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[comossomos]
̪ [casa-grande]
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A sede da fundação Casa-Grande não tinha iluminação externa. Sua fachada no alto do morro
lembrava um grande ■ no meio da noite. A entrada fortificada era uma espécie de
alpendre de rocha, que se elevava como
uma muralha contra o terreiro. À
esquerda, um par de janelas altas se abria para o descampado com os batentes crivados de bala, enquanto quatro
cortinas brancas oscilavam lá de dentro, alaranjadas
pela luz do lampião. À direita
ficava a porta da frente, feita de um pau caloso e espesso, que chiava ao toque. Um furo perto da
maçaneta servia de olho-mágico: e do
interior do casarão, um par de olhos
azuis espiava com ansiedade. Mais adiante um vulto se moveu, mas os cachorros não latiram...
F. jogou a cabeça pra trás e correu
as mãos pelos cabelos, assentando-os à cabeça loira: ele vestia uma calça tweed
verde musgo e coturnos de cano
cortado, com cadarços curtos e desamarrados. A camisa branca, cortada à
esquerda e à direita por suspensórios, tinha as mangas arregaçadas e alguns
botões abertos no peito. O rapaz girou nos calcanhares e seguiu na direção de
uma grande mesa de mogno, rodeada por três cadeirões. Sobre ela havia um lampião a gás, única fonte de luz no
ambiente.
F. sentou-se à cabeceira da mesa,
de costas para a porta, e acendeu um M.
Com a mão direita procurou a valise no chão e tirou dela um case de óculos em
acrílico; em seguida puxou dali um volume em capa dura, grosso e preto:
█
F. voltou o livro fechado para si,
com a lombada pra baixo: na margem das folhas, sete seções foram encavadas no papel e pintadas de vermelho. Os buracos se distribuíam na
diagonal, e a numeração ia impressa no fundo deles, em azul. Com o indicador F.
abriu a primeira seção: todas as páginas
estavam em branco. Ele colocou o livro sobre a mesa, além de um lápis
carvão, estilete e uma borracha.
No lado oposto á
entrada do salão havia uma parede nua e, à esquerda, uma passagem sem porta,
que dava acesso a um corredor na mais completa escuridão:
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Nesse momento um som
de passos em cadência alcançou os ouvidos de F., que se voltou para lá. O ruído das passadas foi se
intensificando, e soavam como sapatos de salto. Um chiado forte, de tecido se
esfregando, foi se somando pouco a pouco ao barulho.
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Emergindo da câmara escura, Amparo se deteve no umbral entre o
corredor e o salão por um instante com um olhar perdido. Ela então sorriu para F., acenando com a ponta dos dedos. Usava
a cabeleira preta amarrada num
coque, preso no topo da cabeça por dois palitos cruzados. Por baixo do terninho
cinza, vestia uma camisa branca de colarinho pontudo, com botões abertos que
revelavam um decote pronunciado. A saia tubinho fazia conjunto com o terno e
descia bem justa até os joelhos. Por baixo de tudo vestia uma meia-calça fina
e, nos pés, um saltinho vermelho com
um enfeite discreto na ponta. Trazia consigo um fichário da cor do sapato:
- Goodevening, iô-iô! - disse ela enquanto puxava a cadeira à
esquerda dele.
- Good evening...and... Ipê?
-Ela acabou de voltar do
cemitério e tá aqui do lado dando uma olhadinha no Peri. Ah, e eu apliquei a medicina do jeito que vossexecellence mandou...
- Have ya tied him up...[silêncio] Ocê amarrou ele na cama?
- Hum hum, precisou. Mesmo com a
putadose de V. que eu dei pra ela, a
menina não pára! Aquilo é um touro... Mas o scanner
não tá apontando nada de mais no lugar da pancada, viu paizinho? Sem hemorragia interna ou fraturas, nada...
Nisso
outro som de passadas veio do corredor, mas agora em toada de marcha, com
batidas duras. Ipê surgiu e também
parou um instante sob o batente, para acostumar a visão. Ela vestia um macacão
de lona verde escuro, com manchas de graxa espalhadas ao longo do corpo. Nos pés,
os coturnos tirados do enforcado
ganharam um lustro cuidadoso. Ela cruzou a sala com dois passos, agarrou o
braço da cadeira e sem se voltar resmungou um cumprimento. Trazia consigo um
caderno grande de espiral, e o atirou sobre a mesa com um suspiro. Na capa
havia a foto, em preto e branco, de um asiático musculoso, com o peito nu
besuntado de óleo. O sujeito tinha uma faixa branca amarrada na testa e
empunhava uma espada samurai com a lâmina de través.
Amparo estendeu a mão para alcançar o
caderno e dar uma olhada, enquanto Ipê
desabotoava o uniforme da gola até a cintura. Em seguida deixou cair a parte de
cima da vestimenta. Por baixo vestia uma camiseta impecavelmente branca, de
gola larga, que apertava os seios sem sutiã e os bíceps pronunciados. O cabelo
loiro estavam amarrado atrás da cabeça num rabo de cavalo. Ela se aprumou na
cadeira e, com as mãos na nuca, segurou tudo em duas mechas, que puxou em direções opostas com vigor:
- Quem é esse china gostoso aqui
da capa, amapoa? - perguntou Amparo.
- Esse aí é o Y.: escritor que o iô-iô Biba mais
curtia.
- E cê baixou algum livro dele
já, Pê?
- Só li o primeiro só. - respondeu
ela erguendo o indicador. Na sequência esticou os braços e tomou o caderno de Amparo, que estalou os lábios:
- Dá aqui, não baba no santo não,
bi.
-
Hunf, santo é?
-
Alright let’s cut thisso... De conversa paralela, ok?...
- ...
- Bom... Vocês devem saber que o
trabalho do administrador B. aqui na
fundação foi topnotch, muito bom
mesmo. Estava checando o backup dele
hoje de tarde e, além de organizado, o dominatrix
de vocês era muito culto, uma coisa impressionante... Os arquivos del são uma seleção refinada, abrangente
mesmo: parece não ter fim... Vocês
sabiam que os reports semanais que
ele mandava pro Home Office eram em
forma de texto literário? Falava-se
muito disso lá na central, ele era reconhecido...
- Não, a gente sabia sim! Ele
mandava com cópia oculta pra gente: era um fofo. - disse Amparo.
- Muito curioso... E os textos
são bons, viu? De qualidade comprovada.
- Aí discordaria de vossasupremacy...- interveio Ipê - [suspiro] Aquilo ali era um palavrório new-neo-parnasiano, duro de ler, cheio
de recorta e cola em inglês, alemão: afê...
Por que é que ele tinha que se achar
tanto? Ficava tudo escondido naquele emaranhado de coisas dos outros, aquela
ladainha... Não dava pra salvar uma ideia ali dentro.
- Ele era um homem de gosto, oh
invejosa! Paizinho acabou de
confirmar. Será que cê tem que botar xabu em tudo?
- Não, meu amor, mas também não
dá pra usar peneira de guarda-sol né... Se a gente compara os reports do Biba com os escritos da gente do métier, dá pra ver que aquilo é punheta,
uma imitação barata: chato, chato, pretensioso, chato...
- Bi sabichona... E como é que a
gente escreve bem, então?
- E eu lá sei? Se soubesse tava
fazendo eu mesma... Mas nunca disse que ele era burro, hein? Era mais esperto
que nós três juntas, sem ofensas a vossa overlorditude...
- Not taken...
- Tá, agora é fácil fazer carão,
ficar xoxando o falecido... Por que não disse isso pra ele enquanto ele estava
aqui com a gente? - Ipê engoliu em
seco e se inclinou sobre a mesa:
- Se eu soubesse o que ia
acontecer tinha dito sim, e muito mais!... Tadinho do Biba, a gente precisa tempo
pra fazer as coisas bem... - duas lágrimas correram o rosto de Ipê que fungou, limpando-as com a ponta
dos dedos - Afê, tô cansada de
chorar, gente! Borrou?... Ai, nem tô maquiada, af, idiota...
- Muda o rumo desse papo que eu
tô no dress code hoje, saco: nada de
choro!... O sinhozinho gosta de futebol? - perguntou Amparo enquanto limpava o nariz com um lenço bordado. Em seguida
estendeu o mesmo lenço para Ipê.
- Não acompanho muito...
- Ah, pois essa daqui diz que ia
ser jogador de futebol, que quase
passou na peneira do C. quando ainda
era boy, acredita?
- Por que “acredita”? Eu era foda, meu
bem. Quando moleque teve um campeonato na minha escola e eu não fui só a artilheira,
não: eu fiz todos os gols, meu amor, to-dos... Depois defendi o time da minha
cidade e a gente foi bicampeão com o maior saldo de gols da história... E sabe
quem foi eleita artilheiro e melhor jogador nos dois campeonatos? Moi!
- Olha, ela se acha!- disse Amparo com um sorriso.
- E por que não seguiu carreira?
- Por causa das carreiras... - respondeu ela tocando o
nariz com o indicador.
- Abafa, abafa...
- Eu era tão novinho... A verdade
é que ninguém nunca me deu incentivo, sabe? Meu pai era o pior: “vai estudar, seu besta: estuda!” Credo,
sempre odiei escola... Mas ele nunca foi lá me ver jogar... Ah, que se foda
também, o que é que eu queria? Ele não curte bola, ué, paciência. Diz que ele
agora anda escrevendo: todo mundo é
metido a escritora hoje em dia.
F. fez um aceno positivo e se voltou
para Amparo:
- E a senhora?
- Eu, ioiô ? Eu nada. Fui saída
de casa bem cedo porque meu pai soube do meu namoradinho e quis me arrebentar.
Mas no fim deu tudo certo... - disse isso olhando para Ipê com um meio sorriso: a outra balançava a cabeça em negativa.
- Deu tudo certo como?
- Acabou que arrebentei ele primeiro!
Mas foi pura sorte, ioiô, Oxossi interceda, e... - ela interrompeu
a frase e tocou o ouvido interno com o indicador direto - É a baba eletrônica,
uma das meninas levantou da rede e... Dundum!?
Onde cê tá indo? Mijar, é? Ok, mas a senhora trate de acertar o xixi bem no
meio do vaso, que eu quero ouvir o barulhinho batendo na água e... Certo,
isso... Depois direto pra sua rede! São sete passos daí, eu vou
contar... Não senhora! E daí que ele tá te chamando? Não! Por que não é sexta,
só por isso... Respondona! Você quer ir pra salinha, é? Bom... Boa noite... A
tia te ama, viu?
F. sacou a cigarreira prateada, acendeu
mais um M. sem filtro e ofereceu as
duas, que recusaram. Depois de duas tragadas ele abriu a caixa de acrílico e
colocou os óculos que estavam ali: a armação era um tanto exagerada ao redor
dos olhos, com uma moldura muito angular. F.
pressionou a haste sobre o ouvido esquerdo com o indicador e o polegar: uma
linha branca de luz atravessou as lentes dos óculos de baixo para cima. Ipê e Amparo estavam admiradas:
- Gente, é uma interface latente, que fino... -
sussurrou Amparo.
-
Testing, testing, voice recording:
checked. Vidiando imediações: checked. - disse F. movendo o pescoço em planos circulares.
- E onde o HD de vossa maioridade
fica armazenado? - perguntou Ipê.
-
Zurich, the UBS...
-
Uau! Haja aqüé... O
nosso fica embaixo da cama.
F. parou de se mexer e posicionou a
cabeça num eixo fixo: em seguida arregalou bem as pálpebras e moveu os olhos
para o canto superior esquerdo das lentes: deu uma piscadela, moveu os olhos um
pouco para baixo, deu outra piscadela e disse:
-
First reporting on failure 15-30 aka
“Engenho Velho” or the Old Mill Project… Proceeding with the assessment of
revenue: topic one: Human Assets…
Em seguida ele relaxou as pálpebras e se voltou pra
elas com um sorriso. Abriu o livro negro
na primeira página, pegou do lápis carvão e rabiscou um falo de aparência amigável: com curvas arredondas e proporções
infantis. Na mesma folha traçou o perfil estilizado de uma maçã mordida, para a
qual a imagem do pênis apontava. O processo não durou mais que alguns segundos,
na sequência ele abriu o livro na seção marcada com o número 1 e escreveu a palavra “Dundum” em letra de forma, com uma
caligrafia impecável. Então circundou cada um dos “d”s na palavra e traçou duas linhas saídas das esferas: elas se
encontravam um nível abaixo, sublinhado dois outros termos que ele acrescentou:
“percussão” e “resistência”...
+ + + + + + +ssIss ● ■
● ssIss+
+ + + + + +
https://pt.wikipedia.org/wiki/Yukio_Mishima