13 de mai. de 2016

Crônica Artificial 0.3.0








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Y
                                             [comossomos]                   
                                                      ̪  [casa-grande]
                                   Ϋ.;ʏÝ,;.                   Ϋ.;ʏÝ,;.
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            A sede da fundação Casa-Grande não tinha iluminação externa. Sua fachada no alto do morro lembrava um grande ■ no meio da noite. A entrada fortificada era uma espécie de alpendre de rocha, que se elevava como uma muralha contra o terreiro. À esquerda, um par de janelas altas se abria para o descampado com os batentes crivados de bala, enquanto quatro cortinas brancas oscilavam lá de dentro, alaranjadas pela luz do lampião.  À direita ficava a porta da frente, feita de um pau caloso e espesso, que chiava ao toque. Um furo perto da maçaneta servia de olho-mágico: e do interior do casarão, um par de olhos azuis espiava com ansiedade. Mais adiante um vulto se moveu, mas os cachorros não latiram...
F. jogou a cabeça pra trás e correu as mãos pelos cabelos, assentando-os à cabeça loira: ele vestia uma calça tweed verde musgo e coturnos de cano cortado, com cadarços curtos e desamarrados. A camisa branca, cortada à esquerda e à direita por suspensórios, tinha as mangas arregaçadas e alguns botões abertos no peito. O rapaz girou nos calcanhares e seguiu na direção de uma grande mesa de mogno, rodeada por três cadeirões. Sobre ela havia um lampião a gás, única fonte de luz no ambiente.
F. sentou-se à cabeceira da mesa, de costas para a porta, e acendeu um M. Com a mão direita procurou a valise no chão e tirou dela um case de óculos em acrílico; em seguida puxou dali um volume em capa dura, grosso e preto:
F. voltou o livro fechado para si, com a lombada pra baixo: na margem das folhas, sete seções foram encavadas no papel e pintadas de vermelho. Os buracos se distribuíam na diagonal, e a numeração ia impressa no fundo deles, em azul. Com o indicador F. abriu a primeira seção: todas as páginas estavam em branco. Ele colocou o livro sobre a mesa, além de um lápis carvão, estilete e uma borracha.      
No lado oposto á entrada do salão havia uma parede nua e, à esquerda, uma passagem sem porta, que dava acesso a um corredor na mais completa escuridão:
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Nesse momento um som de passos em cadência alcançou os ouvidos de F., que se voltou para lá. O ruído das passadas foi se intensificando, e soavam como sapatos de salto. Um chiado forte, de tecido se esfregando, foi se somando pouco a pouco ao barulho.

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 Emergindo da câmara escura, Amparo se deteve no umbral entre o corredor e o salão por um instante com um olhar perdido. Ela então sorriu para F., acenando com a ponta dos dedos. Usava a cabeleira preta amarrada num coque, preso no topo da cabeça por dois palitos cruzados. Por baixo do terninho cinza, vestia uma camisa branca de colarinho pontudo, com botões abertos que revelavam um decote pronunciado. A saia tubinho fazia conjunto com o terno e descia bem justa até os joelhos. Por baixo de tudo vestia uma meia-calça fina e, nos pés, um saltinho vermelho com um enfeite discreto na ponta. Trazia consigo um fichário da cor do sapato:
- Goodevening, iô-iô! - disse ela enquanto puxava a cadeira à esquerda dele.
- Good evening...and... Ipê?
-Ela acabou de voltar do cemitério e tá aqui do lado dando uma olhadinha no Peri. Ah, e eu apliquei a medicina do jeito que vossexecellence mandou...
- Have ya tied him up...[silêncio] Ocê amarrou ele na cama?
- Hum hum, precisou. Mesmo com a putadose de V. que eu dei pra ela, a menina não pára! Aquilo é um touro... Mas o scanner não tá apontando nada de mais no lugar da pancada, viu paizinho? Sem hemorragia interna ou fraturas, nada...
           
            Nisso outro som de passadas veio do corredor, mas agora em toada de marcha, com batidas duras. Ipê surgiu e também parou um instante sob o batente, para acostumar a visão. Ela vestia um macacão de lona verde escuro, com manchas de graxa espalhadas ao longo do corpo. Nos pés, os coturnos tirados do enforcado ganharam um lustro cuidadoso. Ela cruzou a sala com dois passos, agarrou o braço da cadeira e sem se voltar resmungou um cumprimento. Trazia consigo um caderno grande de espiral, e o atirou sobre a mesa com um suspiro. Na capa havia a foto, em preto e branco, de um asiático musculoso, com o peito nu besuntado de óleo. O sujeito tinha uma faixa branca amarrada na testa e empunhava uma espada samurai com a lâmina de través.
Amparo estendeu a mão para alcançar o caderno e dar uma olhada, enquanto Ipê desabotoava o uniforme da gola até a cintura. Em seguida deixou cair a parte de cima da vestimenta. Por baixo vestia uma camiseta impecavelmente branca, de gola larga, que apertava os seios sem sutiã e os bíceps pronunciados. O cabelo loiro estavam amarrado atrás da cabeça num rabo de cavalo. Ela se aprumou na cadeira e, com as mãos na nuca, segurou tudo em duas mechas, que puxou em direções opostas com vigor:
- Quem é esse china gostoso aqui da capa, amapoa? - perguntou Amparo.
- Esse aí é o Y.: escritor que o iô-iô Biba mais curtia.
- E cê baixou algum livro dele já, Pê?
- Só li o primeiro só. - respondeu ela erguendo o indicador. Na sequência esticou os braços e tomou o caderno de Amparo, que estalou os lábios:
- Dá aqui, não baba no santo não, bi.
- Hunf, santo é?
- Alright let’s cut thisso... De conversa paralela, ok?...
- ...
- Bom... Vocês devem saber que o trabalho do administrador B. aqui na fundação foi topnotch, muito bom mesmo. Estava checando o backup dele hoje de tarde e, além de organizado, o dominatrix de vocês era muito culto, uma coisa impressionante... Os arquivos del são uma seleção refinada, abrangente mesmo: parece não ter fim... Vocês sabiam que os reports semanais que ele mandava pro Home Office eram em forma de texto literário? Falava-se muito disso lá na central, ele era reconhecido...
- Não, a gente sabia sim! Ele mandava com cópia oculta pra gente: era um fofo. - disse Amparo.
- Muito curioso... E os textos são bons, viu? De qualidade comprovada.
- Aí discordaria de vossasupremacy...- interveio Ipê - [suspiro] Aquilo ali era um palavrório new-neo-parnasiano, duro de ler, cheio de recorta e cola em inglês, alemão: afê... Por que é que ele tinha que se achar tanto? Ficava tudo escondido naquele emaranhado de coisas dos outros, aquela ladainha... Não dava pra salvar uma ideia ali dentro.
- Ele era um homem de gosto, oh invejosa! Paizinho acabou de confirmar. Será que cê tem que botar xabu em tudo?
- Não, meu amor, mas também não dá pra usar peneira de guarda-sol né... Se a gente compara os reports do Biba com os escritos da gente do métier, dá pra ver que aquilo é punheta, uma imitação barata: chato, chato, pretensioso, chato...
- Bi sabichona... E como é que a gente escreve bem, então?
- E eu lá sei? Se soubesse tava fazendo eu mesma... Mas nunca disse que ele era burro, hein? Era mais esperto que nós três juntas, sem ofensas a vossa overlorditude...
- Not taken...
- Tá, agora é fácil fazer carão, ficar xoxando o falecido... Por que não disse isso pra ele enquanto ele estava aqui com a gente? - Ipê engoliu em seco e se inclinou sobre a mesa:
- Se eu soubesse o que ia acontecer tinha dito sim, e muito mais!... Tadinho do Biba, a gente precisa tempo pra fazer as coisas bem... - duas lágrimas correram o rosto de Ipê que fungou, limpando-as com a ponta dos dedos - Afê, tô cansada de chorar, gente! Borrou?... Ai, nem tô maquiada, af, idiota...
- Muda o rumo desse papo que eu tô no dress code hoje, saco: nada de choro!... O sinhozinho gosta de futebol? - perguntou Amparo enquanto limpava o nariz com um lenço bordado. Em seguida estendeu o mesmo lenço para Ipê.
- Não acompanho muito...
- Ah, pois essa daqui diz que ia ser jogador de futebol, que quase passou na peneira do C. quando ainda era boy, acredita?
- Por que “acredita”?  Eu era foda, meu bem. Quando moleque teve um campeonato na minha escola e eu não fui só a artilheira, não: eu fiz todos os gols, meu amor, to-dos... Depois defendi o time da minha cidade e a gente foi bicampeão com o maior saldo de gols da história... E sabe quem foi eleita artilheiro e melhor jogador nos dois campeonatos? Moi!
- Olha, ela se acha!- disse Amparo com um sorriso.
- E por que não seguiu carreira?
- Por causa das carreiras... - respondeu ela tocando o nariz com o indicador.      
- Abafa, abafa...
- Eu era tão novinho... A verdade é que ninguém nunca me deu incentivo, sabe? Meu pai era o pior: “vai estudar, seu besta: estuda!” Credo, sempre odiei escola... Mas ele nunca foi lá me ver jogar... Ah, que se foda também, o que é que eu queria? Ele não curte bola, ué, paciência. Diz que ele agora anda escrevendo: todo mundo é metido a escritora hoje em dia.

            F. fez um aceno positivo e se voltou para Amparo:
- E a senhora?
- Eu, ioiô ? Eu nada. Fui saída de casa bem cedo porque meu pai soube do meu namoradinho e quis me arrebentar. Mas no fim deu tudo certo... - disse isso olhando para Ipê com um meio sorriso: a outra balançava a cabeça em negativa.
- Deu tudo certo como?
- Acabou que arrebentei ele primeiro! Mas foi pura sorte, ioiô, Oxossi interceda, e... - ela interrompeu a frase e tocou o ouvido interno com o indicador direto - É a baba eletrônica, uma das meninas levantou da rede e... Dundum!? Onde cê tá indo? Mijar, é? Ok, mas a senhora trate de acertar o xixi bem no meio do vaso, que eu quero ouvir o barulhinho batendo na água e... Certo, isso... Depois direto pra sua rede! São sete passos daí, eu vou contar... Não senhora! E daí que ele tá te chamando? Não! Por que não é sexta, só por isso... Respondona! Você quer ir pra salinha, é? Bom... Boa noite... A tia te ama, viu?
            F. sacou a cigarreira prateada, acendeu mais um M. sem filtro e ofereceu as duas, que recusaram. Depois de duas tragadas ele abriu a caixa de acrílico e colocou os óculos que estavam ali: a armação era um tanto exagerada ao redor dos olhos, com uma moldura muito angular. F. pressionou a haste sobre o ouvido esquerdo com o indicador e o polegar: uma linha branca de luz atravessou as lentes dos óculos de baixo para cima. Ipê e Amparo estavam admiradas:
- Gente, é uma interface latente, que fino... - sussurrou Amparo.
- Testing, testing, voice recording: checkedVidiando imediações: checked. - disse F. movendo o pescoço em planos circulares.
- E onde o HD de vossa maioridade fica armazenado? - perguntou Ipê.
- Zurich, the UBS...
- Uau! Haja aqüé... O nosso fica embaixo da cama.
            F. parou de se mexer e posicionou a cabeça num eixo fixo: em seguida arregalou bem as pálpebras e moveu os olhos para o canto superior esquerdo das lentes: deu uma piscadela, moveu os olhos um pouco para baixo, deu outra piscadela e disse:
- First reporting on failure 15-30 aka “Engenho Velho” or the Old Mill Project… Proceeding with the assessment of revenue: topic one: Human Assets
            Em seguida ele relaxou as pálpebras e se voltou pra elas com um sorriso. Abriu o livro negro na primeira página, pegou do lápis carvão e rabiscou um falo de aparência amigável: com curvas arredondas e proporções infantis. Na mesma folha traçou o perfil estilizado de uma maçã mordida, para a qual a imagem do pênis apontava. O processo não durou mais que alguns segundos, na sequência ele abriu o livro na seção marcada com o número 1 e escreveu a palavra “Dundum” em letra de forma, com uma caligrafia impecável. Então circundou cada um dos “d”s na palavra e traçou duas linhas saídas das esferas: elas se encontravam um nível abaixo, sublinhado dois outros termos que ele acrescentou: “percussão” e “resistência”...

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