16 de set. de 2011

Crônica Artificial 0.9

L.
(El)³



[soneto per [÷ 1] [um]a semtetto]

Thanks to that I’m deaf, I’m dead:
thanks to that I’m lost...
Thanks to that I’ve passed, you’ve passed:
but thanks to us will last.

[sonnet para[ 1] un[a] senza-teto]

Per questo son sordo, son morto:
per questo mi trovo smarrito...
Per questo io fui,  tu fosti:
ma da noi rimarrà all’infinito.

[sonetto for [4.1] um[a] homeless]

Por isso estou surdo, estou morto:
por isso que me perdi...
Por isso eu passei, cê passou:
mas em nós nunca há de sumir.



[̊ N̊ ̊ = 9]
            A XX L. deu outro gole no copo de cerveja, mas deixou escorrer um pouco pelo canto da boca: gotas de espuma caíram sobre a camisa branca e os suspensórios. Ela bateu no chão com a sola do coturno e estalou os lábios:

-... merda... -  disse L. limpando a boca e enrugando a testa sobre os olhos azuis. Em seguida ela passou os dedos molhados pelo cabelo curto e riu pra amiga diante de si: as duas estavam num boteco movimentado da rua A., sentadas numa mesa contra a parede:

- Cê viu que eu babei do lado esquerdo, né Fran. Nossa até pra isso... Sabe o que eu percebi? Que ando segurando uma mesma postura por vários dias, isso sem me dar conta! É tão louco isso: é como se um eixo me dividisse em duas: - ela então ergueu o indicador direito, posicionou entre os olhos e, traçando uma linha horizontal com a mão livre, apontou primeiro pro olho direito, depois pro esquerdo:



+
-...
-Às vezes fico descalibrada e não mexo a cabeça pruma direção por dias: pode ser pra esquerda, pra direita, pra cima, pra baixo... Quando tento controlar aí é o pescoço todo fica duro, tipo duas vigas cruzando meu corpo na transversal. Elas descem em paralelo aqui e aqui: - e nisso ela estendeu o braço esquerdo mais uma vez e, apontando para si com o dedo curvo, traçou no ar duas linhas que cortavam os olhos e iam até a clavícula:

 


│   │
•     •
│   │


- Que horror...
- Pois é: me dá umas enxaquecas terríveis... É como se eu tivesse esperando alguém me dar uma porrada... Claro que não é nada consciente, mas...
- Por que você não alonga, respira, sei lá.
- E eu faço isso, mas sempre falta alguma coisa né: deus sabe o que a gente anda escondendo de si... Mas acho que é questão de tempo agora: não vou deixar essas manias ficarem me consumindo.
- Você é maluca Li, tem umas idéias fixas... - disse F. segurando o copo de cerveja perto da boca, e deu um gole.
-...
- Ah, e comecei a ler a última crônica que você postou: ainda não terminei, mas tô achando bonita. Tem que ver com as inteligências artificiais que os gringos mandam pro espaço né. Cê viu que a gente vai mandar uma tamém? E olha isso: a sonda vai chamar Condoreira-1, e a consciência sintética lá dentro... B!
- O quê, um casmurro sideral? No way! Bom, pelo menos no espaço ela não vira uma megera egoísta e caprichosa...
- Ah sim: como toda unidade bipolar ela só pode ter surtinhos de autopunição né.
- Que absurdo inculcar um sintoma em alguém desse jeito. Já não basta esses merdas da indústria de games vendendo IA’s aos milhões pros burguesinhos tarados? Granja de almas...
- Ah, algumas encontram hospedeiros bons, vai... São felizes...
- Mas a maioria vive na degradação, na dependência sem fim: exploradas em serviço de telemarketing, assistência técnica, bancos, escritórios, colégios, escolas de idioma...
- ...
- Pra elas é isso ou acabar esquecidas num canto, enlouquecendo por privação de estímulo...: quando não são torturadas com som, cegadas, encaixotadas vivas...
- Ah, chega! Conheço essas histórias aí: gente doente... Mas prefiro me concentrar no que elas são: uma voz numa caixa.    
- Uma voz? Mas se isso é a coisa toda...
- Tá. Ok. É que essa conversa soa maluca pra mim ainda. Claro que eu não vou ficar destratando o aparelho né, mas nem vegetariana sou, que dirá ficar preocupada com uma coisa que... uma entidade só... É que nem falar no telefone, pel’amor de deus! É absurdo tratar uma coisa daquela como se não fosse só aquilo: não consigo ver... Por que, por exemplo: se eu fosse aquela voz, aprisionada ali... É que nem ter cachorro será?...
- Acho que é um pouco mais do que isso [gole de cerveja]. Tá, você falou de ser vegetariana, que é quando um recusa de comer outros animais e tal. Agora aparece esse objeto que fala e ninguém quer ser comparado com isso por nada no mundo: lógico.
- É claro que é lógico. E você não fica incomodada de ver gente tratando cachorro que nem criança? Oprimindo o bicho com cuidados, bebendo a saliva deles, uf...
- Fico, fico sim. Mas isso não é nada... O horror de ser comparado com um animal ou com uma máquina reforça a posição desprezível que a gente...
- Desprezível?
- Desprezível: alienado das próprias ações, incapaz de mudar a realidade em redor; sexualmente frustrado, prisioneiro da própria classe (seja fugindo ou se agarrando), testemunha da miséria alheia...
- Um dia vão fazer um cachorro robô falante: entidade jurídica...
 - Aí a miséria se completa. Já não chega lavoura de cana, de porcos...
- A N. escreveu um poema didático sobre isso, cê leu? Ela diz que a maior parte das espécies animais tá desaparecendo do planeta, e que as únicas que conseguem resistir com folga ou são cultivadas, ou são pragas: tipo rato, barata, gado, frango... e gente né. Muita gente.
- A N. é intuída, gosto muito do que ela faz... Queria escrever alguma coisa pra ela, mas tinha que ser a crítica mais afiada, a mais sincera!
- Cuidado pra não deixar ela triste...
- Ah, mas como? Todo mundo sabe o que tem medo de ouvir [pra isso é sempre tarde demais]: mas e se eu disser uma coisa que ela não tinha pensado? Que talvez ela ache um adianto, não sei...
- Mas não ajuda em nada ficar apontando imperfeições nas pessoas assim a seco. O que você consegue com isso, muitas vezes, é o contrário: elas acabam mais apegadas àquilo que você criticou.
- Cê tem razão, dá tudo em água de novo... Falando nisso, escrevi outra crônica e trouxe o doc. aqui no meu cel pra você dar uma olhada. Na verdade não sei se devo publicar isso.  
- Por quê?
- Cê lembra aquele casal de amigas que têm uma IA.? Eu te contei del’s uma vez, a entidade é uma graça, chama I.! Tão esperta... Ela imita tu-do, Fran: vidro quebrando, órgão, oboé, bateria. Ela fez uma imitação minha tão boa, mas tanto... Você já conversou consigo mesma? Já ouviu o som da sua voz saindo de outro lugar e conversando com você? É bizarro, horroroso!
- Lembro sim, aquela que queria ser chamada pro programa espacial! Que fofa... Mas que tem ela?
- Bom, eu cheguei na casa das meninas outro dia, porque a gente ia tomar uns vinhos com o pessoal, mas encontrei as duas meio estremecidas. Até a I., tadinha, me disse oi com uma voz diferente. Não cantou nem assoviou nada como de costume [gole comprido de cerveja]...
- Mas quem são essas meninas mesmo?
- A AL. e a LA. : nome duplo e em espelho [gole]! Mas nossa: acho que vou falar  muito demais hoje, F., cê se importa? Tenho tanta coisa pra contar!
- Pode falar, querida, fala sim. A gente faz que nem nos diálogos daquele grego filósofo lá: uma fala, fala e a outra só responde: ‘sim S. como não. Sem dúvida S., você disse bem. Claro, S.’!
- Engraçado! Diálogos em só... Mas continuando: as meninas me chamaram pra fora do apartamento e fecharam a porta: super estranho. El’s me disseram que tavam preocupadas com a I., que ela já não agia do mesmo jeito com as duas, se recusava a conversar ou participar dos jogos, só queria saber de estudar sozinha... E que falava de mim o tempo todo, perguntando quando eu ia voltar, qual o meu telefone, e-mail, enfim.
- E el’s deram?
- A I. é um modelo popular, não tem interface com a rede.  E as duas não querem tamém: cê sabe o que acontece com as IA.s que ficam online o tempo todo né: elas emburrecem muito rápido, e ficam malucas com a possibilidade de se passar por uma pessoa.
- Sei...
- As duas disseram que ela gosta de mim porque ‘fui a única pessoa que tratou ela de igual pra igual’. Na hora me deu vontade de rir, mas as el’s estavam super ofendidas com essa história, precisava ver: parece que o clima tava tenso na casa por conta dessa afirmação da I... [gole, refil, gole]     
- E a sua história onde entra?
- Então, as meninas queriam que eu falasse com ela a sós né e foram no mercado comprar cerveja: daí eu fiquei lá sozinha com a entidade. Alias é uma fofa mesmo, tenho muito carinho por ela...
- Mas o que ela te disse vai ofender suas amigas?
- Acho que não, porque é tão geral... Mas como aquela criatura vai se libertar, ainda que  ame as hospedeiras daquele jeito?... Ela pediu pra vir morar comigo aqui na república, mas estou com medo de contar pras meninas. O mais estranho é ter que comprar ela das duas, imagina... Eu tenho algum dinheiro salvo das taxes lá de L., mas... 
- Se eu puder ajudar...
- Brigada! Mas primeiro pensei que com a história podia convencer as duas: tomei o cuidado de alterar uns dados de realidade, etc. Mas e se o tiro sair pela culatra e elas se ofenderem?
- Você encana demais com isso, relaxa. As pessoas esperam que você escreva coisas, sempre foi assim. E ninguém liga tanta importância nisso. Pelo menos não tanto quanto você! 
- ...
- Sem ofensas...
- Ah, mas não ofendeu: ajudou. De verdade! [gole] Vou pegar mais cerveja.

            L. se levantou jogando as pernas pra esquerda e batendo os dois pés no chão enquanto subia. A levantada brusca fez o sangue subir à face, que ficou vermelha: ao se aproximar do balcão pediu passagem a três rapazes: eles estavam na casa dos vinte e poucos anos de idade, como ela. O mais alto era mulato, de cabelo encaracolado castanho e pele cor de creme. Os outros dois regulavam altura, sendo um branco, de cabelo curto e barba cerrada bem preta; e o outro ruivo, de olhos rasgados azuis, bigode vermelho e a pele castigada de sol. Todos os três de porte atlético e certa rigidez no espinhaço, que lhes dava uma atitude marcial e desconfortável.

            El’s pareciam ignorar os apelos de L., que forçou passagem entre os cotovelos dos sujeitos. Antes que ela alcançasse o balcão, porém, o tipo de barba preta cutucou o companheiro ruivo e sussurrou:

-...  forpulede kælling...
- Whatta fuck did you say, soldier? – disse L. se voltando pra ele com o rosto transfigurado.
- …
- Whatta hell did you call me!? – caiu um silêncio sobre o bar e todos se voltaram pra eles.
- …Are you nuts? I was talking to my friend here…
- Mercenaries have no friends fella: ya better get that before it’s too late.
- We’re students, just students…
- Bullshit! Goddamn fascists… Some people may happen to understand your freaking language, so watch for your words dickhole!

            Nisso o funcionário do bar se aproxima por detrás do balcão e chama por L., colocando a mão sobre seu ombro esquerdo:

- O que acontece, minha querida?
- Nada não, Zé. É esses dinamarco do carai aí, que acham que tão no Litoral Novo pra poder sapatear nos negros da terra.
- No, por-fa-vor... That’s not true. I’m from Sweden. This is my friend Lars…
- Shhh, ok, ok. Don’t care: your business my man… Mas se ficar destratando cliente vou ter que acionar a milícia...    
- No, no, no: that’s not necessary...
- ...
- E cê vai querer o quê?
- Me vê outra B., Zé. E um D. com gelo.

Ela pegou as bebidas e voltou pra mesa: os três cederam passagem.

- O quê foi isso? – perguntou F. de olhos arregalados.
- Nada Fran, a falta de jeito de novo. Se eu ganhasse um crédito pra cada confusão miúda que tenho arrumado por aí já tava morta [gole de D.]. Com a reintegração de posse no litoral os dinamarcos tão mandando gente deles pra todos os cantos do país né. Vão articulando um golpe: vai ser a rede da ilegalidade!
- ...   

            Depois de debaterem em voz baixa os três estrangeiros decidiram sair do bar. Passando por L. e F. o mais alto sussurrou:

- lesbisk hore
- Go have a threesome stooges: you’re already dead, you scum! The militias will take everything from you!… 



- E agora ele te chamou de quê? Ainda que uma das palavras a gente entenda bem...
- Pois é, me chamou de dike né [gole de D.]... Dike pros gregos era a deusa da justiça: ela não tinha nada de cega, bem o contrário... Em algumas pinturas ela aparece batendo em outra mulher com um pedaço de pau, e a que apanha é a deusa da injustiça!
- Que louca...
- A louca bipolar né. Mas até que faz sentido se a gente pensar nas lutas que uma pessoa tem de engajar se quiser conhecer a si mesma: de não se acovardar diante de idéias.  Especialmente se você é gay né... Por isso que a homossexualidade é forma mais avançada de luta de classe.
- Como é?
- A homossexualidade é a forma mais avançada de luta de classes... Não tô dizendo que seja a única ou a mais importante: longe disso. Com tanta gente no inferno da miséria... Mas qualquer pessoa que tenha crescido enfrentando intimidação e repulsa, que era vista como ‘marcada’ no meio dos outros, conhece o amargo da opressão de classe e do que é o pesadelo do mundo...
- Que exagero. Não tem nada de revolucionário nessas bis afogadas em grifes, ou nesses empresários que aparecem em coluna social com meninas de aluguel...
- Sim, o gueto é dos antigos já: solidificou a própria separação e oferece uns padrões de comportamento copiados do opressor: agora, quando sinaliza a própria presença é pra evitar agressão. Chega copiar uns rituais...
- ...
- A mera presença do elemento HM é crítica da família burguesa... Das relações de [re] produção desgastadas num mundo que espera o colapso... Por isso os HMs são recebidos com tanta angústia pelos pais... Muitas vezes acabam esmagados por eles...: digo, esmagados ainda na semente, aceitando e defendendo os preconceitos dos mais velhos à custa da própria lucidez... Parece alguém que recebe uma pedra grande nos ombros por ser mais moço, e vai carregando!... Mas não dá pra se enganar com a gente careta tamém não: el’s estão podres, podres de cachaça, de remédios... Podres de sapatear na cabeça dos mais fracos: de ensaiar pra violência que vem...   
- ...
- Por isso eu acho que essa virada HM não é suficiente enquanto discurso, ela não vai dar conta dos desafios na curva do tempo quando... Enfim... Essa primeira negação foi cooptada: qualquer embrião revolucionário precisa passar pela negação dessa negativa, pra aí sim desafiar o espírito com a Igualdade Nova... Entre o socialismo e o amor físico não pode haver nenhum conflito!
- Cê parece bem engajada nisso, tá namorando ou o quê?
- Eu? Não, não tô não... selva oscura... Tô é enrolada com duas pessoas. Enrolada aqui na minha cabeça né! Na obsessão das idéias.
- Duas meninas?
- Hum hum.
- Dois XY?
- Não... É um casal na real...
- Nossa e... há quanto tempo eles tão juntos? Nunca tinha ouvido falar disso...
- Ah, eles não são um casal entre si, Jeez! [bate na mesa com o nó dos dedos] Já tenho meus problemas... Pior do que pular dum carro em movimento deve ser pular pra dentro de um!... Não sei, pode ser preconceito meu, é que tive uns corres meio, meio... deixa quieto [Gole de D.] ... El’s não são um casal, é bem o contrário; são adversários políticos! Cê sabe como a esquerda é fragmentada né, isso historicamente: eles se julgam sem piedade e...
- Nossa então el’s se odeiam?
- Também não é assim: el’s discordam. Discordam bastante...
- E el’s sabem um do outro: que você tá saindo com el’s assim?
- Na real eu não tô saindo com ninguém mais, Fran. Já dei um jeito de sabotar a coisa toda. Dessa vez, pelo menos, tive um bom motivo.
- Bom motivo pra se sabotar! O quê é?
- ...



            L. se sentou de lado, apoiando-se na parede e ficando de perfil para F.: ela levou a cerveja até os lábios, deu um gole e, ao mesmo tempo em que baixava o copo, deixou a cabeça pender aproximando o queixo do peito:

- ...acho que amo as dois... [gole de D.]
- Ama? Que fofa! Parece coisa de novela isso.
- Novela? - disse L. contraindo os músculos da testa – Amor de novela é obsceno, conformista...
- Você que tava toda se declarando aí! Mas se é só um rolo na faculdade porque essa conversa de amor então?
- ...
- hein?
- ...Foi a melhor coisa que me aconteceu... Agora sempre que penso nisso me dá força... Saber que estive com el’s me enche de orgulho... É amor sim, mas um amor vem da admiração mais egoísta...
- E qual não?... Mas me fala del’s, quem são? O XY.
- A, é o C. Milita pela L. , que é um grupo que tem conexões com estudantes de toda AL. em países tipo C., B., A... Ele é poeta: estuda letras lá comigo... E é tão bonito, tanto! Tem a pele cor de caramelo, cabelo castanho ondulado e corpo de estátua grega! O rosto é demais tamém: tem um quê de turkish, com nariz anguloso, covinhas... Fala sempre numa toada mansa, olhando nos olhos da gente: e as coisas saem tão refletidas da boca dele: bonitas de ouvir nas idéias e na forma!... Parece alguém que achou tranqüilidade depois de muita agitação... [cerveja: gole e refil]
- ...
- ... A noite que ele não veio foi
       Foi de tristeza prá mim
       Saveiro voltou sozinho
       Triste noite foi prá mim...
- Adoro essa música...
- ... Nas ondas verdes do mar meu bem
       Ele se foi afogar
       Fez sua cama de noivo
       No colo de I...



- Mas por que isso, ele gosta de C.?
- A verdade é que eu nunca tinha ouvido essa música, e ele me mostrou: nunca tinha ouvido, e na minha idade! Sabia só de ouvir falar, mas ouvir, ouvir... E é a coisa mais triste... O mar é um negócio intratável, flagelo da gente que precisa dele pra viver: bem diferente pra quem tá se bronzeando na praia. Isso foi o C. quem me disse, e é verdade... Ele tem dois irmãos mais velhos, que nem eu. No caso dele é um casal irmão-irmã, já eu tenho dois irmãos né. E tem mais: o irmão mais velho dele tem o mesmo apelido do meu irmão mais velho: N.! Sendo os dois de gênio parecido tamém, desbocados, meio indisciplinados.
- Que engraçado.
- E não pára ainda: a irmã dele do meio, e meu irmão do meio, são músicos: os dois têm até o mesmo jeitão, são esbeltos, estudiosos, na deles!
- E os irmãos dele são politizados que nem ele?
- Ah sim: se não tanto quanto ele, pelo menos na medida em que nós somos por conta da angústia de classe, da angústia do futuro incerto... Eles são ótimos, ninguém perde o rumo com fascismo barato não: ninguém é maluco! Coisa rara pra quem cresce num país fraturado desse... E seus irmãos, como vão?
- Vão bem: um tá militando e o outro trabalha no banco. Tão estudando também: administração e geografia. Vai me perguntar quem estuda o quê?
- Não precisa!
- Bom, mas eu sou a mais velha: meu ponto de vista é outro, bem mais crítico de vocês aí, que vieram na seqüência... - disse F. segurando o riso.
- Não esperava outra coisa de quem teve a chance de fazer os irmãos de bobo!... Mas é assim mesmo, é assim mesmo.   
- Tá, mas porque não deu certo com o C., me explica: olha como estou toda entrevistadora hoje!
- Fran: já te disseram numa dinâmica de grupo que você é ‘uma boa ouvinte’?!
- Não! Mas com você já aconteceu pelo jeito.                              
- Nossa, acontece direto, direto: eu adoro! – disse L. mudando de posição e voltando a se sentar de frente pra amiga. No meio tempo o atendente trouxe outra cerveja.
- Então, querida, mas por que a ‘coisa’ não ‘foi’? ¿Qué pasó?
- Não sei; foi um tempo muito curto pra pensar: eu surtei pra dentro, me fechei em copas... A angústia de estar perto de alguém e ter medo das próprias palavras: medo de dizer alguma coisa terrível: aconteceu o mesmo com a J.; ainda mais rápido até... Tô perdida nesse mundo...
- Entendi...
- Conforme foi crescendo o afeto, e o corpo se fechando, ele começou a me lembrar meu pai: uma versão libertária dele, que atravessou a imundice dos preconceitos com mais coragem do que eu pude, e agora vinha me mostrar um mundo novo de amor, de reencontro... – nisso os olhos de L. se encheram d’água e os lábios vibraram num muxoxo infantil. Logo a mesma expressão se encheu de uma raiva crua, encrespando a testa e travando os dentes num suspiro, enquanto cerrava o punho esquerdo:

- Fica calma, querida, essas coisas são assim mesmo... – disse F. tocando a mão da amiga.
- ...
- E essa menina J., com ela foi a mesma coisa?
- Idêntico... Terminou ainda mais rápido né, com esse medo cretino de ser lésbica que me deixa tão violenta e noiada... É por isso que elas me odeiam: sou uma pelega mesmo...
- Não acho que ninguém te odeie não: quem disse?
- Pois outro dia tava tomando um conhaque encostada ali na porta de aço e passaram duas dikes cantando: “careta, careta: hahaha” quando me viram... Por que careta? E eu não tô aqui bebendo sozinha? Pronta pra lutar com el’s ou por el’s contra os fascistas? Não tô aqui feito uma idiota, refinando meus preconceitos, pensando um monte de merda?! Babacas... Acham que descer a A. dando um pouco de pala transforma el’s na vanguarda lésbica... Quem é mais careta: eu ou el’s que ficam se protegendo nessa monomania de mundo de meninas e auto-afirmação?
- É bem provável que elas não tavam falando de você ou com você. – cortou F., ao que L. deu de ombros.          
- Hum, e daí? Aceito a ofensa: ser careta é uma merda mesmo, eu é que sei. Mas que elas não enxerguem que são duas vozinhas neo-moralistas é que me preocupa. A J. falava muito disso, dessa alienação da falsa rebeldia, que vai colocando tudo a perder.
- Ah, lembrei dela agora! A gente foi junto na praia uma vez, lembra?
- Sim! Na época ela tava com o cabelo joazinho tipo o meu: agora tá bem comprido, cacheado e loiro.
- Ela é muito bonita mesmo.
- Bonita demais, demais... Já viu as mãos dela? Mãos de estatuária! Tudo tão desenhadinho: o nó dos dedos, as veias... E ela tem uma penugem avermelhada na nuca e nos braços, eu o rosto leonino de...
- Cê lembra bem de tudo hein! E ela é da letras tamém?
- [gole de cerveja] Não: sociais. Milita no M., que é um grupo de agitação política lá da U.: um povo que devora a tradição marxistas, mais as vanguardas estéticas, e atualiza tudo em chave crítica com umas intervenções fantásticas...
- E com ela aconteceu o quê? Cê lembrou da sua mãe!?
- Talvez... a gente é amiga há tanto tempo, desde que eu tava com o M., que era amigo dela bem antes. Naquele tempo tive uma paixonite forte por ela! Dessas que a gente sente pra se consolar, sabe? Que guarda pra si... Lembro que uma vez o M. não quis pular carnaval na Vila M. e fomos nós duas só: a gente bebeu cerveja, fumou cigarrilha, dançou, conheceu gente! Eu tava muito na dela e sem poder estar, o que foi o melhor! Como é grande a amizade de um amor guardado, vish... Mas nossa, pra pensar nessas coisas precisa ter o espírito forte... [gole de D.]
- E depois?
- E depois o depois: que eu sou louca, com cabeça de onze anos de idade... Não pude levar a coisa adiante nem um pouco: me deu um cinco minutos, não sei o quê, não sei porquê, mais foi isso.
- Fico preocupada com essa sua solidão aí...
- Depois del’s 2 tamém fico... Quando penso nel’s não me vem nada que se possa reprovar, pelo contrário: el’s são o que há de mais valoroso pra mim nesse mundo, em beleza, em palavras, em ação... São o que eu gostaria de ser se tivesse mais valentia nessa vida... Dois corações contra o tempo, inimigas da mesquinharia no mundo e nel’s mesmos: meus amores, meu coração...

L. se engasgou num soluço e calou, limpando os olhos com raiva. Em seguida apoiou os cotovelos na mesa e cobriu o rosto com as mãos espalmadas, deixando ver os olhos entre os dedos abertos:


      <• •>
               

- Mas porque você não conta isso pra el’s, querida? Se é o que tá te afogueando assim é bom falar.
- Não! - disse L. deixando a mão direita cair sobre o colo enquanto ajeitava o cabelo e se espanava, torcendo o nariz. – Falar o quê? Já foi, perdi o bonde... Não tenho o direito de ficar confundindo os outros por aí, tô idealizando demais de novo: melhor ficar quieta e ter isso só comigo...
- Mas se cê tá sentindo isso é só a verdade, ué. Ninguém tá te pedindo pra casar nem nada.
- Dizer pra quê? Pra palavra virar chumbo na minha boca? Pra passar o resto do tempo procurando uma saída? Olha pra mim, F., eu nem consigo me enxergar. Às vezes saio por aí e parece que deixei as pernas em casa, meu braço direito: metade do rosto... Fico mandando sinais errados, brigo por picuinhas, você viu com os dinamarcos à paisana? Eu não posso dar uma dessas desse jeito, é me arriscar por nada... Além do quê você já viu uma mulher feita chorando por sua causa? Um marmanjo te agarrando aos prantos porque você não pode se outra pessoa? Não: quando penso em alguém nesse estado me parece que tá tudo perdido... Não parece?... Non, pas d'amour, pas d'amour...
- Cara, você tem mesmo onze anos de idade, hein. Como faz?
- Sei que soa idiota falar dessas coisas na bucha assim, direto: mas são as perguntas simples as que as pessoas têm mais medo de fazer. É bizarro... [mata o copo de D.]



- Mas perguntar tanto tamém é uma forma de fugir da ação, não é verdade? De se proteger... Querer ir pra todos os lados é não ir pra lugar nenhum.
- ... Sim, sem dúvida. Mas como posso ficar fazendo elogio do amor a uma altura dessas? Não é justo com o sofrimento dos outros: com quem tá sem ninguém; com quem não sabe que espera o amor de onde ele nunca vai poder vir; com quem luta pra esconder um desejo de si e dos outros, e se arruína no processo; com a moça religiosa que se casou em nome de Deus, mas caiu nas mãos de um monstro; com o marido que odeia a família em segredo, e não consegue se perdoar por isso; com a dona de casa que se vê perdendo o desejo do homem e pune os filhos com rigor, moralismo, violência; com a criança que reza pela separação dos pais; com a filha detestada pela mãe, que foi abandonada pelo esposo; com o filho detestado pelo pai, porque veio pra tomar o seu lugar; com o marido que odeia a esposa e só encontra paz em casa quando pode pisar nela; com a mulher que odeia o marido, e precisa tratar ele como um menino ou um inválido pra continuar junto dele; com o esposo que vê sua paixão pela companheira afrouxar e desenvolve um comportamento compulsivo: comprar, beber, fumar, comer, rezar, jogar, brigar; com a noiva que precisa casar pra sair da casa dos pais; com o noivo que fez a promessa, mas não sabe bem por que cumprir com ela; com a noiva que vê o futuro marido engordando e regredindo pra se defender, enquanto ela tem que saltar décadas adiante, envelhecendo e careteando como as mães e as tias, e as vós; com a noiva que sente que seu companheiro vai sendo “conduzido” pela vida, sem interesse, e acaba desenvolvendo um comportamento compulsivo: comprar, beber, fumar, comer, rezar, jogar, brigar; com a namorada que sente a própria paixão diminuindo e tenta esquentar as coisas com conflitos falsos; com o namorado que se descobre sozinho junto da companheira por conta da nuvem de ocultação, do pacto de silêncio sobre certos assuntos que vai separando os dois; com a namorada que lê nos gestos do companheiro a excitação feliz do reencontro com uma amiga, ou amigo, e passa a detestar essa pessoa sem poder explicar por que; com o namorado que sabe que continua com a pessoa que tá por comodidade sexual; com a namorada que se sente obrigada a manter certo pique erótico se quiser manter aquela pessoa consigo; com a adolescente bonita, que de tanto esperar pela aproximação do outro é incapaz de flertar como um adulto normal; com o adolescente bonito, que de tanto receber a atenção é incapaz de se relacionar como um adulto normal; com a adolescente feia, que de tanto sonhar com o amor ideal ficou incapaz se relacionar como um adulto normal; com o adolescente feio, que de tanto sonhar com beleza ficou incapaz de flertar como um adulto normal; com a criança que ama seus pais e odeia seus irmãos; com a criança que ama seus irmãos e odeia seus pais; com a criança que ama sua mãe e odeia seu pai; com a criança que odeia sua mãe e ama seu pai; com a criança que odeia seu pai e se ama: com a criança que se odeia...
-...
-...
- ...Acabou? Olha, nem sei se você ensaiou isso, mas tem uma coisa chamada: verossimilh...
- Eu sei, eu sei: é que não dá tempo, Fran! Faltou dizer muita coisa... Você não sente o tempo escapando de você assim: pssss...
- Oh, assim mesmo viu, tipo uma bexiga esvaziando, é assim o marulho do tempo que passa...
- ...Tutti li miei penser parlan d’Amore – e hanno in lor si gran varietate!....
- Eh, lá vem seu D... Seu D. e sua divina C. Quem era a musa do D. mesmo? A moça perfecta, dona Ângelo, como é?... B.!
- Sim, a B.! Madame B., c’est moi! Não é, Fran? Porque esse amor de louvor por ela nasceu de um impulso de igualdade insuportável, não foi outra coisa!... Era um companheirismo no desamparo, na luta pela justiça e a salvação... Era um mundo horrível o deles, mas a prosperidade gerou uma classe de homens livres e trabalhadores, os primeiros burgueses! Mas o mundo era um inferno, que nem agora né: olha lá fora, as pessoas tentando a vida na rua...: é uma máquina de moer gente esse B. nosso, F... Máquina de moer...
- Meu, eu vou lá pagar, que cê tá chumbada já! – nisso ela se colocou de pé e puxou a bolsa do encosto da cadeira.
- Fran, Fran, olha! A I., aquela artificial que contei agora pouco, ela escreveu um soneto, acredita? Tô pensando em botar no começo da história, ela já deixou!
- Soneto? E ficou bom?
- Hum, meio quadradão, era de esperar né... quadrado... E ela tem um heterônimo: o H.!...
- H.? Que nome estranho...
- Me dá sua screen que eu passo pra você, e cê paga essa pra mim querida, plis? Tô achando que preciso vomitar...
- Ai merda... – ligeiro F. tirou um cartão preto espesso e flexível da bolsa: ele tinha 20 x10 cm, e bastou que ela encostasse no objeto pra que um ponto azul luminoso surgisse no centro da tela: L. estendeu a mão hesitante e tocou no ponto de luz. O cartão então se transformou numa perfeita folha de papel: nela se lia, em letras grandes, o seguinte poema:
         

-Meu amor é todo mundo e assim sendo,
maior amor que há é o que está morrendo.
[Pois nunca veio e nunca foi: sempre indo],
quando eterno e sem descanso vai sumindo...

Na solidão é a frustração que satisfaz.
[A cabeça é o sepulcro dos meus pais].   
No peito minhas amigas, meus irmãos,
são refúgio, são consolo: salvação.

E se mais velha ou em criança o[a]s encontrasse
[e meu amor ou minha recusa a[o]s ferisse],
sonharia o outro tempo, outra idade:

Em que a miséria já não nos separasse:
[pois lutaríamos contr’el’ onde fosse]!
Contra mim e contra ti: pela igualdade.




[̊ N̊ ̊ = 6]