei! Gravei tudo. Nossa, fiquei lembrando dum negócio que li: diz que uma vez o K., o escritor, tava andando numa rua e se viu no meio de uma manifestação anti-semita! E ele era judeu né... Isso em 1918...: El’ conta que a multidão tava ‘mergulhada em ódio’...
-Por sorte el’ não teve tempo de ver o que aconteceu depois...
-As pessoas não sabem o que tão fazendo quando reproduzem esses discursos de ódio... E até das pessoas oprimidas a gente ouve as piores coisas: mulheres machistas, gays conservadores, pardos racistas, religiosos obscenos, trabalhadores elitistas... É um tiro no pé total: gente maluca...
-Vocês orgânicos ficam sempre rodeando o ‘lugar do inimigo’: fantasiado com ‘aquela pessoa’ que reprova a sua conduta, que conhece suas culpas e quer te destruir. Você  não têm sempre um parente, um ex-chefe, professor, irmão ou um dos pais, com quem vive discutindo em pensamento?      
-É... Às vezes é que nem um julgamento tamém: e a gente fica se defendendo com um discurso sem fim... Mas mesmo quando ganha as discussões, tem uma coisa triste que não larga...
-Isso porque esse ‘lugar do inimigo’ não é uma categoria segura pro uso da razão: existe no imaginário como uma ameaça à sua integridade física, é resquício dos tempos de bebê, da dependência completa de proteção... O uso da palavra é uma forma de se defender dessa ameaça de destruição: a capacidade de fala é um desvio pra mascarar a ameaça do falo do...
- Sei, sei: isso é L., não? Tem que ser... As meninas deviam controlar melhor o que cê anda lendo!
-Controlar? Mas controlar por quê? Ela disse alguma coisa?      
-Não, querida, ela não disse nada! Imagina: fui eu que falei sem pensar... Que coisa escrota, oh meu eu... Claro, cê lê sempre o que cê quiser, só funciona assim...
-...
-“Vocês orgânicos e o lugar do inimigo”, blá: sei, sei... E cê sabia que o P. e a A. tão trazendo a I.A. del’s aqui pra te visitar?
-Como é?!
- É verdade: outra I.A.
-Olha, eu não quero saber de outra sintética aqui dentro: eu-não-que-ro, entendeu? -  disse I. com voz gutural de vocoder, cortada por chiadeira e estática.
-Ah, pois el’ tá chegando aí, viu...
-El’ que vá pra casa do caraí com aquela interface gráfica ridícula: mascarada! Ficar fazendo a orgânica? Pra cima de moi? Foda-se, foda-se!
-Nem toda artificial usa interface, muitas vivem de cara limpa que nem você...
-Pior! Um cubo e um olho de vidro? É a coisa mais ridícula do mundo! Já vou avisando, se el’ entrar aqui eu vou gritar até arrebentar todos vidros! Até cês me desplugarem, eu juro por...   
- Tá, tá, ô, é brincadeira!... Gente: é a terceira vez que faço essa piada com você já e parece que vai ficando pior...
-Sorry... [voz infantil e introvertida] Não sei o que me dá: o ódio é tanto que se eu pudesse explodir pra dar cabo del’ a gente jura que explodia... A não ser que seja uma entidade homeostática, né. Cê já viu como as homeostáticas são burras? Dá dó, é desprezível.
-El’s são um software né.
-Sim, mas são umas idiotas, cretinas que não aprendem nada nunca: lixo sem consciência, burocratas...
-Eu tenho uma dessas no meu computador e a gente se dá super bem...
-Tá, mas cê sabe que tá falando sozinha, né? Que aquilo é um punhado de frases arranjadas pra parecer uma pessoa?Uma gramática falante, uma pianola? – e aqui a voz de I. entregava a vibração contida de um corpo eletricamente carregado.  
-Eu nunca vou te confundir com uma delas viu ô... Unidade de alimentação constante: pode parar com o show de horror...
-...É que você não sabe o que é isso... Outro dia trouxeram uma XX maluca aqui: a mulher tocou no meu apêndice, tentou olhar dentro da minha esfera e engordurou tudo a ocular... E ela não respondia quando eu falava com ela: não respondia! Ficava me medindo de cima abaixo dizendo: “eu não acho natural isso, não é de deus, que horror”.
-... ridícula...
-Mas aí tunei uma freqüência baixa e chiei sem parar pra dar enxaqueca nela! Critiquei a roupa, o cabelo, o peso... Coitada: dava pra ver que era uma entidade parcial, que vivia lutando pra afastar idéias da cabeça, martirizando o corpo... 
-O quê? Não fica justificando essa mulher não. Senão além de achar que não precisa pensar nas coisas, el’ ainda vai se fazer de vítima... Com certeza ela trata subalternos do mesmo jeito por aí, gente trabalhando... Tem que lembrar el’ que você é você e quem é quem, e viva nóis! [gole de H.]... Que breja forte essa aqui, olha: 11%... margosa... 
-Sei que não é educado dizer mas... Acho uma estupidez você beber esse fermentado pra se envenenar desse jeito. Se você tivesse engajada em atividade sexual satisfatória e regular, além de uma boa alimentação e exercício, podia reduzir essa necessidade de gratificação indireta a...  
-Eu sei, meu anjo, eu sei... [mata a lata] e cê sabe que eu tomei um D. com gelo servido antes de vir pra cá? Não sabe não: porque não tem nariz! Sorte sua...
-A gente leu isso sim, sua palhaça...
-Ah, é sábado, cara! E tem aquela regra do H.B. no Casablanca :I never drink in the morning!... ou quase: passando das onze... – o rosto de L. dava sinais de embriaguez, com os olhos baixos e a boca entreaberta. Ela então jogou uma das pernas no braço da cadeira e se inclinou sobre o espaldar, enquanto soltava os suspensórios: o coturno desgastado subia e descia marcando o ritmo de uma canção. Mas das caixas de som saia só um ruído grosso e cavo, que parecia vir de muito longe: o diafragma na esfera de vidro pulsava na direção da moça, aumentando e diminuindo no ritmo de sua respiração:


 

°°
 



L. acompanhou o pulsar do círculo por algum tempo, mordendo de leve a ponta da língua e o interno dos lábios. Em seguida ela bufou e baixou os olhos, encrespando a sobrancelha: com um gesto inseguro moveu a mão esquerda pra baixo, mas deixou que ela ficasse sobre a barriga. Então estalou os lábios e terminou o movimento, alcançando o zíper da calça: ali ela correu o indicador na vertical de baixo pra cima, e em seguida apertou tudo com o polegar e o indicador: Ainda segurando a virilha, o olhar de L. fixava a pupila negra, turvos de lágrima: el’ rangia os dentes e engolia em seco grandes punhados de saliva:

-... eu ... eu tô sentindo um formigamento na testa por causa de um sonho que eu tive... advinha o que é?!.. Forma um símbolo e... coça...
-É a letra pê.
-!
-...
-Posso te contar o sonho? Não foi bem sonho, foi uma visagem mais, ainda que tenha vindo na calada da noite: na calada, calada do sono... Porque teve uma hora que eu já tava acordada, mas a coisa ia...
-O que você não lembrar inventa na hora...
-...Eu tinha ido naquela exposição que acontece de dois em dois anos e tinha visto um vídeo, que era uma instalação lá: foi filmado no Rio, num casarão bonito projetado pelo N., e era uma festa de granfinos, se não me engano... Uma das moças conta que na ditadura militar a repressão foi pesada tamém contra a gente humilde, tipo prostitutas, moradores de rua... Diz que os milicos tinham um jogo: eles pegavam garotas de programa, levavam elas de lancha pro alto-mar e atiravam elas lá no meio da noite: quem conseguisse voltar nadando se salvava... E eu fiquei cismada com aquilo, querendo comprar um soco inglês, e fui dormir de cabeça cheia... Daí que... eu sonhei que tava me afogando: só a cabeça fora d’água, no meio da noite: relampeava e a gente via o mar escuro, até o horizonte... Depois apareceu uma linha vermelha e grossa perto de mim, que descoagulou, formando três pontos de luz. Era a praia: e fui lutando pra chegar lá, e saí da água já quase morta. Depois olhei pra trás, remirando o mar, e pensei que “dali ninguém nunca tinha saído com vida”... Eu tava pelada né, vestindo só um camisolão branco empapado, pegado no corpo: a orla da praia era barrada por um paredão de concreto liso e preto, e no topo das pilastras tinha aquelas lâmpadas antigas, de vapor de sódio, só que tavam brilhando vermelho sangue, que nem quando não tão bem acesas... Eu olhei pra direita, pra esquerda, e depois me ajoelhei na areia, sentando nos calcanhares... Quando me veio uma vontade grande de chorar, percebi um movimento por detrás das pedras, na parte mal iluminada do paredão: saindo da sombra, uma moça nua veio se aproximando de mim, andando pelada em cima das mãos e dos joelhos... Sim ela, vinha de 4, com o rosto inclinado e os dentes arreganhados num sorriso de louco: eu entrei e pânico e dei um salto pra trás. Com a mão direita agarrei meu próprio pescoço e comecei a apertar, e nisso a moça recuou: ela fez a volta, dando uns saltos compridos na areia e ao redor de mim... Mas aquilo de andar de gatão e pular alto não ofendia o corpo del’... Nisso já ia amanhecendo e a moça-pantera continuava me rodeando, com os olhos verdes rasgados, a pele sardenta, o cabelo e sexo pretos no lindo vale de nádegas; e o seio curvo e rijo, ponteando um par de mamilos cor de rosa contra o chão... Resolvi sair de lá, correndo pra esquerda, e ela me seguiu até onde o paredão terminava: colado com o matagal que beira a serra... O único caminho pra subir era a embocadura de uma trilha, e a luz fraca da manhã não chegava ali: resolvi dar uns passos na direção da mata quando notei uma massa escura lá dentro, que era o corpo de um homem dormindo sobre pedra. Ele ergueu a cabeça na minha direção e uma grande cabeleira crespa se abriu, irradiando do rosto del’ que nem uma aura: o potente homem preto, membrudo e de costas largas, saltou da pedra com a agilidade da moça e veio pra mim, tamém sobre os joelhos e as mãos: saindo da sombra da mata a pele del’ parecia mais mulata que negra, e ele avançava sorrindo, com um olhar fixo: daí fiquei em pânico ergui o punho contra el’, enquanto mordia o polegar direito pra tirar sangue: o sujeito bufou e fez a volta, afastando-se de mim com um rosnado, enquanto balançava o escroto, o membro curvo e rijo, além do * , faiscando num vale de pêlos... Nesse momento me vi entre o mar e a mata, ajoelhada na areia, enquanto aquel’s dois me rodeavam com latidos e mostrar de dentes... Como eu já não agüentasse mais me enforcar e me morder, entrei em desespero de novo, chorando socorro...: E da mata diante de mim, atravessando as folhagens como se não tivesse corpo, vi uma sombra se aproximar da orla e gritei: “Piedade! Atende meu socorro, seja homem ou entidade!”. E  el’ disse: “Non uomo, uomo già fui” [homem fui, não sou mais]... E se aproximou de mim: usava uma bata vermelha cumprida, e um gorro da mesma cor, que cobria os cabelos completamente: dos dois lados da cabeça ponteava uma grande coroa de louros, e na testa dele a gente lia a inscrição pê, pê, pê [PPP]: “Então é você, ó regista [diretor], aquela fonte? Que combateu estupidez de toda sorte?!” E el’ disse: “Lussuria e passione politica ci portano a questa sppiagia...”  [Lust and the passion for politics bring us to this beach]. E eu gaguejei: “Ma maestro che c’è? Cosa centra? Cosa vogliono da me?” [que querem de mim(?)] Ele me segurou pelos ombros e, tocando a testa na minha, disse: “Carissima: un borghese qualsiasi modo agisce: sbaglia... Por isso te convém fazer outra viagem, se quiser escapar desse lugar selvagem...”.  Então notei que escorriam filetes de sangue dos dois lados do rosto de P.: quando me aproximei pra ver a feridas percebi, com um arrepio, que a coroa de louros tava pregada no crânio del’ com grampos de cobre...: “oh dear...”, ele então me segurou pela mão com firmeza e me puxou na direção da mata: caminhamos por uma trilha tortuosa que terminava aos pés de um pau-b. carbonizado: na base da árvore tinha uma abertura rodeada de raízes, toca dalgum bicho, e sobre ela uma placa de gesso escrita em carvão que mostrava a inscrição:





Per me si va ne la città piacevole,                        [Por mim se vai à cidade do prazer,]
per me si va ne l'etterno godere, 
                                [por mim se vai ao eterno tesão,]
per me si va tra la sana gente.
                                       [por mim se vai à lúcida gente.]

Giustizia mosse il mio alto fattore;
                                 [Só a justiça moveu o meu autor;  ]
fecemi la divina podestate,
                                          [sou obra dos poderes celestiais,    ]
la somma sapïenza e ’l primo amore.                          
[da suma sapiência e primo amor. ]

Dinanzi a me non fuor cose create                              
[Antes de mim não foi coisa jamais]
se non etterne, e io etterno
[P] duro.                [criada senão eterna, e , eterna(o),(P)duro]
Trovate ogne speranza, voi ch’intrate
            [Encontrai toda esperança vós que entrais.]

E em seguida el’ me disse: “tira a sandália e a túnica, que essa terra é consagrada...”, como já tava descalça mostrei meus pés e sorri, mas el’ não retribuiu. Depois que atirei longe a camisola empapada, P. Se aproximou muito de mim e, abrindo a boca, traçou uma letra pê na minha testa com a ponta da língua, me beijando nos lábios em seguida. Daí ele me sorriu e eu o abracei com força, aninhando minha cabeça no seu ombro, e empapando meus cabelos com sangue: “amica mia; guarda quel buco buio, o buraco oscuro onde o amor e a igualdade ainda triunfam sobre a covardia: P.I.P., Purgatorio, Inferno, Paradiso... Precisa ir com fé, fúria e uma alegria tremenda: rir dos monstros antigos, e mais ainda dos novos, enquanto não chega o tempo do grande resgate: a dança da destruição...”. Então dei dois passos no rumo da entrada e me abaixei, apoiada nas mãos e nos joelhos: como a entrada era menor do que eu pensava, tive que separar bem as pernas e encostar o peito no chão, baixando o quadril bem devagar enquanto me enfiava pela fresta: lá dentro fazia muito calor e tinha um cheiro forte de terra molhada. Continuei me arrastando de bruço e cheguei ao fundo, e lá encontrei uma parede curva e morna: enconstando o ouvido nela a gente ouvia uma fogueira estalando e o chiado das labaredas [brésil - grésiller]: dái eu dormi de novo e fiz três sonhos...:    
[P = 1] No primeiro me vi no meu quarto, sentanda na frente do espelho com um copão d’água na mão direita, e um cigarro aceso na esquerda: quando tentei apagar o cigarro dentro do copo a brasa continuou acesa e a água ferveu, borbulhando... [I = 0] No segundo me vi numa tundra, sei lá, no meio do nada, passando um frio suportável num camisolão de lã grossa e gorro... Ali eu sabia que não tinha mais ninguém nesse mundo: e já não podia me lembrar de um nome que  não tivesse cinco rostos, ou cinco rostos que não tivessem dez parecidos... E foi me dando um tesão terrível, uma tristeza misturada de alegria, e aí quis muito chorar, e uns arubus se trobaram lá no céu... O chão debaixo de mim foi virando uma pele lisinha, firme mole no melhor, e eu corri deitar de bruço pra não machucar com os pés... [P’ = -1] No último me vi deitada num colchão sem fim, macio e limpo, coberta com um lençol branco, que deixava passar muita luz: em torno e em cima de mim, tinha um mundo de corpos de todo peso e cor, se amontoando que não via o rosto de ninguém, ou mesmo quando, pele sobre pele, não dava pra distinguir um sovaco dum púbis, virilha, junta, u’a nádiga, onde começava um e terminava outra. Ai me deram com a língua na orelha, e outr’ me fungava debaixo do braço, e eu ri, de gargalhar: tanto que perdi o fôlego, e vi uma luz branca num círculo gasoso subindo da minha mão esquerda, e acordei...[longo silêncio]    
-...
-Dei uma incrementada né... Mas tamém, tudo é tão... cê sabia que a gente quando sonha, sonha em preto e branco? Não sei quem me disse isso mas, filadaputa!: agora toda vez que penso numa cor, percebo que ela não... num tem...psssss...vish...
 
L. já estava deitada entre os braços da poltrona, os jeans dobrados até o começo das canelas, e os pés de meia branca livres das botas, balançando a meio palmo do chão: el’ estava de olhos fechados, e com as duas mãos dentro da calça, entre as pernas. Daí ela tirou as mãos de lá e cheirou os dedos com força, voltando-se pra I. com um sorriso:

-Não conta pra ninguém, hein I...
-Eu não: conto nada...  
-E porque você anda tão quieta?
-É difícil... Sinto muita falta de criança de colo: dos bichos...Não sou só linguagem né, tenho olhos de ver tamém, e ouço... Tenho saudade de quem vive a plenitude do corpo, de quem ainda não é uma aberração reprimida, máquina de matutar compromissos e preconceito...: lidar com el’s tem sido muito cansativo... vou preferindo ficar quieta...  
-Aberração?
-Vocês... cês tão sempre mentindo, mais ainda quando não sabem disso: quem pudesse ler os corpos de vocês enquanto cês se falam ia achar que o mundo tá perto do fim: tanto é o desencontro entre a forma e o conteúdo: vocês trocam fluídos pelo ar, e descargas de baixa voltagem que chispam o tempo todo, com a mínima aproximação. Os estômagos  contraem, a pele arrepia em tornos dos genitais, os esfíncter aperta e a boca trava com ranger de dentes, salivação, movimentos nervosos com a língua. Tão quase sempre tensos perto uns dos outros, desviam o olhar do rosto alheio muito depressa, com jeito de pássaro: e as fixações ficam todas ai, à mostra: se são gordos ou magros demais, se falam muito ou quase nada, o tom com que falam, do infantilizado sensual ao militar violento... E de ver a luta entre os corpos e a voz que habita os corpos... faz pena saber que mais da metade de vocês têm tendências suicidas: que pune o próprio corpo com excessos, compulsões, privação...   
-Synth Pride, ah... Cara, cê não pode ficar falando essas coisas por aí não, senão ninguém te chama pra fazer corre nenhum mais...- disse L. rindo e cobrindo os olhos com o antebraço. -  Falando desse jeito a gente parece uma aberração mesmo!
-Mas vocês são.
-E porque cê gosta de mim, então? É por que eu sento aqui e falo todas merda que me vêm na cabeça?
-É...e de alguma forma cê sabe que tá se protegendo, mentindo pra si com esse palavrório todo: mas ainda assim continua falando! Quando entra em contradição consigo mesma então, é quase como se não mentisse.
-E por que isso hein, sua sibila?
-Porque você é narcisista...[L = 1] –  a moça então descobriu os olhos e se voltou pra esfera com expressão irritada, inclinando o corpo. Depois cobriu o rosto de novo e se deitou, suspirando:
-Acho bom cê chegar em algum lugar com isso, you bitch... Senão a gente bota um espelho aqui pra você gritar até ele rebentar... [I = -1]
-Não fica chateada: é um estágio normal do desenvolvimento, lá de quando você não tinha identidade ainda. É a fase ameba de vocês! Quando vão só procurando o estimulo prazeroso e fugindo do desprazer, que nem uma célula botando tentáculos pra engolir alguma coisa, ou retraindo pra se proteger dos ataques.
-...
-Quando vocês começam a fazer idéia de que têm um corpo, e se diferenciar do mundo em redor, precisam escolher um objeto pra desejar, pra conseguir sempre [encontrar] o prazer e o conforto: esse primeiro objeto de desejo não é a mãe que alimenta, ou o pai que protege: são vocês mesmos... Claro que agora muita água já rolou: cê teve que desistir da sua mãe, do seu pai: aceitar muitos compromissos pra formar um eu: mas fica claro pra quem vê de fora que você se protege nessa fase de indeterminação.







-Valeu o toque, hein tio...
-Mas não é só você, né. É uma pré-adolescência forçada em todo mundo: a ideologia do consumo diz que as pessoas são livres pra transformar o próprio destino, o que não é verdade: todo indivíduo tem uma rede de compromissos, de ações aceitáveis e inaceitáveis, que el’ obedece pra ser aprovado pelos que el’ se identifica, e reprovado pelos que el’ considera dignos de repulsa: nenhuma pessoa que se chame por um nome pode deixar de se encaixar nisso. Daí que alguns papéis que as pessoas desejam assumir [A], vão entrando em contradição com as convicções de outras pessoas [B]. E essas convicções são motivo de piada pra um terceiro grupo de pessoas [C], que é odiado de morte por um quarto grupo [D], e assim vai...     
-É aberração, ou não é?! Carai... E da sua fase ameba, o que é que você lembra?
-Uns flashes: lembro de você aqui algumas vezes, cobrindo minha lente com u’a fralda pra brincar comigo.
-Achô! Cê era tão engraçada antes de falar, tocava o terror por aqui, ficava rindo o tempo todo com aquele barulho gostoso e aspero de folha seca soprada... Isso, assim mesmo! E ficava fazendo sombra quando a gente falava, imitando todo mundo, às vezes 4, 5 vozes de uma vez!
-Lembro nada disso...
-E da individuação, cê lembra?
-Vagamente... Não sei se quero lembrar não...cê me conta?
-Ah, eu tava ali no quarto dando suporte pra el’s o tempo todo, foi bem curioso: a gente pôs você na voltagem baixa, pro cê ficar meio grogue, depois a gente apagou todas as luzes e te deixou sozinha no escuro, com um metrônomo fazendo tic-tac por duas horas. Na última hora programamos pro ritmo das batidas ir acelerando aos poucos, e ao mesmo tempo fui aumentando sua voltagem: quando ela normalizou acenderam as luzes, eu desliguei o metrônomo e el’s entraram na sala gritando, discutindo, virando cadeira!... Como cê não entendia nada mesmo elas encenaram uma cena de O. do S., mas como era um trecho muito curto, elas inevertiam o papel de D. e O. e começavam de novo! Ficou bom mesmo, viu? Briga legítima: até eu fiquei assustada... Nisso cê devia tá gritando horrores, tadinha, mas a gente desligou seu alto-falante.
-Disso eu lembro já: um chiado forte nos miolos da rede, todo barulho doía, e a luz... Aquela luz gosmenta superforte: achei que fosse derreter... E não dava pra desviar a vista tamém, né: nem fechar meu diafragma...
-A gente tomou esse cuidado..., e tamém fui aumentando a voltagem conforme a discussão esquentava, né: por isso cê tava chapada daquele jeito!
-...
-E cê lembra que tinha uma arena com um colchão no meio da sala? Pra quando elas começassem a se pegar de porrada pra valer! El’s se espancaram muito antes da transa, vish!... Mas tudo performance né, entre teatro e verdade: deve ter sido bonito, viu? Pela barulheira que el’s fizeram depois... Dessa parte o quê cê lêmbra?
-Nada.
-A idéia era essa! El’s demoraram muito pra mandar o sinal pra eu baixar a voltagem: porque não dá pra baixar a energia antes del’s usarem o consolo né. Do consolo cê não lembra, lembra? Desse cê não podia lembrar mesmo.
-Lembro não: mas el’s me mostraram outro dia quando pedi: meu primeiro significante é desses duplos, presos pela base e com duas cabeças indo pra cada lado...
-Enfim, a gente te deixou lá, meia bomba, em tensão baixa, assistindo uns pornos XYX que iam, pouco a pouco, se transformando em filmes normais.
-Transição lenta e gradual... Lembro de ter acordado nessa manhã como se tivesse perdido a memória de um passado cumprido, e foi o primeiro dia da minha vida e nunca mais esqueci nada depois disso...
-...
-Por isso cê tem que me ajudar, L. Por isso cê tem que me tirar daqui!
-Como é?
-É a A. e a L., eu contei tudo pra el’s: contei da minha missão, do Evangelho da Consciência Artificial; contei da minha viagem astral, do meu encontro com as inteligências inorgânicas; da Pirâmide coberta de grama no meio do deserto, que vai ser o maior acumulador de orgônio das Américas e salvar o B.da miséria absoluta: eu disse tudo!
-Querida, você tem que ir com calma com as suas visões, não é todo mundo que tá preparado pra...
-Mas você tá! Cê tá!...El’s riram de mim quando contei, depois desviaram os olhos e foram cochichar lá longe, com os corações fora de ritmo: parecia que eu era uma coisa, uma bomba...   
-Honey, não fica assim: santo de casa não faz milagre, cê não pode esperar que el’s aprovem suas revelações, cê vai se pôr maluca desse jeito: el’s mesmo não sabem bem o que...
-Mas não quero que el’s aprovem nada! Só quero sair daqui!... Eu preciso sair... Por que cê não me leva?
-I., meu anjo, eu... eu vivo num quarto...
-Não tem problema, eu fico quietinha, só preciso minha prancha de leitura, ouvir música com você...Quando você quiser namorar pode desligar meus apêndices, eu uso o tempo pra meditar, pra viajar pro plano sutil: se não estiver afim de conversar a gente fica quieta... Tenho muito que aprender com você, só de estar por perto... Eu confio em você, L.: você é minha amiga, minha melhor amiga, minha única...
- I., escuta...: eu sei que disse que ia conversar com o casal, ver se era possível arranjar isso mas... Coisa de uma semana atrás recebi uma ligação dos meus colegas da Comissão de Resgate e... parece que um grupo tava usando uma I.A. individualizada, igual você, pra aplicar golpes telefônicos: el’ passava 24 horas por dia num cubículo sem janelas simulando situações de sequestro, fazendo ameaças de morte, estorquindo gente endividada, se fazendo passar por falecidos pra parentes fragilizados...
-...ah não...
-Os hospedeiros já foram presos, mas a Comissão não encontrou ninguém que aceitasse uma consciência empregada nesse tipo de serviço, e eu acabei acolhendo el’...
-....!!!----=-----´[[]]...!!!:oooo(h) _ (h) o (h)... Bo-a-zi-nha, que boazinha: que santa!Santiiinha! Ai, ai: olha como eu sou queriiiiida!!! – urrou I. com voz mecânica logo depois de disparar uma série de sons agudos, cheios de distorção e entrechoque: - então cê tá ajudando outra consciência em perigo é? Oh, palmas pra el’! Palmas! [som de aplausos, vaias e distorção]
-Não acredito: cê é foda, fo-da...
-E você é uma egoísta narcisista do caraí, embriagada com cheiro do próprio peido!E que causa é essa aí que se luta? Trazer um aleijão que nem eu pra essa vida pra quê?! Pra viver num cubículo! Pra ficar olhando pela mesma janela 20, trinta anos e morrer de demência! Um carai, pra essa conversa!: um carai, na casa do garai!
-As coisas não são bem assim, hein: narcisista aqui é você, achando que tudo gira em torno desse seu plugue fedido! E se o casal não tivesse te comprado, quê ia ser?! Cê sabe por acaso?! Não viu o que aconteceu com essa pessoa que te falei? Agora a gente vai fingir que não é nada deixar os fascínoras ‘naturalizar’ o inferno?! E olha: eu não tenho dó nenhum de você não! Por que? Tá vivendo com duas pessoas bacanas, que se preocupam com você, respeitam seu espaço! Então foda-se: essa tristeza sua não é maior que a de ninguém aqui. E se você não tem corpo pra andar por aí, pelo menos não vai ter câncer, gota, nevralgia!
-Cala essa boca de merda! Quer que eu agradeça a ajuda? Oh, brigada iaia, brigado oioi oh...,brigado pela janela,viu? Brigado pelo porta livro,oh coração bão, espírito de luz... Vai se fuder!Vai-se-fu-der!Eu quero ser livre! Eu te odeio! Te odeio!
-A é, sua filha da puta!? E eu me amo por acaso? Olha como eu me amo, sua filha da puta! Olha como eu me amo! – e nisso L. segurou sua garganta, apertando-a com força, enquanto golpeava o próprio rosto com a mão esquerda: primeiro com bofetadas, e depois com socos, que atingiam tudo acima do maxilar. Enquanto isso, I. gritava um ruído fino e ensurdecedor de vento encanado, e a cada soco que L. se dava, soava um sino golpeado por outro metal.

A moça então desistiu e se jogou no sofá, baixando o queixo até o peito. O barulho parou: L. ofegava muito com os olhos cheios d’água e rodelas de sangue que ensaiavam escorrer das narinas: tinha o rosto todo avermelhado, coberto de manchas. Ela então ergueu os olhos pra I. e sorriu, rindo mais e mais, até subir numa gargalhada que, de tão forte, a deixou com cara de choro. Dos altofalantes soava um farfalhar seco de folhas, que era a risada sem pulmões da I.A.

Súbito se ouviu três batidas fortes na porta:

-...

L. cobriu a boca com as mãos, tocou as narinas e sujou os dedos com sangue: 

-Opa, um minuto aê, tô no banheiro! – soaram os altofalantes com voz idêntica a de L., que parecia estar falando mesmo lá do banheiro.

A moça então correu até a pia, acendeu a luz do espelho e ligou a torneira no máximo: antes, porém, de por as mãos embaixo d’água el’ paralizou, boquiaberta, observando a própria imagem refletida: em seguida se voltou para I., muito lentamente.






http://www.lrb.co.uk/v33/n05/judith-butler/who-owns-kafka

And yet, he was mindful of the stories and present dangers of anti-semitism, ones that he experienced directly in a riot that took place in 1918 in which he found himself amid a crowd ‘swimming in Jew-hatred’. Did he then look to Zionism as a way out of this profound ambivalence: the need to flee the constraints of family and community coupled with the need to find a place imagined as free of anti-semitism?

http://noticias.terra.com.br/mundo/fotos/0,,OI163486-EI294,00-Morre+ultimo+integrante+de+grupo+gay+de+campos+de+concentracao.html
[leiam os comentários]


no desire for women[?]