4 de jul. de 2011

Crônica Artificial 0.7



Jornalistas
(XY)

            O XY AN. seguia a passo rápido pela madrugada, cortando as vielas de concreto que conduziam à estação P. do metrô. Ele vestia um par de jeans rasgados, botas militares, uma camiseta branca de gola esgarçada, suspensórios vermelhos e um casaco preto reforçado: o cabelo era preto, bem curto, e a barba cerrada. Da lateral do pescoço e sobre o punho esquerdo escapavam (pontiagudas) as arestas de uma grande tatuagem negra, em estilo tribal.

            Ao dobrar uma rua estreita e longa, o rapaz parou sob um poste de luz branca e olhou em redor: à sua direita um muro fino e poroso, montado com placas de concreto, acompanhava a linha do trem, com novelos de arame eletrificado no topo. Pontos de luz branca se sucediam ao longe, até a estação: do outro lado da rua se intercalavam galpões de fábrica, depósitos, barracões com placa de aluga-se e terrenos baldios guardados por cães.

            O rapaz então sacou do bolso um maço de cigarrilhas argentinas da marca Smile-O, e acendeu um com ar desconfiado, segurando-o entre o indicador e o polegar. Depois de algumas tragadas, pouco a pouco, AN. foi perdendo a expressão tensa e suas pálpebras baixaram: lentamente ele ergueu o rosto na direção do foco de luz e estreitou os olhos: através do halo branco que chispava da lâmpada, era possível ver os contornos de uma esfera de vidro...: o rapaz parecia confuso, e as sobrancelhas baixaram com ar de ?... Então: !

            Um ruído alto de corneta desceu sobre AN., que com o susto curvou o corpo, cobrindo a cabeça. Do mesmo alto-falante e no mesmo volume ensurdecedor uma voz sentenciou:

- Flagrante. Flagrante em andamento: viatura 2469-E, contornando o quadrante B6 às 04h20min11seg, interceptará o objeto em 5,4,3...

            Nisso um som de sirene começou a soar, e o brilho do giroflex tingiu de vermelho os fios sobre os trilhos: AN. disparou na direção da estação, atirando o maço de cigarrilhas, a ponta e o isqueiro na linha do trem. No instante seguinte a viatura dobrou a esquina, e o vermelho intermitente das luzes cobriu o caminho de AN.: o rapaz finalmente alcançou a estação, subiu o lance de escadas com dois pulos, tocou o painel da cancela com o polegar e cruzou a persiana de vidro da catraca:

- Pára, pára, pára, carai!

            Ao cruzar a barreira AN. foi interceptado por dois seguranças do metrô, que vinham subindo pela escada rolante: ambos vestiam uniformes pretos com colete a prova de balas e carregavam armas de fogo, além de cassetetes. O mais alto tinha barba e longos dreadlocks, que desciam até o meio das costas. O mais baixo usava um cabelo black armado e encaracolado, além de um prego no lugar de brinco, trespassando o lóbulo da orelha esquerda: nos seus crachás lia-se, respectivamente, C. e P.: claramente seus apelidos.

- Ou, ou, ou, onde cê vai, carai?- disse C. segurando o rapaz pelo colarinho do casaco.

P. sacou a arma com a mão esquerda e apontou na direção da catraca, contra os policiais:

- PP. não bota banca aqui não: vamo ficando atrás da linha amarela, faz favor.

            Os guardas que seguiam AN. eram dois sujeitos de barba feita, que vestiam uniformes caqui com botas de cano alto marrons e bonés da mesma cor. Também estavam armados de pistola e cassetete. Enquanto recuava um deles, o que tinha bigode, disse:

- Passa o paisano pra cá, jurisdição nossa, tem flagrante dele no circuito externo.
- Flagrante?  Seria fragrante né camarada... – disse C. coçando o nariz e se voltando para AN., que ainda sustinha pelo colarinho. Em seguida ele ergueu os braços do rapaz e separou suas pernas com dois chutes, iniciando uma revista. Enquanto fazia a busca sussurrou:

- Cadê o maço, onde cê jogou?...
- Na linha.
- Mas onde na linha, caralho!...
- ... um pouco depois da câmera, do lado de cá... no B6...
- Tá... Ok. Que cartão é esse aqui?... Jornalista... Cê é da Independente, é? Eu sou da Mancha, seu merda... Tava com cara mesmo...  Mas cê deu sorte hoje, hein boy? Vai, sai da minha frente: e fica ligeiro, porra!

            Vendo que o rapaz se afastava na direção das escadas, o guarda da PP. Assoviou e deu um grito:

- Ou, se cê desce essa porra te sento o dedo, filha da puta! Passa o paisano pra cá!
- Baixando a bola aí, PP., quem faz aqui dentro é a Interail, não é não? Tá tirando nossa firma?! Vai, cruza a faixa amarela de novo que eu dô com o caibro na tua cara, bicho! - disse P. golpeando a lateral da cancela com o cassetete.
- PP. Passa fome do caraí... tá atrás do maluco por causa de cigarrilha argentina? Não tão atrás de outra coisa, não? O boy puxa ferro...
- Ahn, já tinha sacado esse bigodinho aqui. O que tá escrito no crachá dele? H.?! Que porra de nome de matuto é esse! O desgraçado não deve saber nem o verbo to be, não durava uma semana no Concentration C.
- Uma semana, nem isso... Ia levar dos polacos até ficar todo assado!
- Ya suck my mother fucking dick! Pricks!
- Ah, mãe da foca, mãe da foca... Fala direito, porra! - dizendo isso C. fechou o punho, ergueu o polegar fazendo jóia e o aproximou da boca. Enquanto falava sua voz saía a todo volume dos alto-falantes espalhados pela estação:
- Attention, attention Interail Security staff: achieving critical mass at gate one. Look for: yellow bastards Yel-low Bas-tards. – e baixando a mão voltou-se para P., que apontava a arma pra a cara de H.
- E aí P.: a bala na agulha é dumdum?
- Dumdum, se é: pra arrancar metade da cara do bigodinho. Não é não, bigodinho?! Não é não, gordinho?! - disse P. para o outro guarda. Os dois recuaram devagar, deram meia volta e foram saindo da estação resmungando e cuspindo no chão:
- Ei, soldado amarelo: a Interail vai pegar geral, de leste a oeste: vagabundo não cruza nossa linha não! E cuidado com essa empresinha de vocês aí: tem gente de olho aqui na área, bom fazer seguro de vida...
- O pior é se tiver que vender pro Estado e virar reiúno! Já pensou? Soldadinho do governo? Babá de maloqueiro? Vão mandar os amarelo pacificar o interior, vish!
- “A vaga tá lá, esperando você...”
- “Já ouviu falar de Lúcifer? Que veio do inferno, cheio de moral, aqui ele é só mais um, comendo rango azedo!”
- É hoje qu’ Interail vai in-va-di!

Nisso os PP. já estavam fora da estação e os seguranças riam alto, intercalando repentes antigos. AN. desceu a escada rolante antes que os guardas se voltassem pra ele: eram na verdade dois lances de escada muito largos, que desciam por um túnel de concreto estreito, de teto baixo. Esse túnel descia por dezenas de metros, quase ao ponto de não se enxergar o fundo: sobre os corrimões que separam uma escada da outra, uma linha de lâmpadas fluorescentes acompanha o caminho até embaixo, muitas delas queimadas:

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            AN. alcançou a enorme plataforma subterrânea, que estava vazia: o rapaz esperou pelo trem muito próximo do fosso, com os dois pés sobre a linha amarela e olhando pra baixo. Por fim o carro n.25 despontou no túnel à esquerda dele, com seu enorme letreiro em neon: o trem não tinha condutor e estava completamente vazio. Dentro do aparelho os vagões não tinham separação interna, e era possível ver o veículo de ponta a ponta: AN. procurou o lugar mais à retaguarda do trem,  de modo que pudesse enxergar todo o comboio, sentando-se alinhado com o corredor.

Antes que o trem partisse, porém, entrou um tipo de macacão verde com o número 25 estampado no peito. O sujeito passava dos 50 anos de idade, era um mulato magro de óculos, bigode e cabelo curto todo branco. Ele carregava uma vassoura e um bastão com um reservatório de lixo, pra recolher o que fosse varrendo: na cintura um molho de chaves tilintava a cada passo que ele dava: o tipo cumprimentou AN. com um aceno de cabeça, foi até o fundo do trem e, com uma das chaves, abriu o painel de controle pra verificar alguns gráficos na planilha digital. Em seguida fechou tudo e começou a varrer o chão com esmero, procurando os cantos mais empoeirados entre os bancos. O rapaz esperou que ele se aproximasse e perguntou:

- O senhor tem horas?

O n.25 parou de varrer, segurou a vassoura diante de si (alinhada com o queixo) e fechou os olhos. Segundos depois os abriu de novo:

- São quatro e 29, velho amigo. E me fala uma coisa, quando cê entrou aqui era de dia ou de noite?
- O senhor não sabe?
- Essa semana tô dobrando todo o dia em turno cruzado. A empresa paga o rebite né, mas a gente fica meio atordoado, com zonzeira... Às vezes não sei se tô indo pra casa ou voltando pro serviço!... Mas é de dia ou não?
- São 4:30 da manhã, amigo. Madrugada...
- Jurava que era dia, bicho... Paciência.

            O funcionário seguiu varrendo entre os vagões articulados, que iam serpeando pela linha irregular: nas curvas mais acentuadas que o trem fazia, os vagões dianteiros desapareciam completamente pra quem estava na retaguarda. Noutra curva reapareciam de repente, num jogo de espelho em que o mesmo ambiente se replicava diante de AN., surgindo e sumindo.

            No fim das curvas, quando os vagões se alinharam mais uma vez, AN. notou a presença de uma terceira pessoa no trem: sentada(o) na cadeira equivalente à sua, três compartimentos adiante, um(a) adolescente de cabelo curto e loiro, vestindo o mesmo jeans maltrapilho, os mesmos suspensórios e coturnos e o casaco reforçado. Ela(e) se levantou e avançou na direção dele com ar decidido, e sem titubear com o sacolejo do trem. Em seguida se sentou de frente para o corredor, muito próximo(a) e já no mesmo vagão de AN.: o rosto da(o) adolescente era sem mácula, de uma androginia conforme, mas transtornado de ódio. Tinha os olhos vermelhos, o maxilar teso, mastigando a si mesmo, a respiração acelerada com movimentos de cabeça que iam da esquerda pra direita, sem descanso: com ar apreensivo AN. não tirava os olhos de uma faca borboleta, cujo cabo despontava de um dos bolsos do(a) outra(o).

            O(A) adolescente então pulou para o banco em frente do rapaz e lhe mostrou uma credencial costurada no forro de seu casaco: era um trapézio invertido e vermelho, com um martelo negro desenhado no centro.

- Salve... É militante da independente também?
- Mais que isso, eu tenho um recado pra você, A.
- Como é?... E quem falou que meu nome é esse aí?
- Eu conheço você A.
- Conhece sim...cê tá na fissura da pedra, amigo, já te saquei. Não tenho nada contra, não irmã, mas precisa sorte: uns vão pelas veia, outras mata, outros morre...
- Mas eu não conheço mais ninguém nesse mundo: cê é a única pessoa que eu conheço, mano velho.
- Na militância?
- ...
- Cê é loco, meu chapa... e não pensa que eu não tô ligado na tua faca de acrílico não. Tá querendo rouba no metrô? Tá maluco? Quem tá na fissura do oxi não gasta crédito com passagem de trem, mina, cê é verde...
- Verde não: tudo que cê sabe eu sei... Mas só conheço você no mundo, então não me vale de porra nenhuma... Mas tem uma coisa, uma única coisa só, que eu sei e que você não sabe. E eu vim pra testemunhar e sumir... Mas é bom sumir: tô pouco me fodendo: sumiu, ficou,  pa puta que pariu...
- ...
- É isso AN...: uma das pessoas que você conhece, e que convive com você há anos, é uma criação sua.
- ...
- Essa pessoa é um delírio seu. Não tem existência física. A relação dela com outros conhecidos em comum é outra ilusão que você arma. Tudo falso, você fala com as paredes... 
- Pô, cê tá no bico do corvo, hein mina? Fumou os miolos?! Moleque folgado do caraí, hackerzinho do icq... Tá querendo me sugestiona é, dona cuca? Sabe meu nome? Sabe meu CPF tamém?!

            Nisso o(a) adolescente sacou a lâmina de fibra com dois giros do cabo articulado:

- Não encosta em mim! Não toca em mim, caralho! Se encosta ni mim te arranco o olho! - urrou a(o) jovem com um fôlego que silenciou AN.

            O trem já se aproximava da estação e ia parando. O(a) adolescente se levantou com a arma em punho e o rapaz, ainda sentado, o encarava com um ódio indisfarçável. Depois do sinal sonoro o jogo de portas se abriu e entrou um segurança no vagão deles: com um sorriso exagerado e desfigurante a(o) jovem se voltou para AN. e disse:

- E eu que, eu que, sempre quis um lugar. Gramado e limpo, assim, verde como o mar!

            E na seqüência se atirou contra o segurança com a faca, cortando-lhe o rosto com um gesto preciso, enquanto atirava o sujeito no chão. Com o susto AN. se viu de pé no centro do corredor, com os braços abertos: encarava o segurança caído, que ainda não reagira. Já não havia mais jovem nenhum(a) e a faca estava jogada num canto: o sinal apitou novamente e as portas começaram a fechar. Ele se atirou pra fora no último momento, mas o segurança não o seguiu: lá de dentro, porém, sacou a arma e apontou para o rapaz através do vidro. O trem  não se moveu por alguns segundos, tempo em que os dois ficaram se encarando, ofegantes. Quando os vagões começaram a andar, o segurança  foi movendo a arma pra mantê-la apontada contra AN. E o manteve assim sob mira, até sumir do ângulo de visão. 



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