7 de mar. de 2012

Crônica Artificial 0.3

Malês





Àquela hora da madrugada, no largo do P., os passos de dois tipos decididos ecoavam contra a fachada dos casarões. Os lampiões da iluminação pública faziam um brilho opaco e avermelhado sobre eles, que desciam a ladeira apressados, olhando em redor: eram dois mestiços bem apessoados, vestidos a inglesa e com requinte: o mais baixo deles tinha o cabelo crespo encaracolado e curto, além de três cicatrizes na face esquerda, que se sobrepunham em linhas paralelas. A cada passo precisava limpar o suor da testa com a manga da casaca de veludo, pois fazia um calor considerável: o segundo usava o cabelo preto bem rente e um bigode angular: na mão esquerda levava uma espécie de rosário de contas negro, que ia girando entre os dedos com habilidade.

            Os dois passaram pela igreja de Nossa Senhora dos Pretos e dobraram a direita na rua seguinte: alguns metros afrente havia um beco entre dois sobrados, na mais completa escuridão. Pararam: no fundo da viela a brasa de um cachimbo se destacava contra o fundo preto, tragada com vigor por alguém que esperava:

]   * [


O sujeito de bigode fez um gesto pra que o amigo esperasse ali, sob o poste na entrada do beco: ele então deu um passo pra dentro do breu e, com metade do rosto encoberto pela sombra, perguntou com firmeza ao homem de cachimbo:

- Reintegro?  
- Patas de galinha...   

Voltando-se pra entrada com um sorriso, sussurrou qualquer coisa em língua semita e, enfiando o rosário no bolso do casaco, caminhou a passo curto na direção do desconhecido:

- Vem de uma vez D., tá limpeza.

Ao reconhecer a voz do amigo, D. apressou o passo e abriu os braços de leve: o outro aproximou a brasa do cachimbo e o lume avermelhado revelou o rosto conformado de um jovem de cavanhaque, cabelo preto ondulado e olhos claros: D. se apressou a abraçá-lo respirando muito fundo: como o outro fosse um pouco mais baixo, ele se inclinou pra passar o queixo sobre o ombro do amigo e suspirou, afagando-lhe a nuca:



- Cê tá igualzinho o A. de Azevedo, M., carai!
- Ele nem nasceu ainda: mal nasceu... - disse M. batendo nas costas do amigo com entusiasmo - e você com esse bigodinho escova ai, novo skin de merda!
- Tô a frente do meu tempo ué... – disse D. coçando o bigode enquanto se afastava.
-... [trago de cachimbo]
- E o que aconteceu com você? Como foi teu salto? Caiu no itinerário?
- Hum hum, lá na vila de São P... lugarzinho sujo hostil de merda, gente tacanha do mal... ah, mas não todo mundo né, tamém conheci um povo gente boa...  O foda foi que calcularam o giro errado pra mim: fiz a reentrada de madrugada e cai num brejo perto da rua dos enforcados...
- No brejo?
- Tava um breu do caralho: dai minha papelada caiu n`água e quase perdi tudo... Mas os títulos tão aqui, não precisa me olhar com essa cara!... A barca que eu peguei pra cá não foi das piores: fiz amizade com uns milicianos de Irlanda que iam pra corte e a gente encheu a cara todo dia!... Putz, uma vez enfiei darwinismo numa conversa: e os caras riam, riam!...
- Posso ver a dívida?

M. ergueu os ombros e fechou os olhos, balançando a cabeça com três acenos ligeiros: então se abaixou, abriu uma valise e tirou de lá uma pasta fina de couro, com reforços de metal nos ângulos externos: em seguida el` abriu a encadernação sobre o peito e mostrou o conteúdo ao amigo, que acendeu um fósforo pra enxergar: presos lado a lado por abas de tecido, documentos oficiais do impérios brasileiro e inglês formavam dois blocos compactos: no emaranhado de letras com caligrafia rebuscada, destacavam-se algarismos seguidos de muitos zeros:




- ...
- Precisava falar uma coisa... – disse M. fechando a pasta com um golpe e oferecendo ao amigo: - Encontrei o G. na corte e ele tá bastante receoso e tal... cê tinha que ver a cara dele quando me entregou esse trabalho: ele perdeu muito peso, anda bebendo...
- Perdeu peso? Deve ser disenteria... E quem é que não anda bebendo, carai? Ainda bem...  Eu mesmo tomei umas antes de vir pra cá.  
- Não é só isso, pô, cê recebeu as cartas: cê sabe que o pessoal não tá conseguindo se articular com os liberais de lá: nenhuma luz... Até quem defende a república escrava bizarra é taxado de separatista, e logo botam uns negros de ganho pra seguir eles na rua... o E. tá se fudendo com os farroupilhas tamém, acompanhando uns combates miúdos, deprimido com o sofrimento da caboclada...
- Não tá fácil pra ninguém não... Mas precisa aguentar firme, ué: criar uma unidade nacional de verdade: revolucionar as relações de trabalho e propriedade e fuder com esse imperador menino ai!  

M. desviou o olhar do discurso e se voltou para o cachimbo, abafando o tambor com o polegar:

- Cê sabe que eu passei por uma vistoria lá no rio, uns sujeitos da guarda lá, querendo xeretar no meu baú... Dai encontraram esse meu fumo gostoso lá no meio! Eu disse pra eles que era um fumo indígena vigoroso, lá do triângulo baiano, e dei um pedaço pra eles levarem!
- Cê é maluco...
- Se fumarem no quartel vão se fuder muito! Vão vê o vurto: o vurto da véia! Olha, já comecei com a poetagem...  Mas vem cá: e a moça que ia entregar o levante aqui? Que cês fizeram com ela?
- Bom, ela não era liberta e a gente providenciou isso ai...



Na entrada da viela o rapaz sob o poste soltou uma frase meio cantada, que ascendia um pouco pra logo descender num golpe, em conclusão:

- Que foi que ele disse?
- Ele disse que eu tô querendo transar com ela... Não disse assim direto, usou uma expressão meio chauvinista do corão que começa com... al-hamdu lillah...
- Bismillah! Nooo: we will not let you go! Let me go!
- Tipo isso ai, é por onde vai mesmo!… Mas citando você: oh! ter vinte anos sem gozar de leve a ventura de uma alma de donzela!... Isso aqui é um faroeste cabloco, essa bahia arcaica: a gente quer morrer o tempo todo...




- Mas me fala da situação por aqui, eu tô indo embora logo mais pra São P... Nossa, voltar pra São P.: eu devo me odiar mesmo...
- Nossa articulação aqui tá dando certo sim: boa parte da liderança já aceita a ideia de uma revolta mestiça. Caindo os primeiros engenhos vamos sair com uma propaganda republicana entre as camadas médias, redistribuir...
- Mas cê acha mesmo que vai colar isso ai?... Entregando as armas pra esse povo eles vão neutralizar vocês no mesmo dia... Vão formar a teocracia nordestina... E isso pra não ir muito longe, hein, só o tempo do duque C. e os milicos subirem pra aqui...
- Não é bem assim não. Cê acabou de chegar, as coisas não vão por ai mesmo!
- Mas falando sério, agora que a gente tá aqui e você olha pra cara desse povo frente a frente, me responde: que sentido tem botar esse lugar abaixo? O que esse lugar tem pra aprender com o fim do mundo?
- Que sentido tem?...- D. parecia transtornado com a pergunta e enrugava a testa, engolindo a seco:
- Ah, não me leve a mal, hein! Não me subestima: tô fazendo o advogado do diabo aqui: tipo A. de A. né: o capeta tá solto! Cuidado! Ah, ah!...  Porque a gente sabe pra onde caminham essas historias do h., e lá pelas tantas as pessoas começam a se responder fazendo perguntas, e alguém vai e perde a cabeça, e solta um discurso inflamado, e depois acontece alguma coisa idiota que ninguém tava esperando...
- ...
- É só uma pergunta mesmo: não tem mais peso que isso... Mas qual deve ser nossa atitude diante de uma coisa dessas? Qual o nosso lugar dentro do tempo?... Porque a gente viu o que aconteceu depois: a perseguição política, as ruas do centro lavadas de sangue, as senzalas verticais na avenida São J...
-... não sei... Acho que, em primeiro lugar, de respeito né: respeito pelo sofrimento do passado e do presente... E respeito pelas lutas do presente e do futuro... Depois é chegar a uma conclusão, fazer autocrítica e combater o horror miúdo sempre... Pra sempre.



- ...
- Afê, acho que chapei de tabela com isso ai, e nem curto essa parada...
- Mas os índios gostavam hein: cê conhece a história do Tuim Mirim?
- Não...
- Ele foi um navegador francês que veio pra cá numa expedição lá pelo final do século XVI, isso pra desgraça do povo daqui: veio na expedição de M. Soares Moreno, pra fazer muitas esposas no meio das índias, guardar a terra e fazer lucro matando e vendendo gente... Enfim, o Tuim Mirim era conhecido assim pelos indígenas porque falava muito bem a língua deles e discursava bonito: era visto como um profeta...
- E ele fumava é?
- Que eu saiba não...
- Então por que cê tá contando a história!
- Não sei! Acho que fumei demais já, puta merda! Aê, D.! Me dá outro abraço aqui vai!... Olha, não vamos terminar essa história assim não: vou ficar na cidade por esses dias, até pegar a estrada com uns mascates paulistas ai, pra fazer uns registros e tal... Lá em São P. tô aprendendo viola com um caboclo que tira o som dela com a unha na caixa! E tamém tô bem amigo da L., agregada da sinhá F., que é dona da pensão que tô ficando, e essa pequena é demais: ela me conta todos os sonhos dela! E é cada sonho tão bonito de ouvir, cheios dumas imagens místicas, com viravoltas e voos: pedrarias! Como pode uma cabeça maquinar aquelas coisas?... 
- A minha amiga forra tamém tem voz de anjo: canta uns lundus bonitos, uns quebrantos... Mas a gente toma um chá amanhã de tarde, quero te apresentar a L. Mahin que te falei, a LM [éle-eme]... Tem muita gente aqui que você precisa conhecer antes do...
- ... [trago de cachimbo]
- ...
-... Ah, e manda um abraço pro P. sem violão ali, “na porta do beco estamos”: abraço aê P.!
-... salve...- disse o outro lá da frente, enquanto M. dava as costas e seguia pra mais fundo no beco, descendo por uma escadaria invisível no meio da escuridão: já com metade do corpo engolido pela treva, e de cachimbo na boca, M. se voltou pro outro sorrindo e disse:

- Ah, agora a senha de despedida, né: o que cê me diria se eu te dissesse: eu sou a flor silvestre que perfuma os campos?
-... eu não sei, cara, eu não via tanto...
- Cê tem que dizer: meu amor!
- Aqui está sua filha!