A Trilha da [P]raia
Vermelha
*
* * * *
○
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Emergindo da escuridão surgiu o nariz
de P., que deu dois passos e parou
sob o ponto de luz na beira da estrada. Diante dele o caminho era longo: um
batidão de areia bem branca, com mato alto nas margens e árvores espaçadas [ora
pretas ora vermelhas] sob os postes de luz acobreada. De longe se ouve o mar e,
longe das luzes, o luar:
○
P. engoliu em seco e olhou pra atrás:
ali não havia passagem, apenas uma ribanceira que terminava num trecho de mato
cerrado. Mas pra além da mata se estendia um campo ascendente coberto de grama,
com árvores espaçadas e banhado pela luz da lua. P. deu um passo na direção do
bosque, mas um estranho vento lateral [que não o atingia] agitou com violência
os galhos das árvores. Ele suspirou: vestia apenas uma cueca boxer e uma
camiseta regata sujas de fuligem. Também
a pele [clara] tinha muitos arranhões de carvão e mechas do cabelo fino
chamuscado... Bufando ele deu grandes
passos na direção indicada: os olhos enfurecidos contra o luar:
○
[left-right] ß“ ”à [blood presure]
P.
O P. já é um senhor de cabelo grisalho
e ralo, mas bem distribuído. Seu rosto, no entanto, ainda que aparente a idade
que tem, fixou-se numa espécie de forma juvenil, que a maturidade só conseguiu
enrijecer nas arestas. A impressão que se tem é que [ali] velho e novo se
misturam, que aquela idade ainda é...
De físico ele é um tipo alto, de olhos claros, nariz anguloso e lábio fino.
P. interrompe a marcha e dá dois passos à
direita, na direção da cerca: o cromo do arame farpado faísca ao luar com um
brilho artificioso. Distendidos entre as pilastras de tora, os fios correm em
[3] carreiras tesas, que vazam os troncos das árvores em seu caminho:
○
,.,,.+Ұ+,.,.;
P.
,.,,.,;,.,;,,.;.;,.,.;,;,.;,;,,.,;
P. faz menção de tocar a cerca, mas
ouve um forte ruído de estática ao se aproximar. Ele retoma a caminhada pelo areão, que vai
pouco a pouco ganhando solidez: logo a trilha se acerta numa estrada litorânea
da qual não se enxerga o mar. À direita e à esquerda [além do brilho insidioso
das cercas e dos postes de luz cor de cobre] o que se vê é um par de pastos de
capim gordura, com árvores espalhadas pelo caminho.
Lá adiante, P. nota uma movimentação de
pessoas que vem de encontro pela estrada. Um grupo grande de jovens, vestindo
apenas camisolões de algodão, batia palmas cantando e dançando pra uma fanfarra
de metais, que vinha soprando com brutalidade. O grupo então virou à esquerda, sumindo
por detrás de um aglomerado de árvores. Antes que os últimos entrassem no sítio,
P. os observou a distância e ouviu o que cantavam:
–
É fora, é fora, é fora! É fora da lei, é
fora do ar!
–
É fora, é fora, é fora! Segura esse Boi
Proibido voar!
.,,;,;,.,.;.,.,;.,;.;;;,.;,.;;.;,;.,.;.,;.;.;.;.;.,,;,;,;,.;.,;.
?
▀
[pê]
*
[jovem]
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* [pê]
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I * B.
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[boi] * +
+ I I * * +
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* [fogo] +
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* *
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● [caixão]
+ + + + + + + + + + + + + + + + +Ұ+
+ + + + + + + + + + + + + +
[ipê]
ssIss * ssIss... P. viu o último
jovem cruzar a entrada e se aproximou dela, cauteloso, observando por um
instante: em lugar de porteira havia um enorme par de colunas dóricas, em volta
das quais novelos de arame [deformados por grande impacto] caíam retorcidos. Lá
dentro, uma passagem de terra batida [formada por pares regulares de colunas]
conduzia a um caixão arrombado ao pé de um ipê-roxo varado por três fios de
cromo.
ssIss ▀ ssIss... Cruzando o
umbral P. se voltou pra esquerda, onde um grupo em torno de uma fogueira
alimentava as chamas com gritos e cantoria, atirando grandes achas retorcidas e
galhadas que explodiam em volutas de faísca e fumaça. P. ficou observando, maravilhado,
as estrelinhas vermelhas que se apagavam antes de tocar o chão, e aprovou com
um movimento de cabeça aquele fenômeno. Ele então deu mais uns passos e, num
susto reparou [à sua esquerda] em outros jovens: que papeavam deitados sobre o
cadáver de um grande Boi Branco.
Ainda morno do abate recente, o animal excretava um filete de merda fumegante e
aquosa: e os jovens em volta cobriam o nariz, rindo. Uma delas abriu a pálpebra
do boi pra lamber e chupar os olhos: outro fuçava dentro da boca dele com os
dedos, acariciando as gengivas e dando beijos e mordidas nos lábios pretos do
animal. Isso e mais as outros tantas escanchados em cima del`, com os pés entre
as virilhas, espremendo a gordura tenra por detrás do couro, batucando nas
costelas.
- Vem
P.! Vem ver o Boi-Santo!... Tu já leu as caçadas de Pedrinho? – chamou uma
moça com sotaque carioca. E uma nissei o pegou pelo braço e o levou até lá
enquanto dizia:
- Foi Elalia quem matou ele com a gentileza do amor... – suspirou.
- El` tem o toque da morte! O dom da
tristeza mais suave: sono grande e misericordioso da culpa... – disse um rapaz
moreno de barba com sotaque caipira carregado: ele também pegou P. pelo braço e
continuou:
- Mas pra oferecer esse dom mais
precioso do tédio [a morte suave], el` também teve que sumir
junto...
Nisso chegaram no boi, e a moça que
lambia os olhos do bicho se ergueu saltitando e rindo:
-
Só eu sei o que vai se passar! Só eu sei... o que vai... se passar...-
cantarolou para P., que aprovou com um aceno de cabeça, sussurrando:
- ... a pirata...
Nisso os instrumentos de sopro soaram
de novo, oscilando notas graves num sopro contínuo: e as pessoas todas também
começaram a produzir uma espécie de “om” vibrante: e encheram o ar de algazarra
enquanto corriam em redor da fogueira.
Quatro rapazes mais fortes [carregando
cordas] permaneceram junto do boi e amarraram suas quatro patas, arreganhando o
bicho de barriga pra cima num X. Outro grupo foi até o caixão e o trouxe pra
junto da fogueira, inclinando-o na vertical pra mostrar seu conteúdo: lá dentro
[iluminado pelo clarão rubro] um[a] jovem de cabelo curto e claro vestia um
uniforme de colégio antiquado [preto e branco] com calças curtas, camisa,
casaquinho apertado, gravata de ponta dupla e botas de couro: o corpo do menina
se mantinha de pé amparado por duas moças que, o seguravam pelas axilas.
P. se colocou a distância, observando
tudo do corredor entre as colunas: súbito o ruído de uma serra elétrica cortou
o som dos metais e das vozes, e P. se voltou pra lá. Escanchada sobre os
quartos arreganhados do Boi, a
pirata J. segurava uma pequena motosserra, que ela desceu sobre a garganta do
bicho numa linha vertical. Muitas pessoas se abaixaram pra ver o corte de
perto, e quando o sangue explodiu no rosto del`s e da pirata, soltaram um urro
de vivas, e logo pipocaram fogos. A cabeçorra do boi tremulava de língua de
fora, batendo os maxilares. Lady J. era a única que continuava séria,
compenetrada no trabalho de vencer o osso do tórax, até que conseguiu terminar secção
e as costelas se arreganharam num estalo, revelando a piscina dos órgãos:
A gritaria foi ensurdecedora e
dissonante, quase todos os presentes voaram por sobre o boi, pegando suas
entranhas com grandes braçadas e atirando em baldes de madeira que iam surgindo:
ainda com a pequena motosserra, a pirata foi a primeira a se colocar de pé
dentro da carcaça aberta, e sobre ela despejaram-se muitos baldes com as
vísceras do Boi Santo, e outros tantos baldes de sangue morno, que iam
chegando. Ela entregou a ferramenta pra um amigo e arrancou a roupa fina,
recebendo outro banho de sangue. Em seguida gritou muito alto:
- Acorda,
Elalia! Varando terra adentro no espanto dos mil futuros!
- Elalia,
Elalia, Elalia! – gritaram todos em uníssono, enquanto tiravam a roupa e
tomavam banhos de sangue. Em seguida corriam pra dançar em volta da fogueira:
todos já haviam passado pelo ritual, faltavam apenas as duas moças, que
seguravam o corpo da menino. Elas o tiraram do caixão e a carregaram até lá
pelos braços e as pernas. Por fim deitaram seu corpo entre as costelas do boi e
derramaram sobre ela as entranhas e o sangue, que abundavam milagrosamente nos
baldes: quatro rapazes posicionaram uma grande tábua sob as patas dianteiras do
bicho e pregaram seus membros ali: o mesmo fizeram com as patas traseiras:
carregaram o conjunto pra perto do fogo com grande esforço, e posicionaram a
carcaça de pernas abertas pras chamas, com o moça dentro.
A turma voltou a dançar em redor da
fogueira, todos nus e cobertos de sangue seco: novamente a balbúrdia se
organizou, e voltou a soar junto dos metais o mesmo “om”, num crescendo. O
corpo da menino começou a se debater, convulsionado, e o cadáver tremeu-se
todo, vazando de vísceras. Súbito el` deu um grande salto lá de dentro,
estendeu os braços e as pernas, até tomar a forma de X:
- Decifra-me
ou devoro-te! – gritou Elalia ressurrecta. Em seguida entrou a bracejar, a
pernear, a fazer as mais arrojadas cabriolas de volatim em torno da fogueira.
Carregava junto ao peito o coração do Boi
Branco, ninando o grande músculo. Em torno del` todos gritaram e saudaram Elalia, que com um gesto ergueu o grande
coração acima da cabeça, gritando:
- O coração do B.[!], minha gente!
- Oh
meu B. brasileiro, meu mulato inzoneiro, vou cantar-te nos meus versos! -
completaram el`s, e seguiu-se um silêncio absoluto e ensurdecedor. Elalia
contornou a fogueira, e segurando o queixo com uma das mãos, começou:
- Inzoneiro... que ou quem é sonso, manhoso; enredador...hum... Falando nisso... –
diz ela colocando o coração no chão, entre os pés, e sacando uma folha de
cartolina suja de sangue do bolso. Passando os dedos da mão esquerda sobre o
papel, começou a ler a inscrição em braile: – eu queria agradecer a todos esses que em mim atingiram zonas
assustadoramente inesperadas, todos esses profetas do presente e que a mim
vaticinaram a mim mesma a ponto de eu neste instante explodir em: eu. Esse eu
que é vós pois não aguento ser apenas mim... Preciso dos outros pra me manter
de pé... Tão tonta que sou, eu enviesado... [longo silêncio] Danke, Berlin, danke! Porque...
porque... A América L. talvez não seja a incógnita principal, o "x",
mas provavelmente será o "y", uma incógnita secundária muito
importante... Pela matemática, sabe-se que uma equação não se resolve se uma
segunda incógnita não for eliminada. Suponhamos agora que a América L. seja a
tal incógnita "y"... Estou firmemente convencida, e por isso estou
aqui falando com vocês, de que no ano 2000 a literatura mundial estará
orientada para a América L.; o papel que um dia desempenharam B., P., M. ou R.,
também P. ou V., será desempenhado pelo R., B., Buenos A. e M. O século do
colonialismo terminou definitivamente. A América L. inicia agora o seu futuro.
Acredito que será um futuro muito interessante, e espero que seja um futuro
humano... Minha esperança é um sol
que brilha mais!
- ...
- Mas... que cheiro é esse hein? É o
P.? P.! É o meu amigo! Alguém me leva ali, plis!
Dois dos rapazes se chegaram dela pela
esquerda e pela direita: andavam com o torso inclinado e as pernas flexionadas,
batendo com força os pés no chão. Uniram os antebraços na forma de um □ sobre o qual
ela se sentou, envolvendo o pescoço dos dois e repousando o coração no colo. El’
se aproximava com um sorriso franco e o olhar inclinado e sem ponto dos cegos:
- P!, ah, P.!: ...se você dormisse, se você cansasse, se você morresse… Mas você não
morre... Que subjuntivo, Zé! – e nisso ela correu na direção dele sem
titubear e o envolveu num abraço, segurando de banda o coração do boi. Ele se
assustou e ergueu os braços, mas logo deixou que caíssem sobre el`, dando-lhe
dois tapinhas no ombro:
- Ah, P., desculpa, nem sei se cê
lembra de mim né: meu nome é Elalia. Trabalhei com a companhia do...
- Elalia?
- Sim, sim: Elalia Machado! Também estudei um tempo no Ateneu com o Rapp... Não
fosse a ajuda del’ eu não tinha aguentado aquilo ali muito tempo não! Cê não
reconheceu meu uniforme?
- ...
- É que agora que a gente se deu por
achada precisava concluir logo isso de démarche
allégorique, pra gente se aproximar da vida o quanto antes, porque tenho
medo que no futuro... [engole em seco] Mas olha P., é o coração do B.! - grita Elalia erguendo o músculo sobre a cabeça:
\
| /
- B.-
/
| \
●
- Quer segurar? – diz ela estendendo o
coração pra ele, que a princípio recusa, mas termina por esticar a mão pra
tocá-lo. Nisso o órgão se contrai, e o som cavo e rascante de uma pulsação soa
em redor com o estrondo violento de uma explosão:
- Ah, e cuidado que também dá choque! –
riu Elalia – Quanta violência, mas quanta
ternura...
- ...
P. olhou pra si: estava sujo de sangue
e de pés descalços. Ele suspirou e tentou abaixar os cabelos com uma passada de
mão, mas continuou tudo arrepiado:
- Mas chega de fetichismo hein: é tudo
simbólico, né. Quer ver como é simbólico? – e dizendo isso ela se volta pro
fogo, joga o coração no ar diante de si e o acerta de primeira com o peito do
pé. Outra pulsação ensurdecedora ressoa, e o coração traça um arco perfeito
[girando em torno do próprio eixo]: antes de atingir em cheio o centro da
fogueira [nuvem de faíscas]. Essa foi a deixa pra que os presentes voltassem a
gritar e dançar com toda força: mas agora se comportando como indígenas:
batucando, soltando gritos e marchando em roda com trejeito ritual.
- Afortunados
os tempos para os quais o céu estrelado é o mapa dos caminhos transitáveis e a
serem transitados!... E cujos rumos a luz das estrelas ilumina... Isso, P.,
aqui no cenário do cérebro ainda é assim: e destino nosso é a Praia Vermelha. Lá Irongus mais aliad`s devoradores vão esperar pela gente pra cruzar
o estreito até a ilha de F., a
montanha sobre o mar!
A turma formou roda grande em torno del`s duas e, seguros pelos ombros, giravam com passos ameaçadores pra frente e pra trás, entoando um canto repetitivo e ameaçador:
A turma formou roda grande em torno del`s duas e, seguros pelos ombros, giravam com passos ameaçadores pra frente e pra trás, entoando um canto repetitivo e ameaçador:
- Opa, isso é proto-fascista ou não é,
hein P.? J. Pirama! Anauê, iverapeme!
- Sou
bravo, sou forte! Sou filho do Norte! Meu canto de morte, guerreiros, ouvi! -
ameaçou a turma na toada da dança. Elalia, que antes sorria, formou expressão grave e, dando as
costas para P., abriu os braços diante dele para protegê-lo, gritando:
- Aos
golpes do imigo, meu último amigo, sem lar, sem abrigo, caiu junto a mi!
- ...
-
Com plácido rosto, sereno e composto, o acerbo desgosto comigo sofri... –
concluiu Elalia com voz embargada, e os índios em torno pararam um instante.
Ela continuou:
- Não
vil! Não ignavo! Mas forte, mas bravo, serei vosso escravo: aqui virei ter...
Guerreiros, não coro do pranto que choro: se a vida deploro, também sei morrer!
Começa nova agitação entre os jovens,
que passam a correr em todas as direções [cada qual gritando uma canção
popular] pouco antes de voltar pra a saída e tomar a estrada no rumo que
vieram: P. e Elalia restaram sozinhos entre as colunas:
+ I ●▀ I + +
+ + *
+
+
I I [fogo] * * B. +
* [boi]
- P. você confirma pra mim se... se tem
[3] três moças em volta da fogueira?
- Tem sim...
- Ah... Então vamos lá vai... Cê vai
comigo até ali, por favor, Zé? Posso segurar no seu braço?
- Claro, claro... - disse P. com um
sorriso oferecendo o braço, ao que ela aceitou com um suspiro:
- Tudo
lhes é novo e no entanto familiar, aventuroso e no entanto próprio. O mundo é
vasto, e no entanto é como a própria casa... – sussurrou Elalia com voz de
velha, enquanto caminhavam até o fogo.
Em torno da enorme fogueira, além das
três moças nuas cobertas de sangue, havia mais atrás a grande carcaça arreganhada
do Boi Branco, que de cabeça pensa segurava entre os dentes uma enorme língua
cinza, de caule avermelhado: a moça agarrou-se com força ao braço de P.,
ofegante e assustadiça: quando finalmente chegaram à beira do fogo, Elalia foi
se encolhendo mais e mais [num crescendo de raiva contida] até que não se
conteve e correu pra detrás de P., apoiando as costas nas dele e mordendo o
polegar:
- A L. a T. e a M... A M. a L. a T... L.T.M, M. L.T...
– disse ela, repetindo os nomes muitas vezes.
+ + M. + +
+ +
+ +
+ + + ●▀ ⃰[fogo] L. B. + +
+ + T.
[boi] + +
M.*... se aproxima do
fogo e diz:
- Pois
o fogo que arde na alma é da mesma essência que as estrelas...
Ela
carrega [junto ao peito] o estômago do boi: terminada a fala el` deita o órgão,
suavemente, nas chamas:
T.*... se aproxima do
fogo e diz:
-
Distinguem-se eles nitidamente: o Mundo
e o Eu, a luz e o fogo, porém jamais se tornarão para sempre alheios um ao outro...
Ela carrega [com as mãos estendidas] o
fígado do boi: terminada a fala el` inclina as mãos e deixa cair o órgão,
suavemente, nas chamas:
L.*... se aproxima do
fogo e diz:
- Pois
o fogo é a alma de toda luz e de luz veste-se todo fogo.
Ela carrega [segurando pela traqueia] o
par de pulmões do boi: terminada a fala el` atira o órgão, suavemente, nas
chamas: Elalia balançava a cabeça em negativo, e ouvia a cena toda de lado, o
polegar entre os dentes, apoiando o ombro nas costas de P. e colocando o ouvido
na direção do fogo. Em seguida grita:
- Meu
pai a meu lado, já cego e quebrado, de penas ralado, firmava-se em mi... Nós
ambos, mesquinhos, por ínvios caminhos, cobertos d’espinhos chegamos aqui! -
recitou Elalia com mágoa.
- És
livre; parte... – responderam elas em coro.
- E
voltarei.- retorquiu Elalia com energia.
- Debalde.
– disseram juntas.
- Sim,
voltarei, morto meu pai.
- Não
voltes!
- Você vê P.!? Cê vê como são as
coisas? Quem é que vai conversar com elas, me diz?
Só queria mesmo fazer amizade sincera,
gostar muito de todo mundo que nem aquele elefante de espuma, o C...
- E quem é esse?- perguntou L. muito
séria.
- Esse é o Zé, meu amigo dá rua: ele é
menino que nem eu e entende o que tô passando... Cê até namorou ele antes de a
gente se conhecer, lembra? Que foi uma coincidência grande!
- É
verdade, eu lembro... – respondeu M. no lugar da outra. – Foi meu primeiro namorado sério, esse cara,
e ele não me deixava ser amiga do Maumau, tinha ciúme... E eu parei de falar
com o Maumau na frente dos outros por causa dele...
- Não, Má, isso aconteceu com a...
- Daí
eu disse pra ele que tava indo pro interior... E que lá tinha um cara que eu
gostava: e que ia ficar com ele de novo de qualquer jeito... Foi no começo do
namoro, e ele ficou tão mal, tão mal... - começou T.
- Mas isso nem foi com você! Foi com
a...
- A
gente se encontrou numa festa por acaso, eu e esse namorado da minha amiga, que
é pintor... Estávamos só nós dois com um pessoal meio desconhecido e a gente
acabou super bêbados lá, precisando se apoiar no meio da gente estranha... Daí
rolou um beijo e a gente acabou ficando né... Foi só por conta do contexto
mesmo, sem mais... Mas minha amiga terminou descobrindo e depois foi tudo um
inferno, um inferno... – lamentou-se L.
- Toda
a graça, todo o prazer da vida se acabou... Nas tuas águas eu contemplo o Boi Paciência se afogando, que o peito das águas tudo soverteu... – disse M. sem
emoção. E voltando-se para Elalia completou, agora enfurecida:
- Eu
recuso a paciência[!], o boi morreu[!], eu recuso a esperança!
- Ah, você sempre assim, M.! Tudo, tudo
tem que jogar na cara! Coisas que não tenho coragem de dizer pra mim mesmo!...
E ainda me enredou num discurso de amor pactário, de opressão medieval e...
- What I
speak my body shall make good upon this earth! – urraram as três em fúria:
[o que eu digo
meu corpo faz valer sobre essa terra]
- ...
- Talvez fosse melhor relaxar por
enquanto, não é verdade? Cês são tão novos...- sugeriu P.
- Eu
nem tenho direito mais de ser melancólico e frágil, nem de me estrelar nas
volúpias inúteis da lágrima! E eu tinha raiva de ser menino porque não podia ir
ver o fogo... – chorou Elalia.
- Eu sou sua irmã mais nova...
- Sou sua irmã mais velha.
- Sou sua tia.
- Olha Zé, olha que conversa esquisita!
Oh, meu eu... O que é que de bom pode sair disso ai? Me diz?
- ...
- Cê vai ver quando ele chegar, tá ouvindo? Vou contar tudo pra ele! Tudo!... Moleque atentado... Porque quando ele tá aqui cê não faz essas coisas,
hein? Cê só banca o engraçadinho quando ele
tá trabalhando! - gritou uma delas com voz de criança.
- Pode falar que eu não tenho medo não,
ou!
- Uh... El` vai te pegar, hein...-
disse M.
- Cê sabe o que acontece se el’ te pegar? – perguntou L.
- Seu bobo! – gritou T.
- O quê que é, menina? Eu não tenho
medo dele não!...Mas e essa roupa aqui? Essa roupa ridícula igualzinha a dele?
Que isso em mim? Vou arrancar essa roupa aqui, ó[!], eu faço o que quero só! Só
o que eu quero! Eu não quero roupa! [começa a se despir]
- Oh mããã, ele tá tirando a roupa de
novo ó...
- Não senhor, não senhor! Põe essa
roupa a-go-ra!
- Não ponho nada[!] sua tonta! Cê não
sabe de nada, eu que sei só: eu que sei!
- Pom-Pom
com protex, protege o nenêêê... – cantaram as três. Ainda com as roupas
Elalia agarrou os cotovelos de P., enfurecida, e o contornou com um empurrão,
tateando às cegas atrás das moças, que fugiam dela rindo e repetindo a frase:
- Pom-Pom
com protex, protege o nenêêê...
- Para[!], que eu não sou nenê, carai!
Não me chama de bebê! [por favor...] Ele vai me matar! Ele vai me matar! Shhhh,
cala a boca!
- Ninguém gosta de você: nem o papai,
nem a mamãe, nem a Zali, ninguém...
- ...
- Ninguém, ninguém...
- Mentira sua! Mentira, mentira... –
Elalia começa a chorar e as três se aproximam dela, consolando com um abraço:
- Ah, é brincadeira, como você é boba,
bê...! Oh, é brincadeira!
- Num
encosta ni mim! – disse Elalia batendo o pé e afastando as três, que se
puseram a gargalhar e a fazer cócegas na moça cega. Elalia começou a rir e se
contorcer, gritando:
- Ah, como eu gosto de brincar de cobra-cega e descobrir quem é quem
encostando!
-
Cabra-cega de onde você veio?
-
Do Morro Vermelho.
-
E o que é que traz?
-
Caldo de panela.
-
Dá um pouquinho?
-
Vai pedir pra sua véia!
As três então deram um salto sobre
Elalia, suspendendo-a no ar e deitando suas costas no chão: uma se jogou por
cima do peito dela, outra levantou bem alto suas pernas abertas, e a terceira
veio por trás, com o dedo indicador em riste, na altura do entre nádegas, e deu
um cutucão fundo ali no: [*]
- Ahhhhh... – fez Elalia num vibrato de
eletrochoque, e desmaiou de membros prostrados [em X] no chão.
As três se voltaram para P. e dando
alguns passos alinharam-se na sua frente dizendo, ora uma ora outra:
- Nessa terra, tudo que há de mais
grotesco já aconteceu [e acontece]...
- Por isso as angústias de um sujeito
já não podem fazer vergonha a ninguém: é preciso escancarar os porões... Nossos corpos clamam por solução...
- [em coro] São testemunhas do amor grande: amor-açu: que se forma no
reconhecimento e no gozo mútuo da Nutrição, do Toque e da Troca de Ideias...
- ...
- O inespecífico tornar-se-á
específico: cada coisa a seu tempo e em sua forma...
- Na Trilha da Praia Vermelha o passado percute numa onda idêntica
àquela, de tantos anos atrás...
- E como dado sintomático objetivo,
talvez alcancemos a formalização estética
de circunstâncias sociais; a redução
estrutural do dado externo; e a função
da realidade histórica na constituição da estrutura da obra.
Nesse meio tempo Elalia havia se
levantado e buscado junto da carcaça do boi as bolas e o pau vermelho do touro.
Os órgãos estavam bem inflados de sangue, e el` os segurava pela base:
- Me
escondo na palavra mundo! Aquel`que tocar a carne do meu coração com toda força
sentirá a delícia da minha briga com o sol! – gritou Elalia erguendo os
bagos e o pau enormes do boi. As moças riram com trejeito infantil cobrindo a
boca, os olhos e os ouvidos, enquanto corriam na direção da estrada,
perdendo-se:
- Eu sou o M. Perê, olhem aqui!
Olhem!...
-
Elas já vão longe, viu...
-
Se pudesse amar com uma perna só em Marte,
M. Perê já teria ido...
-
...
- É P., esse negócio de se conhecer-se
a si mesmo hein... Que difícil... É um caminho de sangue, suor e
broxadas... [leia: balanços e perspectivas do relacionamento – by leon t.]
- ...
- Mas o que é que tem isso, né?
Acontece... Já aconteceu antes, vai acontecer de novo, paciência... Mas e a
flor da minha virilidade nessa selva maluca, P., quem protege?
- ...
- Olha
aqui A. das Mortes... Olha as prova da tortura...
- ...
-
Broxeeei, ah, broxei... Não procurei esconder, todos viram, fingiram: pena de
mim não precisava... Ali onde eu broxei qualquer um broxava... Dar a volta por
cima que eu dei quero ver quem dava!
- ...
- Um
homem de moral não fica no chão. Nem quer que mulher, lhe venha dar a mão:
reconhece a queda e não desanima! Vamo lá, P., canta comigo!
- [tosse tosse] Lève-toi, secoue la poussière, redresse-toi.[levanta, sacode a poeira,
dá a volta por cima]!
Elalia se voltou pra fogueira e atirou
a genitália do bicho no mesmo arco perfeito: ao cair lá dentro as chamas se
ergueram rubras num vulto cilíndrico [de cabeça abaulada]:
- Ah, espoir, espoir... Pobre símbolo, pobre seio... Viu P., será que você
não vem aqui me buscar não? Meu rosto tá muito quente e não consigo sentir a
luz do poste...
- Claro... – nisso P. se aproxima e
oferece o braço, que a moça segura com leveza. Os dois caminham juntos entre as
pilastras até a saída principal:
- Ah, cê gostou dos desenhos no word que a gente fez lá no começo
arrumando as letras?
- Ficou bonito.
- O que me deu inspiração foram os
desenhos do g. gewdner no paint brush, cê já viu?
- ...
- E das colunas, P., gostou? É em
estilo greco-goiano! Homenagem à amiga J., que liberou o corpo do Boi.
- Mas foi você quem matou o bicho?
Achei que fosse contra isso, que fosse vegetariana...
- Ah... Mas se matei ele com um beijo,
P., um de boa noite antes do sono pesado... E nessa eu também fui junto né:
morri e voltei cega... Precisa ter dó dele não, pra ele foi que nem cochilar de
cansaço na banheirinha, quando a rê me dava banho: morninho, morninho...
- ...
- Toda criatura caminha pra
desagregação e pra morte né. Cada dia que nasce poder ser “aquele dia”, o da
investigação trágica... Lembra quando a cachorra Baleia morreu? Tadinha, que
nem a cadelinha Laica que foi pro espaço... Quando penso nisso fico
claustrofóbica, é bem triste.
- Então porque você não come carne de
uma vez?
- Ah, P., e minha paz de espírito?
Lutei tanto por ela, ainda luto... E nem é por ser maluca por bicho de
estimação, nem nada. Eu admiro el`s de longe, gosto que estejam bem... Igual o
que K. disse olhando aquele peixe no aquário do zoológico, cê sabe essa
história? Agora finalmente posso te
admirar em paz... [tosse- tosse] Tem
algo de pornográfico nisso... [engasgo] ...Esse demiurga é uma
pervertido...
- Diz que o H. também era vegetariano né...
- O arqui-nazista? Não, não: ele comia
salsicha... Ah, mas chegamos na estrada! Brigada, querido, agora consigo me
virar. Só preciso que você fique por perto – Elalia então envolve P. num abraço
e diz junto do seu ouvido com um sussurro:
- Por
isso, tornam-se comparáveis a um cego que, para lutar sem desvantagens contra
alguém que não é cego, levasse o adversário para o fundo de um subterrâneo
muito escuro... Aqui a gente usa a tática del`s contra el`s! Agora me faz
uma descrição rápida da estrada, por favor, P.: porque as luzes e a cerca eu
consigo sentir, mas o resto não.
- A estrada daqui pra frente é bem
uniforme, com uma faixa estreita de grama nas laterais. Dá pra gente andar nela
caso passe algum carro ou carroça.
- Vai passar não... Tá, recapitulando:
a gente tem que pegar a trilha pra praia vermelha e chegar lá pra ver o sol
nascer atrás da montanha! Mas sozinha não dou conta de levar a gente lá... Pra
desaquendar essa passagem precisa dois exus pelo menos...
- Exus?
- Hum hum: pra abrir nossos caminhos
né! Melhor que isso só com pirlimpimpim... Mas vamos andando, P., o primeiro
guia deve tá logo ali adiante, tô sentindo o cheiro del`...
Mais à frente outra grande árvore
vazada pelas cercas fazia sombra num trecho de grama: onde se estendia um
cadáver coberto de moscas:
. .
.. . *
;.;,,.: ▀:,,+Ұ+,.,.;
,.,,.,;,.,;,,.;.;,.,.;,;,.;,;,,.,;
P. ●
O corpo estava estirado com os braços e
pernas alinhados num H. P. suspirou
e olhou pra Elalia que, sorrindo, confirmou:
- É esse nosso bichão, o Otto Mars!... Rise from your grave... [levanta da tua sepultura]
- ?
- Não é que ele esteja morto, morto
né... Tá mais pra não-vivo. É um tipo de ponto de vista, entende? I would prefer not to... [prefiro
não...] Mas ele até que produz, viu: estuda topologia e sistemas dinâmicos.
- ...
- Tá, agora cê vai lá e sacode ele, zé.
- ...
- Sim, sim: mas chama com jeito que
acordando ele é meio confuso... Não adianta falar alto nem baixo, porque ele é
surdo né: mas faz algum barulho pra ele sentir o vibrato, assim já começa a te
conhecer!
P. dá um passo na direção del`: Otto está deitado sobre um cupinzeiro,
de tronco arqueado. Veste jeans, jaqueta preta de poliéster e um par de tênis
cano longo surrado. Uma mancha preta cobre a face direita do cadáver, donde
destaca um olho rubro arregalado e sem pálpebras. O resto do rosto, porém, está
intacto: salvo pela coloração amarelada e algumas manchas azuis. Era um rapaz
de cavanhaque e cabelo curto dos lados [jogado pra atrás]: P. estendeu a mão
direita pra tocar-lhe o ombro e sussurrou:
- Otto?... Oh, Otto... [tosse-tosse] Uh Zotto!... – num pulo o
zumbi se ergueu e cravou os dentes entre o anelar e o mindinho de P.: este
respondeu com um grito tão alto que fez vibrar as cercas em redor, oscilando as
luzes. Ao puxar o braço pra si instintivamente, lançou o corpo de Otto Mars por sobre a estrada: e o rapaz
rolou do areão até o gramado, levantando uma nuvem de poeira.
- Mars! – gritou Elalia ao se atirar
sobre o menino. Em seguida grudou as mãos no seu rosto e colou a testa dele na
sua:
- Ah, só você me entende seu perdidão!
- Irmã,
irmã... – respondeu o outro com voz gutural.
- Mas porque cê atacou o Zé assim? Cê
não lembra que a gente jogava vídeo game na casa dele?... Primeiro ele tinha o
atari, depois o máster, depois o snes, depois o 3DO...
- Eu
lembro... a gente jogava... Entombed...
P. acompanhava a cena com cara de
espanto: examinando a própria mão constatou que não havia marca de mordida e
moveu os dedos sem dificuldade:
- Quase
quebrei o dente... Sangue na gengiva... – disse Otto com gestos muito
lentos.
- Pois claro, você foi atacar o
crítico, queria o quê?...
- Como é?
- É o seguinte, P... Não sou digna de que visiteis minha morada,
mas dizei uma só palavra e Mineralizo!
- ...
- Porque você foi meu melhor professor
lá na escola, hein P.: sem dúvida! Se tivesse um ranking cê ficava aqui em cima
pra mim ó: lá no alto...
- ...
- É sério, zé! Tu é artilheiro: melhor
piloto!
- ...Já você, se fosse meu aluno, sabe
onde eu mandava botar... - respondeu P. com irritação.
- Viu? Esse é o espírito! Ó: pra mim confirmou. É isso mesmo, talento se
reconhece... Aliás... vê..., P., [em
coro Otto e Elalia], vê; nós aqui
estamos, nós somos tu, e nós te aplaudimos!” E como ninguém na terra, gozas a
delícia inaudita, tu incomparável, único capaz de bem se compreender e de bem
se admirar - de ver-se aplaudido em chusma por alter-egos, glorificado por uma
multidão de si mesmos. Primus, inter pares!
Todos, ele próprio, todos aclamando-o...
- ...
- É isso, P. Aqui você é que nem aquele
cacto do poema, peça de estatuária... Mas isso é bom, porque assim atravessa
intacto o rio da história, e ela fica sendo sua... E também pra ajudar nosso
pessoal né: pra el`s serem indestrutíveis que nem você ! Pra poderem decidir de
coração leve quando a hora chegar... É um povo muito inquieto, esse nosso, que
atravessa umas solidões grandes: nos estudos, no trabalho, no amor... Eu queria
fazer bem a el`s né: porque agorinha o demiurga escreve essas letras tão
sozinho, mas tão sozinha... E pra quê? Pra alcançar a solidão de quem lê: e que
nos dá vida de novo...
- ...
- Porém,
senhoras minhas! Inda tanto nos sobra, por este grandioso país, de doenças e
insectos por cuidar!... Tudo vai num descalabro sem comedimento, e estamos
corroídos pelo morbo e pelos miriápodes! – gritou Elalia.
- Bravíssimo
comendador... – balbuciou Otto com voz gutural. Nisso P. tossiu com
violência algumas vezes e começou em tom de oratória e com voz embargada:
- O
crítico... [tosse-tosse]... o crítico
deve ser independente, - independente em tudo e de tudo, - independente da
vaidade dos autores e da vaidade própria. Não deve curar de inviolabilidades
literárias, nem de cegas adorações; mas também deve ser uma luta constante
contra todas essas dependências pessoais, que desautoram os seus juízos, sem
deixar de perverter a opinião. Para que a crítica seja mestra, é preciso que
seja imparcial, - armada contra a insuficiência dos seus amigos, solícita pelo
mérito dos seus adversários, - e neste ponto, a melhor lição que eu poderia
apresentar aos olhos do crítico, seria aquela expressão de C. [quando C.
mandava levantar as estátuas de P.]: - "É levantando as estátuas do teu
inimigo que tu consolidas as tuas próprias estátuas" !
- Bravo! Bravo! Avo-avo-avô-vô! – nisso
Otto apanha um caibro de madeira na beira do caminho e golpeia a perna esquerda
de P. com toda força: a tora explode em pedaços enquanto P. permanece imóvel.
- ...
- Tranquilo, P., só mostrando os
limites da fantasia: ninguém sai ferido de uma saraivada de palavras né... Ou
sai?... Nossa: então desculpa P. Cê ficou triste?
- Não sinto nada, mas vocês podiam
explicar sem pauladas, não?
- Ah, mas aí não fica que nem o
quixote, que nem a vida do leonardinho, que nem as aventuras da emilia!.. P. cê
fuma? Oh Otto, tem um cigarro ai?...
- Claro...
claro... - Otto saca um maço de H.
vermelho e oferece um a Elalia:
- Ah, mas lembrei que comprei um maço
ontem! Conhece essa marca: charm? Meu avô fumava desse... - Elalia segura
o H. vermelho na boca e saca um maço amarrotado [marrom esverdeado] do bolso,
com um par de cigarros de ponteira branca. Ela oferece a P.:
- Obrigado, eu larguei...
- É um hábito tosco mesmo... Gostoso
mas tosco [guarda o maço]. E deixa doente né, até perdi parente já por conta da
fogueirinha de papel... Mas sabe,
acho que as pessoas fumam pra sentir o peito crivado de balas!
- ...
- Sim, porque os cânceres são mamilos
internos... Zonas erógenas estimuladas pelo uso continuado de substâncias, e
isso vale pra qualquer forma de consumo obsessivo, tipo beber, comer e mesmo
passar fome demais...
- De tísico e louco todo mundo... né.
- Que nem a clarice, o graça, o rosa... São S. do peito crivado de flechas!
Mamada que recompensa e pune... Eu sei que fumar não é condição pra gente
escrever bem, mas como quase todo mundo que escreve queria estar morto até
que... Aliás, todo mundo queria estar
morto, meu eu! Como é mesmo aquela campanha de vocês em prol do suicídio,
Otto?
- 6
bilhões de pessoas não podem estar enganadas...
Elalia saca um isqueiro de vidro,
acende o cigarro e dá uma tragada profunda. Porém, na hora de soltar o ar, toda
a fumaça saiu dos pulmões de Otto Mars: que envolveu as próprias costelas num
abraço, sorrindo e olhando pro alto:
- Tô brincando com você, zé! Eu não
fumo não... [continua fumando enquanto Otto bafora a fumaça] Mas vamos andado:
vai na frente, Mars, você que sabe onde ela tá... Ah, sim, ele é surdo, mas lê
os lábios da gente. E enxerga tudo: tudo!
Otto tomou a dianteira e foi se
arrastando em ziguezague, com os braços
soltos ao longo do corpo e os ombros rijos: a cabeça se voltava pra todos os
lados, cheirando. P. e Elalia seguiam logo atrás à passo curto:
- Ah, mas que peripatético amigo pê
[!]: aprender caminhando com você! Imagine só, um texto com um crítico
dentro... Parece aquele filme do mojica, sabe?... Aliás, será que não é o Zé do Caixão que leva essa coisa sua do
ponto de vista da morte até o limite? E ainda põe um problema pra crítica do
bob black porque... Porque descobrir um vilão no narrador já virou lugar
confortável pra muita sordidez, foi apropriado...
- Como assim?
- Ah, porque, por exemplo...: o Brás Cubas não é o Zé do Caixão né... Desmascarar monstruosidades na atitude
aparentemente civilizada de alguém, ainda que seja muito positivo, acaba
repondo o problema sem tensionar o presente... Porque aí a gente não quer ser ninguém
nesse circo: ninguém quer se identificar no que tá sendo contado, ninguém quer
se enxergar em ninguém... Então quem somos nós num ambiente em que a existência
mesma é um crime? [escravidão] O alcance autocrítico da pergunta é de deixar
nauseado: a gente quer sumir mesmo... [filosofiazinha
pessimista antipática] Mas nós também damos mancada, não damos? Também fui
filha da puta, racista, machista: judiei de pessoas e bichos, já quis matar por
matar... E vocês aí da crítica? Será que nunca largaram uma pessoa apaixonada
por vocês? Nunca fizeram arranjos e concessões pra conseguir afeto? Nunca
fingiram não ver uma criança na sarjeta? Nunca perderam o interesse numa pessoa
por um defeito físico? Ou porque el` não te dava mais tesão?... Nunca furaram
uma fila?
- ...
- Então porque o M. de A. “arremeda o inimigo” pra ridicularizar
com ele? Acho que o M. era mais inimigo
de si do que vocês imaginam... Por isso ele tem alcance, né: e formulou pra
gente as coordenadas da nossa modernidade: essa Voragem Santa! Na sua investigação el` vai desenvolvendo novas possibilidades de identificação,
o tal sentimento nacional... Não é pra fazer “show de baixeza e ignomínia” só, nem pra
apontar figuras em negativo ou achar culpados...
- ...
- O horizonte dos trabalhos não deveria
ser ficar procurando nazistas no palheiro... É o que tá enlouquecendo todo
mundo hoje em dia: mas quem é o culpado? Quem é a traidora? Que atitudes eu
posso ou não tomar? Quem quer me destruir? Quem me ama? Porque reproduzir essa
vida se tudo em volta é miséria e opressão? São perguntas que os personagens do
M. se fazem como sujeitos modernos num mundo arcaico... Nós também, né... Lembra quando você achou que ia morrer aos
17? E todos os seus sonhos, todo seu potencial iam se perder num apagão?... When you're young, gifted and black, your
soul's intact!
[quando
você é jovem, talentosa e negra, sua alma está inteira]
- Ah, mas a gente fica deprimido tão fácil aqui nesse lugar
triste... Sente esse impulso de levar vida de leonardinho né... Mas isso por
fidelidade histórica, por vontade de morrer... Uma vida sem planos em longo
prazo: estrangulada entre a miséria e a dependência: espécie de campo de
concentração pré-industrial em que é preciso fazer acordos pra sobreviver.
Cativar e odiar num remoinho até dar de cara com o inferno...
- BE exactly who you want
to be… Do what you want to do!- cantou Otto
voltando-se pra el`s: [SEJA
exatamente quem você quer ser – Faça o
que quiser fazer]
- ...ampliar
o campo especulativo... habilitar formas novas de sociabilidade... sonhar
realidades novas com força, com raiva, em quantidade... Preparar terreno...
- divagou Elalia.
- I
am he and she is she: but you’re the only you! – continuou Otto, agora fazendo pogo com chutes no ar: [Eu sou Ele e ela é Ela: mas Tu é o único Tu]
- O Zé do Caixão [Coffin Joe] sim é um
personagem pra crítica do bob black, do açu-acê, sabia?... Ele sim é a
mentalidade de classe concentrada num supereu obsceno e criativo: que nega a
vida sem choramingar sobre as contradições. Ele abre caminhos novos pra ficção,
pro amor... É ele que aponta pra nossa cara e diz: mas você é o verme! Você! O monstro é você! [Otto
aplaude]
- If you don’t
like the rules they make, refuse to play their game! [se você não gosta das regras que el`s
criam, se recuse a jogar o jogo del`s]
If you don’t want to be a number, don’t give them your name! [se você não quiser
um número, não dê seu nome pra el`s]
- E tem o problema desse sistema
literário também, que engole e vomita jovens autoras: que de tanto se sonharem
escritores, de se lambuzarem de ser escritoras, só dão conta de produzir
material compromissado, autoindulgente, sentimentalóide, espiritualista,
fascista...
- If you don't
like religion you can be the antichrist! [se você não
gosta de religião pode ser o anticristo]
If you`re tired of politics you can be an anarchist! [se tá cansado
da política pode ser anarquista]
- É que o Mars tem uma banda, P... Ai, mas
vamos parar um pouco, e chega de falar disso né! A verdade é que a demiurgo não
tem base nenhuma pra dar pitaco nessas coisas, e coloca a gente aqui pra fazer
papel de boba no lugar dela... Mas o quê que ela diz mesmo? Ah, aquela conversa
mole de se justificar: “sou uma farsa,
urubu do trabalho dos outros, plagiadora... autor bocó, com debilidades
gravíssimas... Mas um dia ele virá, a autora! Vai repassar tudo isso em
verdadeiro! Fazer tudo em bom! Realmente real, agudo...” [tosse-tosse] Ai,
gente, que moça caipora esse aí...- lamentou Elalia:
- Silence is a virtue, use it for
your own protection… Halt! – gritou Otto
batendo os calcanhares: [o silêncio é
uma virtude, use pra sua própria proteção]
Mas adiante havia um sujeito baixo
sentando num cupinzeiro sob o poste de luz: ele vestia um escafandro completo,
que é um antigo uniforme de mergulhador feito de um tecido grosso e
impermeável, com botas de ferro, luvas pretas de borracha, e um enorme capacete
metálico, de viseira redonda e gradeada. Estava sentado tranquilamente, de
pernas cruzadas, e segurava uma sombrinha vermelha com rendas:
. . . ... * ... . . . .
;.;,,.:,,+◙+,.,.,.;,;;
.,,.,;,.,;,,.;.;,.,.;,;,.;,;,,.,;
● ▀
P.
- Aquel`...
– gemeu Otto enquanto se aproximava
do mergulhador: ao percebê-lo chegar o outro tomou um susto e, fechando a sombrinha,
deu com ela na cabeça e nos braços de Mars:
- Ai...
- resmungou ele lentamente, agora tentando se atracar com o escafandrista: mas
num lance rápido o mascarado envolveu sua cintura e lhe deu um golpe de
quadril: Otto formou um círculo no ar, enquanto caía chapado no chão:
- Piedade
oh!... Tem piedade, ó Aquel’Dinanã! Tira esse véu do rosto senão cê desmantela o
compadre, nega! – Aquel parou um
instante e se voltou para Elalia
gesticulando com violência e dizendo qualquer coisa em linguagem de sinais:
- Eu não enxergo, querida, não te
leio... – lamentou Elalia. Em
seguida, Aquel’Dinanã abriu alguns
grampos no dorso do uniforme e arrancou o enorme capacete: surgiu ali o rosto
suado e conformado de uma moça de pele cor de oliva, cabelo fino escorrido,
olhos de ressaca, nariz leonino e a boca desenhada [de lábio inferior
protuberante]. Num gesto rápido tombou a cabeça pra frente pra arrumar o
cabelo, mas a franja não se mexeu. Ela avançou sobre Elalia e lhe deu três beijos, à carioca, em seguida se abraçaram. Otto se aproximou das duas e envolveu-
as num abraço coletivo:
- Aê! Eh, eh! – fizeram todos rindo e
fungando. P. se mantinha de lado com
um meio sorriso, e Elalia fez um
gesto chamando por el`:
- Vem tamém, P., vem: mas não aperta
muito não que cê esmaga todo mundo!
- ...
P. se aproximou e tomou parte do abraço
de cima, por ser mais alto. Eles riram ainda um bom tempo antes de caírem num
longo silêncio, suspirando de olhos fechados... Elalia foi a primeira a
dispersar:
- Aê, pessoal, aê: muito bom... Zé,
essa aqui é a Aquel’Dinanã: rancheira do Engenho de Dentro e padroeira dos
garimpeiros... – Aquel` ofereceu as costas da mão esquerda, ao que P. tocou a
com os lábios de leve:
- Encantado... [tosse - pigarro]... Imagina uma moça assim, desta altura, viva
como um azougue, e uns olhos...
- Crê
que era tão sincero então como agora... A morte não me tornou rabugento, nem
injusto... – balbuciou Otto. Ao que Aquel` respondeu intensamente em
linguagem de sinais, movendo os lábios e soltando alguns gemidos vez em quando:
- P., você entende libras?
- Não, eu não.
-
Eu sei um pouco... Aprendi com a T. de
Cartagena... – balbuciou Otto. E voltando-se para Aquel’
continuou - ...Me gustas cuando callas
porque estás como ausente, y me oyes desde lejos, y mi voz no te toca... Parece
que los ojos se te hubieran volado y parece que un beso te cerrara la boca...
- ... - respondeu Aquel’ com mais
gestos:
- Que foi que ela disse?
- Ela
disse que... que literatura é um luxo mas a ficção... a ficção é uma necessidade.
- ... - continuou Aquel’:
-
...a ficção também dá forma à realidade. É o revés dela e seu suporte: por isso
é preciso, é necessário e... e... e... T. de Cartagena escreveu um livro depois
de 1450 e foi acusada de plágio só por ser mulher...
- Oh: perdona la baxeza e grosería de mi mugeril yngenio...- citou Elalia.
[perdoa a
baixeza e grosseria do meu engenho mulheril]
-
...
-
Bora embora chegar na trilha? - diz
Elalia batendo palmas – vocês vão na frente porque sabem do caminho né: mas tem
um pessoal pra gente encontrar ainda, pra ver se el`s querem descer na praia
com a gente!... In the sweet by and by! [no doce
vai e vem]
[a gente se
encontra naquele lindo litoral]
-
We shall meet on that beautiful shore! –
cantarolaram todos em uníssono: Aquel’ apenas movendo os lábios.
O
grupo seguiu em marcha: Elalia e P. lado a lado mais atrás: Aquel’ e Otto
adiante: ele tropeçando pelo caminho e farejando o ar. Ela andando com passo
cuidadoso, cheio de trejeitos:
+
+
+
+ + + + + + + + + + + +
,;.Ϋ.;,;;.;.Ϋ;,;;;;.;;
ʏ,;;.;.;,;.,;,.;,.;,;.
● ▀
P. ◙
;...;,;,;.,.;.,;.;.;.;Ý;;.;;.ʏ;;.;;
,;;.;.;, ;.;.;,
+ + + + + + + + + + + + +
+
+
+
-
Mas P., o quê tá acontecendo? Não consigo me situar...
- É que as cercas tomaram rumo pra
esquerda e pra direita a perder de vista, e agora só os postes de luz vão
marcando o caminho... Dos dois lados os pastos vão perdendo árvores...
- Xiii, aqui começa o Reino dos Royalties: tô com medo de ser
processada... P., posso pegar no seu braço de novo?
- Hum hum...
- Mais adiante tem a fazenda da família
R. né. A gente vai parar lá pra chamar um menino amigo nosso, o graça , ver se ele quer descer com a
gente...
- ...
- Mas antes era importante encenar pro
P. a Canção de Estrelânus... – disse
Elalia: Aquel’ se voltou pra trás rindo e cobriu a boca com a ponta dos dedos,
balançando a cabeça:
- Não é bem uma canção, né P.: é mais
uma demonstração improvisada, e um excesso de informação... Mas não dá mais pra
adiar: sobrou pra nós né... Todo homem e
toda mulher tem uma estrela!...
Mas chegando na entrada da fazenda a gente demonstra... Oh Mars... Mars?...
Perai, deixa eu falar grosso pra ressoar na cabeça dele: oh Maaars! – Otto olha pra cima, pra esquerda e pra direita antes
de se voltar para Elalia: com um gesto de cabeça faz que: ?
- Canta pra nós aquela bonita, aquela
moda bonita do seu avô, enquanto a gente anda?...
- Ah...
É assim...: Urubu é vila alta, mais idosa do sertão... Padroeira minha vida.
Vim de lá, volto mais não... Corro os dias nesses verdes, meu boi mocho
baetão... Buriti, água azulada. Carnaúba, sal do chão... Remanso de rio largo.
Viola da solidão... Quando vou pra dar batalha, convido meu coração...
- ...
-Ah, que esquisito gostoso o som desse
encantatório, né Zé... Você gosta?
- Muito.
- Nós tamém... E já chegou na entrada
da fazenda é?
- É logo mais à esquerda: dois postes e
um par de árvores marcando o caminho pra cede...
- Então vamos parar um pouquinho,
gente... Otto? [assovia com os dois dedos na boca] Aê! See my lips move!... Eu queria a estrela da manhã, onde está a
estrela da manhã?
O rapaz fez que sim e, puxando de um
dos bolsos, sacou uma espécie de ponto de luz azul muitíssimo concentrado, que
emanava raios com violência cegante. Segurando-o entre o polegar o e o
indicador, via-se que o objeto luminoso tinha o tamanho de um grão de areia:
- A
pedrinha é designada pelo nome de calculus, por causa de sua pequenez, e porque se pode calcar aos pés sem disso
sentir-se dor alguma. Ela é de um lustro brilhante, azul como uma chama de gás,
pequena e redonda, toda plana e muito leve... – disse Otto segurando a
estrela na ponta do indicador à altura da testa, e dividindo seu rosto em dois:
- É ainda menor! Vamos considerar o
tamanho da Estrela como uma espécie
de mínimo de área sensível da pele humana... Seja a ponta de uma agulha ou uma
bola de praia: tudo que nos toca a gente sente com a pele né...:
[estrelânus-lazúli]
*
- E quando a gente sente algum estímulo
físico, nossa atenção se volta pra essa parte do corpo: seja tomando uma
injeção, um café morno, uma mordida. Seja dando um beijo, se coçando ou
esfregando pra limpar: todos os estímulos são percebidos pelo cérebro e
computados de alguma forma...
Otto se aproxima de Aquel’ e toca a
testa da moça com o objeto, que se prende ali irradiando uma coroa azulada:
- Até
os cabelos de vossa cabeça estão todos contados. Não temais, pois... –
disse Otto.
- E o que acontece quando a gente tá
com muito tesão? Dividindo o corpo com uma pessoa que nos quer muito, e que a
gente quer muito também? Ah, daí essa Estrela
da Atenção se espraia e divide, e o corpo quer tudo investigar e agradar e
testar os limites!
Nisso outros pontos luminosos foram
surgindo e ganhando força no corpo de Aquel’ por também por debaixo do
uniforme. Os pontos luminosos se espalharam sobre os lábios, o pescoço, as
mãos, mamilos, estômago e genitais.
- O
que vos digo na escuridão, dizei-o às claras... O que vos é dito ao ouvido,
publicai-o de cima dos telhados... – sentenciou Otto.
- Mas e quando a gente tá com muito
medo? Quando sente que vai ser destruído por um golpe? Quando uma ou mais
pessoas em redor fazem tensão de nos espancar ou ofender? Daí a gente tem a
Estrela mais entrelinha: o eu concentrado num ponto único, bem no centro do
corpo. [fugindo da superfície] O lugar onde a agulha vai entrar: a grande
broxada! Olha só: as luzes se concentram na garganta d`Aquel’, que é onde ela
tem um engasgo...
- Vinde
a mim, vós todos que estais aflitos sob o fardo, e eu vos aliviarei... –
disse Otto estendendo a mão e acariciando o pescoço da moça. Nisso o ponto de
luz desceu até o peito e ficou irradiando de lá, por entre as fibras do
uniforme:
- A Aquel’ tá angustiada agora,
sentindo um desconforto físico e uma tristeza funda: parece que nada mais vai
ter solução na vida, coitada... Um ataque de ansiedade! Isso é uma fórmula
aprendida pelo corpo pra conter os próprios impulso, pra se defender do tesão
incestuoso e preservar-formar a própria identidade... E essa contenção do corpo
assume as formas mais variadas! Algumas pessoas concentram a tensão no estômago
e têm gastrite... Outras concentram tudo na boca e rangem os dentes, comem
unha, fumam; outras concentram no esfíncter e no reto e têm prisão de ventre;
outras comem que nem jiboia pra sentir o corpo inchar de dentro pra fora e esquecer
do tesão na superfície... Outras ficam longos períodos sem comer pra sentir o
corpo desfalecer de fraqueza e depois cagar concentrado, dolorido, com culpa [e
não olhar o que faz no vaso - esquecer de dar descarga...].
- Ah, isso aí não tem fim: e é difícil
achar expressão pra essa ansiedade... O medo acaba virando agressividade né:
contra os outros e contra si mesmo... Não passa nem agulha! Mas acho que as
pessoas se formam em torno desse ponto, sabia? Dessa Estrela do Eu... E não estamos falando só do cú: é preciso deixar
bem claro... Algumas pessoas se encurvam pra proteger essa estrela da
identidade; outras engordam pra acobertar: algumas ficam muito magras, como se
quisessem se tornar, de corpo inteiro, este ponto que el’s precisam proteger...
Mas, P.: você acha que um dia, se eu estudar bastante, posso ser psicanalista?
- Claro que pode.
- Mas pra ser psicanalista a gente tem
que receber alta da análise, não é verdade?
- É sim.
- Ai, ai... Mas era isso: a Canção de Estrelânus!... Qu’é dele, o dôido, qu’é dele, o maluco? Eu
quero o tampo do balaio do cumbuco! Tá tudo aí: falta só escrever letra e
melodia né... Opa: a fazenda da família R... Será que tá muito tarde? Bom não
falar dessas coisas de sexo perto do graça,
ele tá numa idade difícil: é um menino muito intuído... Mas vamos chegar de
fininho pra ver o que tá acontecendo de longe... El`s não têm cachorro não!
Venham, venham: me ajuda P...
* *
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Y
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P. ●
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- Cuidado com a cerca viva, Mars! Por
onde cê tá indo, cara? A entrada é entre as luzes aqui ó!... Ah é, ele não
escuta... Acho que a demonstração deixou el` meio desnorteado, acontece... –
sussurrou Elalia para P. enquanto pegavam o pequeno caminho de terra até a
sede. Na escuridão, o olho de Otto Mars
brilhava vermelho brasa: e do peito de Aquel’Dinanã,
a luz abafada da Estrela lhe dava uma aura azulada em torno da cabeça...
- Olha que mutante essas dois! Isso
aqui é um vídeo game mesmo... Cê deve achar que todo mundo da minha geração é
meio bobo, né P.?...
- Não mais que um pessoal da minha
época...
- Ah, mas há de haver algum sinal
positivo nisso, no nosso pensamento
caprichoso, algo que vai nos poupar de alienação ainda mais bruta... A
gente deve tá pertinho da casa, não?
- É logo ali.
- Vamos parar então! Aquel’, chama o
Mars, vem se esconder atrás desse tronco caído aqui... Shhh! Silêncio...
O grupo chegou pelo que parecia ser a
lateral de um velho casarão de fazenda, iluminado a lampião. Uma janela pra
sala mostrava, lá longe, um cara escanchado numa rede, e dormindo de braços
cruzados: a camisa dele estava arriada pra fora da calça [sem cinto] e o
sujeito apresentava [pinto] uma ereção maciça e latejante:
- Isso foi um zoom que nós demos, hein
P., porque as pessoas ficam de pau duro ou molhadas desde os primórdios: ainda
mais dormindo... Olha só, pobre do menino graça: a gente vê ele ali na parte de
trás, pela porta lateral... O xarope do pai chegou meio bêbado e não lembra que
tirou o cinturão pra afrouxar na bexiga: daí sonhou que estava transando alguém
e agora vai acordar cheio de culpa e frustração... Vai querer destroçar o filho
que ele acha um molenga e dissimulado: sinal vivo da sua fraqueza...
- ... [tosse - engasgo]... Eu devia ter quatro ou cinco anos, por aí, e
figurei na qualidade de réu... – disse P. com voz de preto velho:
- Poxa pê, alguém tem que falar, eu
tenho que falar[!]... Sobrou pra mim... Pois se é o que eu tô lendo, olha!
- Sim, mas é complicado fazer
afirmações nesse nível sem elementos de base concreta...
- Ah? Base mais concreta que isso? Tá
acontecendo agora! Mire veja... Não que eu esteja enxergando, porque sou
cega... Sei o que se passa porque li né... Mas agora o cara levantou da rede. O
menino graça sentado de longe, atrás dos caixões, como se fosse uma das filhas
do lot bíblico lá [o fugido de sodoma]: as que transaram o corpo do pai bêbado...
[aliás, muito conveniente prum pai bebêdo culpar as filhas...] Cê entende? A
desconfiança de si e do filho é tão ridícula que o sujeito não consegue
absorver, e pensa no cinto
[trenó-rosebud], e é mesmo o cinto que eu queria [que esse sem
vergonha] tá querendo [me] pegar, não o pinto!
- Tsc, tsc... Não tem como você afirmar
uma coisa dessas, querida, isso é ansiedade sua... – fez P. balançando a cabeça
em negativo [-].
- Ué, dói tanto pensar nessas coisas? O
que dói é o menino apanhar por conta da miséria dos outros. Um casal que de
tanto fazer filho e se detestar vai projetando nos moleques as marcas da
própria insatisfação, corrigindo tudo na pancada...
- ...
- Ainda que menino não seja santo hein,
e na próxima chácara a gente vai ver o contrário disso, vamos encontrar lá o B. e... [gritos vindos da casa] Ai, mas
dessa parte não gosto... O cara tá batendo nele de reio né?... Ai caralho, esse
retardado...
Nisso Otto Mars se aproximou da casa a passo rápido pela porta lateral e,
golpeando-a com a mão esquerda, fez parte das tábuas em pedaços. O sujeito
paralisou, largando o menino, e Otto grudou suas orelhas entre as mãos pra
lamber, com a língua ensanguentada, o rosto do agressor. Num grito esganiçado e
total, o sujeito se desvencilhou de Otto e cruzou a sala até o copiar em dois
saltos, caindo inconsciente antes de completar o terceiro.
Aquel’ aproximou-se do menino e o
abraçou, erguendo-o no colo. Ele escondeu o rosto no pescoço dela, por trás dos
cabelos, soluçando. Os três saíram da casa ao encontro da dupla:
- Pô, graça, não fica assim... Cê não queria que alguém chegasse por
você? Pois chegou! Não é bom quando alguém olha pela gente? Nos salva de
apuro?... Uma vez não podia dormir de medo num casarão antigo e a nanda ficou
conversando comigo até eu esquecer...
- Mas a gente vai levar a criança
assim? - perguntou P. preocupado.
- Ah, ele quer vir junto, tadinho... E
a gente não é milícia nem nada, só vamos ali na praia ver o sol nascer...
Amanhã a gente trás a meninada de volta, e ninguém vai receber a gente mal, viu
Zé. Mas vão te chamar de tio Terêz, e
você confirma que é você mesmo!
- ...
O grupo seguiu trilha acima e de novo
alcançou a estrada, saindo da fazenda dos R. Otto ia mais a frente, farejando e
oscilando. Aquel’ ia com o menino graça no colo, este erguera a cabeça e
observava os demais: P. e Elalia sorriam pra ele, que coçava a cabeça.
Voltando-se pra a moça que o carregava, perguntou:
- Vão bulir com a Baleia?... Porque foi que o pai deu minha cachorrinha Pingo-de-Ouro com o filhotinho pros
tropeiro levar? Que foi que eu fiz pro pai? Porque ele é ruim anssim comigo?...
– choramingou o menino, e o rosto de Aquel’ se contorceu pra segurar as
lágrimas, mas ela tossiu com firmeza e deu um beijo rápido no rosto do menino,
controlando-se:
- Tu gosta de gatinho, graça? –
perguntou Elalia num sotaque diverso.
- Gosto sim, mas lá em casa é mais só
eu que gosto da gatinha... Ela chama Reibél...
Ai não, ai não, não chama Reibél não:
chama Sossonho!
- A Aquel’ tem uma gatinha tamém: a Uli. É toda preta. – nisso o menino
olhou pra moça, que confirmou com um aceno de cabeça:
- Tu não fala é? – e Aquel’ acenou em
negativo [-]: o menino então olhou para o P., pra Elalia e em seguida pra Otto,
completando:
- Tô com medo daquele moço...
-
Medo do Mars? Mas ele é bonzinho[!], gosta muito de estar com os amigos zumbi
que nem ele, e o resto do povo ele respeita... Cê sabia que ele não escuta
nada?
- Ele é surdo é?
- Hum hum... Aquêquel
é mudinha e eu sou o quê: advinha...
- O Zé não é meu pai não, menino! Olha
direito: que idade parece que ele tem?
- Na verdade ele é mais velho né, mas
parece que tem... Dezessete! [17]
- Ah, acertou e errou, graça! Mas queria levar vocês pra jogar Counter S.
na lan-house um dia desses! É um jogo em primeira pessoa, em que a gente
escolhe ser soldado ou jagunço... Cê gosta de jogar no computador, graça?
- Não sei...
- Ah, claro que gosta, é mó legal! Mas
viu, será que a gente já chegou na Chácara
dos C.?
- Que estranho: basta você perguntar do
lugar e a gente chega lá... – brincou P.
- Pirlimpimpim
strikes again! Isso aqui é um game, Zé: from
now on...[daqui pra frente] Já perguntou pra essa molecada o que é a vida?
Vão responder: tá vendo o coraçãozinho no
canto da tela? Isso é a vida: quando acaba a gente morre!
- Parece saldo na conta...
- É bem isso mesmo: que ladino você,
Zé!... Mas vamos descendo devagarinho, na miúda: pra pegar o menino brasinho de
surpresa num troca-troca de carícias e violências... Um zoom de câmera que
desafia a propriedade privada!
- Faça
como um velho marinheiro. Que durante o nevoeiro. Leva o barco devagar... –
cantou Otto assim que alcançaram a chácara:
* *
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P. ●
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A entrada da Chácara dos C. era mais elaborada: com pilastras marcando a
passagem em uma cerca viva bem cuidada, ponteada de grandes árvores a
intervalos regulares. O graça no colo de Aquel’ olhava para Otto de canto de
olho: o zumbi se voltou pra ele e acenou. O menino devolveu o gesto, ainda
desconfiado: mas Otto cobriu o olho vermelho e a mancha preta no rosto com uma
das mãos e sorriu pra criança com cara de moço abatido, ao perceber que G. ria
de volta, Aquel’ colocou-o no chão e acariciou sua cabeça:
- Estamos numa alameda larga com
iluminação nas árvores pelo caminho, né? Lá embaixo tem um casarão e, mais
longe, o lavadouro onde as escravas batem roupa... “Cruz, diabo!... Este sinhô brasinho é o diabo!” Pois é, é mesmo...
O menino é pai do homem... – suspirou
Elalia.
O grupo chegou mais uma vez pela
lateral do sobrado, e no segundo andar havia uma série de sacadas com janelões
de porta dupla. Apenas a janela do centro estava aberta e dentro do quarto era
possível ver dois meninos [de cinco ou seis anos] brincando de cavalinho: um
montado no outro:
- P., agora vamos dar um zoom pra fins
ilustrativos: verossimilhança é mato:
prefiro contar uma história verdadeira...
- ...
Na verdade o menino que estava montando
o outro era branco de pele caramelada, olhos verdes e cabelo castanho claro
anelado. Já o garoto que estava sendo montado era pardo, de cabelo acobreado
crespo, e grandes olhos cor de amêndoa. Os dois vestiam roupas de época, à moda
do XIX: com calças curtas, gravatinhas e sapatos lustrosos. Estavam ambos muito
bonitos e asseados, ainda que o menino por cima puxasse o outro por uma rédea
improvisada, e golpeasse sua anca com uma varinha...:
- Ai, nhonhô!...
- Cala boca, besta! – gritou a outra
criança e bateu de novo com a varinha no primeiro: este, depois de alguns
golpes, pulou pra trás e fez que ia derrubar o menino:
- Bata mais não, nhonhô... Para!...
- ...
O menino branco ofegava muito, o suor
descendo pelos cantos do rosto... Indignado com o reclamo do companheiro ele
ergueu o braço e fez que ia dar outro golpe, mas não completou o movimento. Em
seguida colocou os pés no chão e, observando se não tinha ninguém por perto,
separou bem as nádegas com as mãos pra encaixar o * na coluna do menino que ele montava. O que estava embaixo
suspirou e curvou o tronco, soerguendo devagar o menino branco: este cruzou as
pernas em torno da sua barriga e deixou o corpo tombar pra frente, colando o
rosto na nuca do segundo... O menino volta a andar pela sala de quatro:
- Agora fica quieta, fica quieto,
besta! - e deu-lhe outro golpe. O menino de baixo perdeu a paciência e o atirou
no chão. Este reagiu avançando sobre ele, e os dois se atracaram por alguns
segundos. Por fim o menino negro subjugou o outro, segurando-o no chão com o
peito por cima do dele:
- Perdão nhonhô, me desculpa: mas
vosmecê me judia muito!... Foi a primeira
vez que fez aquilo no meu cangote...
- Eu não fiz nada, seu sem vergonha!...
- Mas eu não digo pra ninguém, não. Eu
não digo... Nhonhô: será que posso montar ni você tamém?
- Pode não...
- É só um pouquinho, nhonhô: eu nem te
bato de reio. Só pra ver se vosmecê guenta meu peso... Deixa?
- ...
O menino negro deu espaço ao primeiro,
que se apoiou sobre os cotovelos e olhou pra baixo, pensativo: em seguida
engoliu em seco e se colocou de gatão sobre os joelhos e as mãos, de costas
para o menino escurinho. Este sorriu, escanchou nele pela parte de trás e foi
subindo devagarinho, esfregando bem o peito e a barriga até também se encaixar
na espinha do primeiro, arreganhando bem as nádegas. O menino branco deu
algumas voltas pelo quarto, enquanto o outro enlaçou as pernas na sua barriga e
se inclinou pra trás, apoiando as duas mãos nas ancas do debaixo: os dois
ofegantes, com cara de profunda concentração...
Nisso passou uma jovem mucama pela
porta, viu a cena e riu-se, correndo pelo corredor: ao perceber que tinha sido
flagrado, o pequeno branco atirou o outro no chão, apanhou a varinha e foi pra
cima dele. Os dois se atracaram e o menino negro tomou o objeto:
- Não contes nada a ninguém, tá me
ouvindo?! Tá me ouvindo?!... Se contas pra alguém te mando arrebentar no reio,
moleque! Juro por deus! Juro! [sai chorando]
- ...
- Volta pra aqui, leitor[a]! Aqui pra
fora da casa, no jardin dos voyeurs!
- chamou Elalia - Visse P.? Agora veja quanto chapéu esse diabo vai
esconder: quanta barbicha vai puxar: quanta gente pra humilhar e fazer a dor passar...
Isso porque, pra uma criança, poder fazer o que bem entende de outro ser humano
é uma forma de opressão e retardamento... Agora o endiabrado vai correndo pra cozinha
atrás da escreva, digo, escrava,
testemunha do troca-troca, pra quebrar a cabeça da moça com um golpe... Ah, mas
isso é que não. Hoje não! Bora pra cozinha, rápido!... Batuque na cozinha sinhá não quer!... Aux armes, citoyens! Formez vos bataillons!... [às armas, cidadãos
– formem seus batalhões]
O grupo contornou a casa-grande por
trás e chegou a um alpendre que dava pra porta da cozinha. Lá dentro via-se a
moça negra e esbelta da cena anterior: vestindo um elegante sari branco, e com
a cabeça coberta por um lenço carmim. Ela mexia com uma colher de pau um tacho
fumegante de doce de coco... O menino claro descera em silêncio pela escada e
vinha se arrastando sorrateiro por detrás da moça distraída:
- Oh, neguinha! – gritou ele por trás
dela, ao que a moça deu um pulo:
- Ai, ioiô, que susto! Cruz, diabo... – respondeu a moça irritada:
- Anda, me dá uma colher de doce de
coco, neguinha.
- Nhô
não, não dou porque não tá pronto ainda... E eu tenho nome, viu?...
- Mas eu quero agora!
- Mas não tá pronto, diacho! Daqui um
pouco eu chamo o nhonhô... Agora me
deixa quieta, vá brincar.
- Nega burra, suja, burra!
- Olha que vou dizer à iaiá, hein! Que
tratamento é esse?
O
menino cerrou o punho e mordeu o nó dos dedos com fúria, avançando pra parte
escura da cozinha. Esteve lá por um tempo e voltou com uma pequena panela de ferro
segura pela alça, com a qual pretendia golpear, pelas costas, a cabeça da
mucama desatenta:
- Oh bráááis! [palmas-palmas] Oh
brasinho, tu tá em casa? – gritou Elalia junto do alpendre: o resto do grupo
ficou escondido por detrás de umas cubas empilhadas no terreiro.
O menino deixou a panela cair com um
estrondo e a moça tomou outro susto:
- Mas será possível, menino bulindo com
panela? O que o sinhô ia fazer com isso, ioiô?
- É, brasinho, o que é que ias fazer? –
perguntou Elalia com um sorriso enquanto cruzava o alpendre:
- ... eu ia ajudar só... - engasgou-se o menino, com os olhos cheios
d’água:
- A senhora, quem é? - perguntou a moça
passando as mãos diante dos olhos de Elalia – Mas vosmecê é cega?
- Cega de todo não né, eu vejo uns
vultos... Sou a nova instrutora de francês dos meninos: Elalia Machado, enchanté!
-
Ôxente... E também o moleque dêncio vai estudar francês é?
- Mas claro que vai, como não? Estudo é
pra todos. Quer vir tamém?
- Ah, imagina, com esse monte de
serviço aqui...
- Mas um dia você vem que eu sei...
Menino brás, vá chamar o dêncio que hoje a lição é à beira mar. O resto da
turma tá esperando.
- Eu não quero que ele vá junto não...
- Ou vêm os dois moleques ou não vem
ninguém.
- Eu não sou moleque!...
- Mas porque você tá gritando, B.? Sou
cega, não surda, ouviu?... E o senhor é um moleque sim, moleque dos mais
bestas, que ia bater nessa menina com uma panela de ferro...
- ...
- Pensa que a gente não sabe? Pensa que
a gente é tonta? Isso é muito grave, é
nojento... Agora vá lá chamar seu amigo,
por favor.
- ... [sai da cozinha cabisbaixo]
- E não é que ele foi mesmo? –
admirou-se a mucama – Esse menino é virado esquisito, cruel com nós de dentro,
com as criação...
- Isso é tristeza: ele é um infeliz, um
desajustado, mas um dia isso muda...
- Cá entre nós mas esse povo branco
tamém são, bem dizer, uns doidos né, gente que curte com o sofrimento dos
outros: flor do estrume... Sem querer ofender a senhora, que não é aqui do B.
não é?
- Sou sim, sou do sul! Mas é preciso
ter piedade desse povo ruim também... Lá na minha terra aconteceu um negócio
muito triste que não esqueço... Mas pra te contar precisava falar no sotaque do
povo de lá: no meu sotaque né... Tô sentindo que preciso te contar: a senhora
se importa?
- Ah, meu bem, se o santo tá pedindo
deixa vir: pode me dizer sim:
- Então... Mire veja: se me digo,
tinha um sujeito P. Pindó, vizinho
nosso mais seis léguas, homem de bem por tudo em tudo, ele e a mulher dele,
sempre sidos bons, de bem. Eles têm um filho duns dez anos, chamado Valtei – nome moderno, é o que o povo de lá agora
apreceia, a senhora sabe. Pois essezinho, essezim, desde que algum entendimento
alumiou nele, feito mostrou o que é: pedido madrasto, azedo queimador, gostoso
de ruim de dentro do fundo das espécies de sua natureza. Em qual que judia, ao
devagar, de todo bicho ou criaçãozinha pequena que pega; uma vez, encontrou uma
crioula benta-bêbada dormindo, arranjou um caco de garrafa, lanhou em três
pontos a popa da perna dela. O que esse menino babeja vendo, é sangrarem
galinha ou esfaquear porco. – “Eu gosto de matar...” – uma ocasião ele
pequenino me disse. Abriu em mim um susto; porque: passarinho que se debruça –
o vôo já está pronto! Pois, a senhora vigie: o pai, P. Pindó, modo de corrigir isso, e a mãe, dão nele,
de miséria e mastro – botam o menino sem comer, amarram em árvores no terreiro,
ele nú nuelo, mesmo em junho frio, lavram o corpinho dele na peia e na taca,
depois limpam a pele do sangue, com cuia de salmoura. A gente sabe, espia, fica
gasturado. O menino já rebaixou de magreza, os olhos entrando, carinha de
ossos, encaveirada, e entisicou, o tempo todo tosse, tossura da que puxa secos
peitos. Arre, que agora, visível, o Pindó e a mulher se habituaram de nele
bater, de pouquinho em pouquim foram criando nisso um prazer feio de diversão –
como regulam as sovas em horas certas confortáveis, até chamam gente para ver o
exemplo bom. Acho que esse menino não dura, já está no blimbilim, não chega
para a quaresma que vem...
- Ai minha Nossa Senhora, mas daí se inverte tudo meu Ogum... E esse menino aí é pretinho ou é branco?
- É mestiço.
- ...
Os garotos apareceram em fila indiana e
cruzaram a cozinha olhando pro chão: de passagem o menino P. saudou a moça do
doce:
- Adeus L...
- Até mais dêncio, boa aula.
- Ah, mas tá cheiroso esse doce hein, L!... L. era o nome da minha vó... – disse Elalia.
- Curou agora pouco e precisava
esfriar, mas... A senhora não quer provar um bocadinho?
- Oh se quero! Mas também queria levar
pro pessoal da perua... Peraí: dêncio
pega um pedaço daquela folha de bananeira que eu cheirei ali ó, por favor...
- ...
- Obrigado, querido: pronto, agora
coloca um punhado aqui que o povo vai beliscando né.
- Posso levar um pouco na folha tamém?
– perguntou o menino B.
- Pra você sozinho não, quebra-coco:
você pega aqui do coletivo se souber pedir direito.
- Há há! Quebra-coco! – fez o menino P.
apontando pra cara do amigo.
- Adeus L.! Esse doce é uma maravilha, você é um gênio!
O restante do grupo aguardava ansioso
perto das cubas. Aquel’ ensinava alguns sinais de libras ao graça, que repetia tudo muito risonho,
com empenho de melhor aluno, enquanto P. e Otto engataram numa conversa em que
o rapaz falava e P. escutava, atentamente, de braços cruzados e acenando com a
cabeça:
- E
eu me liguei tanto com aquela banda que eu acho que devia ter feito parte dela,
ou pelo menos ser uma banda cover do P... A gente usava o senso de dinâmica del`s,
sendo suave e baixo e depois alto e pesado... Isso porque o grunge, como
desenvolvimento do punk, reflete o enfraquecimento das oposições binárias, por
conta da queda do muro de B. e da utopia dos anos 90 que...
- Gente, voltamos! Esses aqui são o brasinho e o dêncio: vão descer pra praia com a gente. Olha menin`s : aquela moça de uniforme de mergulho é Aquel’Dinanã, o
menino com ela é o graça, e os dois lá trás são o Otto Mars e o P., baixista-zumbi
e professor, respectivamente...
- ...
Todos se cumprimentaram com acenos de
mão e cabeça, e se puseram naturalmente em movimento, descendo a trilha:
- Mas Elalia, porque é que tava de dia
lá em casa e no terreiro e agora tá tudo de noite e estrelado de repente? –
perguntou o menino B.
- Ah, brasinho, porque isso aqui é um
sonho seu! Cê sabia que a gente tá sempre sonhando, mesmo quando acordados e
andando por aí? Tudo que nem num sonho, a gente não sabe bem o que tá
acontecendo, mais vai improvisando, tentando se comunicar, entender...
- Logo vi que você não era professora
nada, seu português é muito ruim: a senhora fala que nem nego...
- Isso porque sou moderna, menino B.,
não vou ficar falando por escrito né! Mas você tem razão, tenho muito que
estudar ainda: tá aqui o P. que não me deixa mentir... Viu? Custa admitir isso,
que a gente ainda tem muito que estudar? Eu não tenho vergonha disso não.
- Nem eu! – gritou dêncio.
- Eu tamém não! – respondeu lá o menino
G., mas fazendo que “sim” em linguagem de sinais.
- Eita ignorância orgulhosa, sô! ...Vamos almoçar sentados na calçada:
conversar sobre isso e aquilo, coisas que nóis não entende nada! E depois, puxa
uma paia, andar um pouco pra fazer o quilo: é dureza Zé! – cantou Elalia.
- É dureza mesmo... – suspirou P.
- Tem que estudar, os menin’: descobrir e expressar é a melhor
coisa do mundo. Presente do amor do corpo: felicidade e proximidade... Ah, mas
chega de conselho, pelamor... [come
um punhado de doce] Ó, quem quiser doce pode beliscar aqui...
Cada um se aproximou de Elalia, pegou
um teco e, sem interromper a caminhada, saíram juntas [mastigando] da Chácara
dos C.
* *
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Os meninos P., B. e G. seguiam na dianteira pela estrada,
acompanhando a marcha de Otto enquanto o observam com curiosidade. Graça era o
que mais se aproximava dele e ia de peito estufado, orgulhoso da valentia,
enquanto os outros meninos ficavam mais e mais assustados:
- Este morto não morde, hein pessoal:
explica pra el`s, graça. – brincou Elalia:
- Esse é o Otto, o Zotto! Ele morreu, faz música e não escuta ninguém... Mas é
parceiro nosso, precisa ter medo de bulir com el` não!
- E porque aquela moça brilha azul? –
perguntou tímido o menino P.
- Ah, porque ela tá carregando a Estrela Azul, que é o dom da atenção,
que todos nós temos... É a razão do nosso nome...
- ?
- Foi o que o Otto me explicou agora
pouco né! Mas não sei se entendi...
- Ah, Aquel’, mostra o muiraquitã pra
el’s vai... – pediu Elalia, e a moça puxou de dentro do uniforme o calculus brilhante que faiscou num aro
largo e pontiagudo azulíssimo. Os meninos ficaram de boca aberta:
- ...
- Legal demais...
- Falta só mais um lugar pra gente ir:
a casa dos L. pra chamar minha amiga C.! A família dela é de outro país, da U. Mas
ela veio ainda bebê pra cá né.
- Quantos anos ela tem? – perguntou o
graça.
- A mesma idade de vocês, sem dúvida! É
uma menina bonita, inteligente e que gosta muito do pai dela... Mas isso tá
deixando ela muito confusa, sabe? Porque tem muito amor pelo pai, mas já não quer continuar gostando desse jeito...
- Eu num gosto meu pai... – desabafou
G.
- Eu gosto do meu pai, é meu amigo! –
bradou o menino B.
- Não conheço quem foi meu pai... –
resignou-se P.
- E cês sabem que a C. sente essas três
coisas ao mesmo tempo? Porque depois ela teve um filho que ela amou muito, e
isso ajudou ela a entender um bocado de coisa...
- Mas ela é criança, como teve filho?
- Hum... Ah, porque... Porque ela
queria que o pai dela fosse filho dela!
- Nossa, que doidinha! – riu graça:
- Todo o mundo é doido, graça, isso porque a gente gosta muito
uns dos outros... E você não queria que seu pai fosse outro parente seu, não?
Ou mesmo um estranho?
- Ah, acho que eu queria... Queria que
ele fosse meu filho... Pra mostrar pra ele que sei porque ele sofre... Mas que
admiro a valentia e o engenho dele, e que com conversa se resolve muito mais do
que com pancada...
- Viu? Vocês tão amadurecendo bem
rápido! [dias por segundo] No final da trilha vamos todos ter a idade do
demiurga: ventotto! [28] Não que isso
faça muita diferença né... Você também, viu P., vai começar a regredir: ganhar
cabelo... Voltar pra década perdida!
-
... – riu P.:
- E você, brasinho: o que você queria que seu pai fosse pra você?
- Queria que fosse meu amigo-irmão de
fé [!] pra aventuras e duelos! O nunca trair-nos: sempre aprendendo juntos...
- Bom! E você, dêncio, o que espera do seu pai se um dia vier a conhecer ele?
- Eu quero gostar dele tanto quanto
gosto da minha mãe... E quero que ele tenha orgulho de mim.
- Muito bem. Por amostragem já dá pra
imaginar o que o resto do grupo responderia: mas vamos conhecer a C., hein. Ela vai chegar mais novinha
que vocês, mas isso só na casca, porque por dentro está tão madura quanto...
Ela tá morando no bairro da Boa Vista no R., o mesmo daquele poeta, o manuel
bê!
- R...
Meu avô morto. R. morto, R. bom, R. brasileiro como a casa de meu avô... –
recitou P.
- El'
estava só. Estava abandonada, feliz, perto do selvagem coração da vida...
Mas acho que pra trazer a menina C. a
gente podia usar de aporte mediúnico: ou materialização ectoplasmática... Cês
leram a Madame B.? O Chico X.?... É simples, a gente faz uma
roda, fecha os olhos e vai imaginando tudo que eu vou descrevendo... O Otto e
Aquel’ ficam no centro né: ela na assistência e ele botando o ectoplasma, que é
a espuma sútil branquíssima polvilhar
e fôrma universal... Vamos plasmar menin’s:
gestação instantânea!
Muito
rapidamente Otto e Aquel’ se posicionaram deitados e o resto das pessoas se
distribuiu em torno del`s tomando certa distância:
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Elalia pediu com um gesto pra que todos
fechassem os olhos e, com os seus bem arregalados mirando o vazio, começou:
-... Porque a cabeça da gente é uma só, e as coisas que há e que estão para
haver são demais de muitas, muito maiores diferentes, e a gente tem de
necessitar de aumentar a cabeça para o total.
Só se pode viver perto de outro, e conhecer outra pessoa, sem perigo de ódio,
se a gente tem amor. Qualquer amor já é um pouquinho de saúde, um descanso na
loucura...
- ...
- Agora imaginem um escritório num
sobrado ensolarado do R... Um homem franzino, de terno e gravata, bate à
máquina com vigor, matraqueando que nem panela de assar pipoca [junto da
janela] enquanto fuma um cigarro de ponteira vermelha. Entra sua filha C., de
cinco ou seis anos, e observa o pai por um longo tempo... Então subitamente olha com desgosto pra tudo como se tivesse comido
demais... Gemeu baixinho, cansada, e depois pensou: o que vai acontecer agora
agora agora? [amor ao pai + horror ao pai = palavra [1]... E sempre no pingo de tempo que vinha nada acontecia se ela
continuava a esperar o que ia acontecer, compreende? [ato] Afastou o pensamento difícil distraindo-se
com um movimento do pé descalço no assoalho de madeira poeirento. Esfregou o pé
espiando de través para o pai, aguardando seu olhar impaciente e nervoso [o
que ele quer de mim?]. Nada veio porém.
Nada. Difícil aspirar as pessoas como o aspirador de pó [sucção].
- ...
- Papai, inventei uma poesia. – começou
Elalia.
- Como é o nome?
- Eu e o sol. [sol - pai - *-us] [sem esperar muito recitou]
-
"As galinhas que estão no quintal já
comeram duas minhocas mas eu não vi". [galinhas-que-não-sabiam-que-[queriam] iam-morrer – minhoca = trato
digestivo = boca - ânus]
-
Sim? Que é que você e o sol têm a ver com a poesia?
[el’
olhou-o um segundo - el’ não compreendera]
-
O sol está em cima das minhocas, papai, e eu fiz a poesia e não vi as minhocas
[falo]... [pausa]
-
Posso inventar outra agora mesmo: "Ó
sol, vem brincar comigo" [matita perê]. Outra maior:
"Vi uma nuvem pequena coitada da minhoca acho
que ela não viu".
[sublimação da oralidade - encantação]
-
Lindas, pequena, lindas. Gomo é que se faz uma poesia tão bonita?
-
Não é difícil, é só ir dizendo.
-
Já vestira a boneca, já a despira, imaginara-a indo a uma festa
onde brilhava entre todas as outras filhas. Um carro azul atravessava o
corpo de Aríete,[falo] matava-a. Depois vinha a fada e a filha vivia de novo. A filha, a [sa]fada, o carro azul não eram senão C., do
contrário seria pau a brincadeira. Sempre arranjava um jeito de se colocar no papel principal exatamente
quando os acontecimentos iluminavam uma ou outra
figura. Trabalhava séria, calada, os braços ao longo do corpo. Não
precisava aproximar-se de Aríete para brincar com ela. De longe mesmo possuía
as coisas. Divertiu-se com os papelões. Olhava-os um instante e cada papelão
era um aluno. C. era a professora. Um
deles bom e outro mau [sadismo anal-controle do esfíncter [*] a
musculatura é a fonte do sadismo - na pulsão sádica o objetivo contraditório é
[1] destruir o objeto e também, ao dominá-lo, [2] preservá-lo...]. Sim, sim, e daí? E agora agora agora? E
sempre nada vinha se ela... pronto. Inventou um homenzinho do tamanho do
fura-bolos, de calça comprida e laço de gravata.[internalização
do supereu – devoração o pai] Ela usava-o
no bolso da farda de colégio. O homenzinho era uma pérola de bom, uma pérola de
gravata, tinha a voz grossa e dizia
de dentro do bolso: "Majestade C., podeis me escutardes um minuto, só
um minuto podereis interromperdes vossa sempre ocupação?" E declarava depois: "Sou vosso servo, princesa. É só
mandar que eu faço" [fezes=presente=dinheiro]
- Papai, que é
que eu faço?
- Vá estudar.
- Já estudei.
- Vá brincar.
- Já brinquei.
- Então não
amole.
-
Foi à janela, riscou uma cruz no
parapeito e cuspiu fora em linha reta. Se cuspisse mais uma vez - agora só
poderia à noite - o desastre não aconteceria [ansiedade que repele a tomada
de consciência da própria sexualidade] e
D. seria tão amigo dela, mas tão amigo que... que o quê? [fase fálica - a culminância do Complexo de É. que conota a posição da
criança numa relação triangular].
- ...
- Papai, que é
que eu faço?
[assedio
infantil- pulsão inconsciente - desejo de transar-destruir os corpos dos pais]
- Eu já lhe
disse: vá brincar e me deixe!
- Mas eu já
brinquei, juro. [papai
riu]
- Mas brincar
não termina...
- Termina sim.
- Invente outro
brinquedo.
- Não quero
brincar nem estudar.
- Quer fazer o
quê então? [C.
meditou]
- Nada do que
sei... [objet petit a]
- Quer voar? [pergunta papai
distraído] [redobre do assedio –
discurso sexualizado - sair do corpo para fugir do desejo e/ou recompensar o
ego com um substituto do desejo frustrado]
- Não, responde
C... [pausa] Que
é que eu faço?
[papai
troveja dessa vez]
- Bata com a
cabeça na parede! [ansiedade
infantil – transferência do desejo para o adulto – trauma formador –
experiência desconfortável e invasiva de ter sido “desejada” por um parente numa situação específica do passado –
começa o período de latência] [deformação]
Neste meio tempo em que P. e Elalia
conduziram a encenação: Aquel’ sentou-se na barriga de Otto e, com os cabelos
cobrindo completamente rosto, pressionava com os polegares a testa do rapaz:
seus braços e pernas tremiam convulsionados e levantando poeira:
- Eu vos pergunto: qual é o peso da
luz?!- gritou Elalia.
- ...
- Sim
se iria morrer, na morte passava de virgem a mulher... Nesta hora exata M.
sente um fundo enjoo de estômago e quase vomita... Quer vomitar o que não é
corpo, vomitar algo luminoso. Estrela de mil pontas! O ectoplasma! Vasto
espasmo, enfim o âmago tocando no âmago: vitória!
Aquel’Dinanã
vira o rosto de Mars para o lado, e ele começa a minar, em quantidade, uma baba
viscosa e branca com consistência de espuma: a substância vai empoçando ao lado
del’s com a forma de uma grande clara de ovo:
- O
súbito grito estertorado de uma gaivota! De repente a águia voraz erguendo para
os altos ares a ovelha tenra[!]: o macio gato estraçalhando um rato sujo e
qualquer... A vida come a vida, mas antes fanhoso que sem nariz! Levanta claris! A menina de lá!
A massa branca de ectoplasma assumiu
consistência de tecido e foi enfunando, pouco a pouco, um corpo de criança
deitado: de pernas juntas e as mão postas sobre o peito. Levantando-se
lentamente, sai dali debaixo uma menina sorridente e magra, de cabelo cumprido
e olhos felinos. Os meninos se entreolharam espantados, pois era a mesma moça
que tinham imaginado de olhos fechados quando Elalia e P. dialogaram:
- Nunca
nunca nunca sim sim sim! – cantarolava ela baixinho.
- Oi claris! Tu tá boa é nega? Me dá cá um abraço! - cumprimentou
Elalia.
- Tô sim... E isso aqui é sonho é?
- Hum hum, é sonho! E como em todo
sonho a gente tem um objetivo, que é chegar na Praia Vermelha e ver o sol nascer atrás da Ilha... Puxa, faz tempo que a gente não fala disso...
- Eu já estive nessa praia aí... Mas
fui só eu e o pai, e não foi muito bom...
- Ah, mas a gente tá indo de turma
agora, olha quanta gente! Vou apresentar o pessoal: eu sou Elalia, aquela é
Aquel’, tem o Otto, o P. , o brasinho, o dêncio e o graça...
- Oi.
- Oi claris... – responderam em coro e sem energia.
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O grupo se pôs em movimento
espontaneamente: e os três meninos olhavam com curiosidade para claris. Ela estava com um vestidinho
claro de algodão e rasteirinhas nos pés: perto dela os meninos pareciam
antiquados ou estrangeiros, vestidos do modo que estavam. Ao perceber aquilo
brasinho ocorreu tirar os sapatos bicudos, a gravatinha e o cinto, largando
tudo pelo caminho: procedimento que Elalia reprovou com um suspiro. Os meninos dêncio e graça seguem o exemplo do amigo e se despojam dos excessos:
vestindo apenas calças curtas os três, agora, pareciam mesmo bonitos meninos
modernos, coetâneos de claris. A
menina sorriu pra el`s, aprovando, daí abriu os braços em forma de hélice e
começou a girar, muito rápido, pela estrada pra estufar o vestido:
- Ah, claris, voar aqui não, hein!
Nossa história é pé no chão né... E vocês perceberam como tão amadurecendo
rápido? No próximo parágrafo já vão ser adolescentes... E dá uma olhada no P.
como remoça! Já pensou Zé? Volver a los
dezessiete... Mas não tanto né, até [28] só... Ai, que inveja, porque a
gente, os erês, não mudamos de idade
não...
- ...
As crianças foram pouco a pouco
crescendo, ganhando corpo e se apertando dentro das roupas: ao mesmo tempo
parecia que iam amuando, entristecidos. Fugiam do olhar direto uns dos outros,
ainda que espiassem, disfarçadamente, os corpos dos vizinhos. Vez em quando até
perdiam o rumo e esbarravam nos ombros nus uns dos outros, desculpando-se entre
si com um sorriso amarelo. Os quatro jovens seguiam alinhados diante do grupo,
todos com ar grave e pensativo:
- Liberté, Liberté chérie, combats avec tes
défenseurs! [liberdade
querida lute junto dos seus defensores] – cantou Elalia - C'est corps contre corps... [é corpo a corpo]
- ...
- Mais adiante vamos encontrar três
moças pelo caminho, por que... Tem essa figura da demiurgo, que é a primeira
pessoa que tá lendo isso aqui e... Mas não queria falar dela agora por nada
sabia? Porque aquele ali viu... São pessoas que el` gostou demais, mas nunca
soube se expressar e se frustrou muito... Essas três, eu digo: porque a gente
vai e volta no tempo e nem lá nem aqui nunca deixou de querer ninguém. Nada
passa né: a gente sempre sonhando que gostem [muito] da gente... [susto-soluço]
Cês ouviram esse estouro lá longe? Será que é tiro? Bomba?...
- ...
- Então pressuponho que alguém peidou! Sauf erreur... [salvo engano] Mas pê,
você já tá vendo a L. mais adiante, não tá?
- Tá esperando no meio da estrada, uma
menina duns quinze anos vestindo um uniforme de colégio cinza:
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- Ah, quem ficava bem de ir lá falar
com ela é o brasinho! Não é B.?
- ...
- Puxa, B., na minha cabeça você é
bonito igualzinho o Chico B., aquele
cantor, quando el’ era mocinho! Você bem que podia ir lá fazer boa figura no
meu lugar né...
- Eu vou sim.
- Ai, que bom! A gente espera aqui um
pouquinho e quando vocês começarem a andar a gente segue: ela meio que vê e não
vê a gente, colhemos a menina no meio de um sonho! Porque a L. que está
sonhando é de outra época, um pouco mais velha, e passou o dia com os
pensamentos em R. e vagando pela cidade com as amigos, se remoendo de não saber
o que fazer... Nós somos esse sonho del’! Parte del’ nós somos, que orgulho!
Mas vá lá, brasinho, se puder diga casualmente que toca violão... Ah, as unhas!
- ...
O rapaz riu sem graça e seguiu até a
moça com passo inseguro: uma neblina densa soprou das laterais da estrada e ele
teve de erguer as mãos pra tatear, mas logo o vapor dispersou e L. surgiu de pé
na beira do caminho, com uma mochila entre as pernas e roendo unha:
- Ah, oi!
- Oi, li... [beijo – abraço - L. apanha
a mochila – começam a caminhar]
- Porque que cê não foi na aula hoje,
tá doente?
- Hum hum, não dei conta não... Tava
muito calor e não consegui dormir de noite, depois de manhã apaguei.
- Insônia... Meu irmãozinho tem
insônia: mas ele cura com vídeo game.
- [risos] Que bom que a gente vai pegar
praia! Porque passei a noite inteira pensando: amanhã é sexta, é sexta, a gente
vai descer pra praia, preciso descansar... Aí que não dormi mesmo!
- Lembra quando eu, você a annabel e a
carla fomos no centro cultural sp?
- Lembro! Tinha mais gente né, tenho
medo de esquecer... Mas de vocês não esqueço.
- ...
- Queria dizer que nessa época de
escola a vida era muito confusa mesmo, quanta coisa eu quis sem saber me expressar!
Mas aí parece que agora continua confusa igual, ou ainda pior e piorando...
- Coitado
do homem que cai, no canto de O. traidor ... [suspiro] Mas então o que
você quer com isso, querido?... O que será que eu quero?... Acho que o que eu quero não enchia um parágrafo,
sabia? Você complica tanto...
- Vários meninos gostavam de você na
época, mas era um povo tudo meio nerd e gostavam com pegada medieval mesmo!
Meio stil nuovo meio grunge: grandes
obsessões, pensamento continuado, autodestruição...
- ...
- Mas isso não foi ruim, foi ótimo! Já
pensou? Sonhar em ter alguém de corpo e alma? Isso deixa as pessoas malucas
mesmo, porque normalmente a gente fecha uma porta pra abrir bem a outra, né...
Pra se comunicar, pra gostar dos amigos, da família... [rapaz apresenta
nervosismo – suspira e passa a mão pelos cabelos – a moça sorri]
- Eu não tava muito certa de nada na
época também, ainda que o P. tenha me transformado e... Ah, mas eu gostava era
de estar perto de vocês, cês são tão bonitinhos com cara de estudiosos!
- E você é linda, genial: a gente tem
sorte...
- ...
- E eu também gostei muito de você na
época: sonhava e sonhava... Mas pra dizer do modo que gostei precisava
confessar uma maluquice minha... Tudo bem?
- Já tô acostumada.
- ...Lembro
que saímos juntos daquele curso de filosofia em santana, e a gente caminhou até
a rua das lotações, você disse que ia sair com aquele menino loiro que tava
ficando outro dia...
- Cê
lembra dele? É um carinha lá, ele é legal...
- Lembro...
- Mas
nem sei, acho que preferia ficar aqui com vocês!... Mas cê tem que ir embora
né...
- ...
- A
gente podia comer esfirra no habibis né!...Oi?... Cê tá com sede? Ah, quando
não tem bebedouro eu pego água na torneira do banheiro, quer uma garrafinha?
- Eu
tenho... Gostei quando você sugeriu isso porque eu tava meio sem grana, e
me fez sentir muito leve... Mas naquele dia que você foi ver o carinha lá, eu
fiquei vagando meio perdido por Santana: assisti os caras jogando fliper e
depois sentei nos bancos de concreto pra ficar olhando os pombos, o povo da
rua... Daí peguei um ônibus pra paulista e fiquei lá, andando, andando... Um
dia parei num boteco e comprei uma dose de D., e foi muita coragem que me deu! Ah, se ela aparece aqui! Se encontro com ela
aqui! Ah... Fiquei assim meses e meses e...
- Você é doido mesmo, agá...
- E você, o que tava fazendo na época?
Será que sou só eu que tenho essas coisas?
- Não querido, eu também... Mas não
fiquei nessa sua de andar tão sozinha por aí, eu ia atrás de estar com as pessoas...
Também não é nenhum paraíso, a gente sofre e se acha louca igual: do mesmo
jeito que quem está muito só...
- ...
- Mas você se encolhe muito rápido:
foge... Parece quer queria a tristeza toda pra si... Fica bancando o pudico com
tanta força que a gente se confunde...
- ...
- Olha, mas não é um problema
específico seu, viu? Não precisa ficar se achando não... Agora a opressão é tomar nossa voz e desfilar aqui um monte de
justificativas pra afagar o ego do machinho... E toma a imagem da minha voz, do
meu corpo, minhas lembranças [olhar perdido no horizonte] E el’ quase nunca olha a gente nos olhos...
Tudo entre nós vira música, coagula em canção...
- É que não quero que você suma
nunca... Você é uma esperança pro mundo inteiro...
- Ai, olha o que ele me fala... Cê percebeu que tá ficando mais novo e que eu
envelheci um pouquinho? Ah, sim, claro:
porque el’ entende a alma das mulheres... O famoso Chico B. da família cubas!
Pois se você entende da alma da mulher, eu entendo da sua... Dessas rodas de
violão sem fim, da cachaçada constante, das outras, da sua falta de sossego...
- ...
- Nossa, agora cê tá quase menino de
novo... Anda, relaxa, B... Cresça e apareça! Pequeninho assim fico querendo que
cê seja meu filho... Que chaaato!
- Ah, voltei mana jiguê! Agora a gente
regula idade, mas não chegamos na nossa idade verdadeira atual tá: vamos ficar
no começo dos vinte!
- Acho ótimo! Por mim ficava aí pra
sempre... E quem é esse pessoal que vem aí atrás?
- Bom, a gente ainda não sabe o que
você sabe, lee... Mas vamos supor que você conhece todo mundo!
- Pronto. Conheço sim... Conheço e amo,
inclusive!
- Ei, li! Você gostou do seu uniforme
de escola? [Elalia]
- Achei ótimo, pareço professora de
educação física...
- Outra neblina adiante: recurso de
flashbeck que pra nós aqui é um dado material concreto... O graça podia falar
com ela né, que cê acha G.?
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P. ◙ ● T.
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L.
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- Tudo bem...
- Então vá! Ela é mais lida que você,
então cuidado com a filosofice barata, com teosofia...
- Mas eu não sou disso.
- Você não é mesmo, né graça! Tava
falando com a demiurgo, na real: el’ sim precisa se ligar que... Ah, cala-te
boca... Vá lá querido, a gente te alcança:
G.
acenou de cabeça e deu uma corridinha até a névoa, onde a moça o esperava: no
caminho o rapaz fez os gestos de quem procura algo nos bolsos, mas sem
encontrar. Dentro da névoa G. levou
o polegar à boca e começou a mastigar a unha. T. surgiu no meio do caminho: ela vestia um moletom azul com zíper
e gorro por cima de um vestidinho preto florido: usava o cabelo preto amarrado
pra atrás:
- E ai...
- Oi T. tudo bom?
- Não sei... Tô me sentindo meio
sequestrada aqui... Que horas são?
- São seis e dez da manhã, passei a
noite escrevendo e agora tenho só algumas horas pra terminar isso...
- Hum... E pra onde vai essa estrada?
- Pra Praia Vermelha, bem no rumo da Ilha,
a montanha sobre o mar.
- Sei... Mas que idade você tem? Sua
aparência não é fixa, tá me deixando agoniada...
- Uma vez peguei uma foto antiga minha
e digitalizei no computador: eu era menino e estava de gravata borboleta e
terninho branco, pra ir na primeira comunhão da minha irmã. Daí peguei essa
foto e desenhei uns óculos de aro redondo por cima do meu rosto... Lembra o que
você me perguntou a respeito dessa foto?
- Perguntei se você tava querendo ficar
parecido com o g. rosa...
- Pois é, e quando confirmei a
brincadeira você completou: mas não é
muita pretensão sua?...
- ...
- ...
- Desculpa, cê ficou ofendido? Pegou
mal?
- Não fiquei ofendido não, nem um
pouco... O cara era um crânio mesmo: poliglota, diplomata, magnânimo... Porque
na época eu escrevia uns negócios, mas achava tudo ruim... Ainda acho, mas
agora virou nudismo e colagem né...
- Sei... Que interessante ficar aqui
falando de você, com tanta coisa acontecendo...
- ... Sempre te achei mais inteligente do que eu: ficava atento às ironias,
rondando elas sem alcançar entender...
- Isso é projeção sua: não sou mais
inteligente que ninguém. E não me lembro de ter sido tão irônica assim... Na
certa era em resposta a essa atitude sua e... E nem tem muita coisa pra lembrar
né, a gente se encontrou tão pouco! Como você é escorregadio... Aliás, não faz
sentido nenhum a gente ficar aqui remoendo suas coisas comigo... Cê acha que
isso aqui foi uma lembrança triste-triste mesmo? Ah, infelizmente você pegou o
bonde andando, sorôco, querido... São
muitas histórias, maiores, mais doloridas, que eu vivi... Mas essas são minhas,
bem minhas...
- Mas você não se admira de eu estar
aqui assim? Tentando entender porque a cada volta saboto minha vida? Porque não
consigo estar sossegado com quem gosto? Porque não consigo completar nada?... Porque esse lugar não vai pra frente!?...
- [abraça-o pela cintura] Você é um
menino bacana, graça, fica bem... Precisa fumar um pouco menos e relaxar!
Conversar é bom, mas estar quieto também...
- ...
- Mas todo mundo tem alguma coisa: não
se sinta só.
- Perguntei pro P. se ele achava que um
dia, estudando bastante, eu não teria chance de virar psicanalista...
- Ah, mas pra isso precisa receber alta
na análise, não é verdade?
- É verdade, foi o que el’ me confirmou
depois... Quero prestar concurso pra trabalhar no judiciário, sabia?.
- Ah é? Trabalhar de quê?
- Escrevente.
[grupo se aproxima cantarolando: seus filhos erravam cegos pelo continente,
levando pedras feito penitentes, erguendo estranhas catedrais]
- Você conhece a Elalia né.
- Oh! E o resto do pessoal me recebe
com muito carinho...
- Tá
com nóis... Tá com nóis... – disse Otto lentamente num tom gutural. As
pessoas riram e seguiram marcha. O grupo se dividiu: as meninas andavam todas
em torno de claris, que ao que parece interpretava sonhos.
E mesmo Aquel’Dinanã deu um jeito de
contar, com mímicas e leitura labial, um sonho em que morria e acompanhava o
próprio velório assombrando a irmã: mais atrás, os meninos e Otto olhavam
curiosos pra uma velha garrucha de dois canos que Elalia exibia: debaixo do
tambor, gravado no metal, lia-se a inscrição: 1795 AD. Apenas P. se
distraia sozinho com o horizonte amarelado: agora já remoço pra uns trinta e
poucos anos:
- Ei claris, dêncio: cês não
vão lá chamar a má pra gente? O sol tá quase ai, é nosso prazo!
- ... [dão-se as mãos e vão]
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[cruzam a névoa
– moça vestida com calça social, tênis, camisa branca e coletinho de lã amarelo
sem mangas – esperava distraída, batendo um dos pés no chão e roendo unha]
M.- Mano: não
acredito que me puseram indo pra praia com essa roupa de trabalhar... Me dá
logo um chopp de vinho e põe uma música do r. seixas pra acabar comigo de
vez!... Será que tô sonhando com o banco de novo? [casal se aproxima]
C.
-
Olá!
P.
-
Oi.
M.
-
Ah sim, os pais do H. quando jovenzinhos: a R. e o F...
C.
-
Na verdade eu sou a poeta c. meireles
e esse é meu marido tabagista e filho esquizofrênico... o A.
P. - E eu sou o poeta c. e souza, e essa é minha esposa esquizofrênica e filha
tabagista... a V.
M. - Os nomes até batem, uau hein... [tira
o colete e a camisa] Que calor... Ah, top e blusinha clara por baixo,
agradecida!
C. - Nossa
intenção com essa regressão era acessar conteúdos reprimidos e retrabalhá-los
em chave autocrítica: forçando os limites da forma e da identidade para além
das próprias fixações neuróticas e...
M. - Mas esses “limites” é que constituem
a gente, não? E que conteúdo é esse que vocês querem “retrabalhar”? Vão lembrar dos momentos bons ou dos ruins?
Vão lembrar de quando terminaram comigo pelo telefone depois de 4 anos de
namoro?
[P. e C. se olham e dizem em uníssono]
P. - Como
você teve coragem de fazer uma coisa dessa?
C. - Como
você teve coragem de fazer uma coisa dessa?
M. - ...Engraçadinhos...
Não sei que sentido tem vocês ficarem voltando pra cá: se escondendo por trás
de autor falecido, formar equações com o nome dos meus pais... O que vocês
querem com isso?
C. -
Eu quero ter uma filha.
P. -
Eu não posso [nunca] ter um filho.
M. -
?
P. -
O mundo está apodrecendo.
C. -
Minha criança é uma esperança pra mim e pro futuro.
M. - ...
P. -
O amor que leio em você só se completaria com uma criança.
C. -
Você é meu pai e minha criança corrigida: de um ser humano que se cria do
ventre à palavra a gente [não quer conhecer] conhece todas as [nossas]
fraquezas... Nos cuidados com o corpo do bebê, a mãe é iniciada na fragilidade
universal... Quando estiver velh[o-a], preciso de alguém pra olhar por mim com
candura...
P.
- Eu não quero que você limpe minha
bunda mais, mãe... Tenho vergonha, tenho medo, que angústia... Tira a mão de
mim!
C. -
Põe as mãos em mim! Eu te amo. Não te
abandono nunca nunca... O segredo do seu desejo morre comigo... Anda, fala mã... mamãe, mamãe... Oh, ela
vomitou a papinha tudo! Acho que porque dei o vidro todo de uma vez...
P. -
Acho que o pai não gosta quando fico perto dele: tá sempre me corrigindo...
Fica fugindo de olhar na minha cara: rosna com as minhas perguntas, como se eu
estivesse inventando assunto pra conversar... O papai tem o pipi grandão,
peludo... A costa do papai é bonita tamém: preta, e sem pelo com uma pinta
peluda! Mamãe chama ele de preto,
mas não quero chamar ele assim... Pois
se ele quer ficar sozinho que fique!... Nunca vi a mãe pelada...
M. -
Vocês são engraçadas mesmo!... Ainda bem... Porque todo dia fico pensando que,
quando a gente tem uma angústia assim forte, de alegria e de dor ao mesmo
tempo, acho que quer dizer que se atingiu uma coisa verdadeira... E nessas
horas é bom se pensar em política: em muitos futuros!
[Elalia] – E aqui começa a Trilha da Praia Vermelha! Contornando o
morro, e descendo até a areia no momento exato em que nasce o rubro Ânus - Solar! Que bonito seria se a
gente se visse descendo, vocês são tão lindos... Não quero esquecer mais nada!
Não vamos esquecer de nada do que é bom, nunca! Já pensou? Nós todos na praia,
se abraçando depois do longo inverno?
- !
-
Ah, vamos à espera angustiada do ponto.
Não do meu ponto final! Agora fechem os olhos! Todo mundo fecha os olhos!
-
...
-
Fecharam?
-
Sim.
-
Então acabou.
-
...
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