22 de jul. de 2011

Crônica Artificial 0.7A

Jornalistas
(XX)



A XX AF. Vive num apartamento minúsculo no primeiro andar do prédio P. Gomide, numa esquina larga e arborizada da Capital Federal: sua kitnet não passa de um pequeno quarto-cozinha separado por uma bancada. Do lado oposto à porta de entrada, um par de janelas com cortina dá para um buriti espalmado e super verde, que deita folhas sobre a esquina ensolarada: no momento a ducha está ligada, e por detrás do ruído da água, é possível distinguir gemidos sufocados e soluços: sobre o colchão de casal, no centro do quarto, se espalham toda sorte de roupas e objetos, na maioria livros: As portas do guarda-roupa estão escancaradas, e muitos de seus compartimentos foram esvaziados pelo chão.

            AF. saiu do banho vestindo um roupão azul claro, sobre uma camiseta branca de gola esgarçada: seu cabelo estava quase seco, com mechas castanhas que desciam até o ombro: os olhos verdes chispavam, vermelhos de chorar e ainda cobertos por uma camada de lágrimas: da vista esquerda escapou uma gota, que se perdeu na curva da maçã e escalou o lábio pronunciado: a moça correu a manga do roupão sob o nariz e passou as mãos pelos cabelos, enquanto se aproximava da janela: lá embaixo, pra lá das grades do condomínio e a coisa de 25m de distância (ΔABC), estava estacionada uma antiquada viatura de polícia, com bagageiro grande e rodas sujas de terra. Em torno dela, três policiais de alturas distintas se distribuíam em escadinha: o mais baixo era branco, tinha o ventre arredondado e os braços musculosos, além de uma barba castanha cerrada, que coçava com as duas mãos. O do meio era um mulato esguio e conformado, de bigode, e fumava um M. vermelho com ar arrogante. Já o mais alto era de porte atlético e traços nativos fortes, com olhos rasgados, corpo sem pêlos e a pele escura. O mais baixo e o mais alto carregavam uma submetralhadora e um fuzil de assalto, respectivamente; enquanto o sujeito de bigode, patente mais alta, não levava mais que a pistola no coldre. Os três vestiam um uniforme verde escuro, com calça de lona cheia de bolsos, cinto preto de fivela prateada, e camisas de manga arregaçada, com o colarinho aberto até o peito. Sobre as cabeças usavam um boné de bojo curto e aba envergada.

            AF. ficou a observá-los através do vidro por algum tempo, com ar desorientado. Num gesto automático ela colocou os óculos que estavam no bolso e estreitou os olhos, tentando enxergar: as lentes se distorceram um pouco, como se fossem líquidas, e AF. conseguiu um zoom dos três soldados: enquadrados num palco do comprimento da viatura e da largura da calçada: súbito o mais alto gritou pelo colega barbado, chamando-o duas vezes: O som não chegava até a moça que, lendo os lábios do grandalhão, sussurrou o nome:

- P.?

            Os dois colegas se voltaram para o mais alto, que continuava falando: conforme distinguia as palavras nos lábios do sujeito, AF. ia repetindo num sussurro:

- ...achando... u’a pequena?... não olha ...ão olha... às doze horas...

            O sujeito de bigode deu as costas para a janela. P., o barbado, cruzou os braços e ficou com o pescoço rígido, movendo os olhos na direção do prédio enquanto falava: AF. leu o que ele dizia também:

- ...capitão... olha não... é muito... beleza... será que bebeu? B.! B.! direto não... porra... olha não... trouxa...   

            Nisso o grandalhão B. riu baixando a cabeça e cobrindo a boca. Em seguida também deu as costas pra janela, recostando na viatura e cutucando o cara de bigode com o cotovelo. P. se colocou diante dos dois e continuou falando:

- ...é bonita... roupão!... lembrei de... era bem mais!... na minha cara, ela disse... não é não B.?... não é não?... o H. quem sabe... H. manda... e quem ia dedar?... maloqueirada... multidão... vão pegar geral mesmo? ... cê duvida?... quem cagüetava?...  Fudeu. Fudeu. Fu-deu... santo... o capitão santo!... príncipe... caralho... olha agora H.... agora H...

            O capitão se voltou discretamente pra janela e topou com o olhar de AF., que deu mais um passo na direção do vidro e sorriu: H. segurou a aba do boné e balançou a cabeça em cumprimento: a moça acenou e fechou a cortina com um gesto brusco, dando um passo pra esquerda: através da cortina transparente, atrás da palma do buriti, ela viu o grupo dispersar numa gargalhada nervosa: H. bateu palma uma vez e cruzou os braços, segurando o cigarro nos lábios; P. jogou a alça da arma de lado e se curvou, abraçando a barriga; B. puxou o fuzil pra junto do peito e cobriu o rosto com uma das  mãos, soluçando de gargalhar.       

               AF. sorriu por um instante, mas logo entristeceu com uma expressão angustiada: ela olhava pela janela com os dois braços apertando o peito e os dentes rangendo: lá embaixo o capitão acendeu outro cigarro. Com a mão direita ele fazia um cone pro ouvido e andava de um lado pro outro, gritando e aguardando pra dar mais gritos; P. e B. escutavam com ansiedade: os lábios de AF. ia repetindo o que ele dizia:

- ... mantida coronel... agitação nenhuma senhor... os beatos?... Asa-Norte?!...ainda não... mas tomaram o quartel é?... quais?... arriscado, senhor... altamente arriscado, quantos são? Minha nossa.... positivo, positivo... mas senhor, o nosso contingente... – nesse instante três viaturas de polícia cortam a rua em alta velocidade, com sirenes ligadas e atiradores empunhando armas pelas janelas: eles cumprimentaram os colegas com gritos e golpes no capô. - ... isso é uma loucura, meu coronel!... eu entendi, senhor... o programa, sei, sei... o programa. O programa... a gente segura a posição, senhor: a gente fica, a gente fica, a gente fica! Câmbio! – e deu um tapa no teto da viatura com a mão que estava perto do ouvido.

Os três estiveram em silêncio por algum tempo, então P. se voltou para os dois, que deram as costas pra janela, e começou a falar: assim leu AF.:

-... cês lembram?... um samba... esse sambapelo?... meu apelo... começa assim... vou acabar enlouquecendo, se você não... quiser? me quiser?... lhe quero tanto bem...ah ... meus olhos choram lágrimas doídas, das tristezas dessa vida, onde você não me quer, meu amor... me amar... Dê atenção ao meu apelo... por...fa...vor... Dê atenção ao meu apelo... por...fa...vor...

AF. se afastou da janela: ela tocou a superfície de pedra da bancada e uma tela de vídeo surgiu projetada no ar: era um retângulo de um 1m por 50cm, que mostrava a imagem de um homem negro fotografado da cintura pra cima e sorrindo: dos alto-falantes escondidos pelo quarto começou a soar, com muita chiadeira,  ao de som de cavaco e violão:

Vou acabar enlouquecendo
   Se você não me quiser
   Eu lhe quero tanto bem...

- Cala a boca! - gritou AF. do fundo dos pulmões: a imagem dispersou em ondas concêntricas, que deformaram a superfície da tela. Em seguida a projeção mudou num quadrado negro.

Ela encheu uma xícara com café frio, contornou novamente a bancada e se sentou na beira da cama, de frente pra projeção: deu dois goles na bebida e contorceu o rosto por conta do amargor. Num sussurro ela disse:

- ...que tá acontecendo?...  

            A tela preta começou a ganhar cor a partir do centro, apresentando os contornos de uma imagem: a figura tentava se formar em blocos (quadrantes) conforme o quebra-cabeça ia se acomodando, mas sem muito sucesso: a moça ficou impaciente e gritou:

- Notícia, notícia!

            A tela então ficou branca num flash, antes de começar a mostrar as imagens de um litoral devastado: destroços, carcaças de carro e entulho flutuavam entre esqueletos de prédios, golpeados pelas ondas do mar. A voz feminina que narrava a matéria tinha um forte sotaque estrangeiro:

- ...já aqui na cidade de F., na antiga P. do Futuro, o mar continua avançando em direção a zona da mata, devastando tudo que encontra pela frente. O campo de refugiados São T., que abriga quase 500 mil imigrantes ilegais do cone sul, está na rota das águas, e será atingido nos próximos minutos. A administração dinamarquesa declara em nota que “o sofrimento conjunto das nações em um momento de reestruturação como o nosso representa...”

- Aqui! O que tá acontecendo aqui!

            A projeção ficou preta novamente, e em seguida passou a mostrar uma multidão que marchava por uma rodovia no meio do cerrado. O número de pessoas era imenso: o grupo era formado, na maior parte, por mulheres com crianças pequenas e gente idosa. Ao redor, porém, são seguidos por milhares de  adolescentes de ambos os sexos, que vestem farrapos e carregam AKs-47, além de granadas: muitos deles usam coletes ou abadas vermelhos onde se lê a inscrição Jovem Guarda: diante deles um sujeito magro, cabeludo e barbado, vestindo uma batina azul escura, decotada e fina; era seguido de perto por um grupo de pré-adolescentes fortemente armados. Enquanto isso uma voz grave e estilizada narrava a matéria, alongando os R’s  e reforçando os B’s e P’s e T’s e D’s: 

- “... a multidão de farrapos que segue o fanático H. Nascimento vem arrebatando milhares de romeiros nas cidades-satélite por onde passa, incitando outros focos de Romaria na região... A polícia diz que é impossível dispersar a marcha por conta da perda maciça de homens na recente defesa do litoral, e que agora cabe (eu cito) ‘ao governo dinamarquês e seu aparato repressivo o restabelecimento da ordem na capital da Antiga Democracia, pois foi a ela que essa corporação serviu, entregando para a morte certa seus melhores homens e mulheres’... Enquanto isso no cerrado, à beira da BR-X, ou rodovia Vaza-Barris, e a poucos quilômetros de B., os militantes ouvem os sermões de... “beato H.” no acampamento móvel, chamado pelos favelados de ‘Belo M’. Agora são 16H21, e você acompanha o discurso em tempo real em:

5...4...3...2...1...:
[mind [escape] to exit]

            Sentados em volta de um pequeno elevado com capim alto, uma multidão se distribuía em leque diante do beato H., que pregava ao lado de uma árvore enegrecida e sem folhas: com o rosto sujo de fuligem e empapado em suor, o homem fitava o horizonte com olhos vermelhos, e pra além dos milhões que o ouviam: todos sentados e em silêncio. Apenas os soldados adolescentes vagavam entre as fileiras com armas em punho: o beato retomou o discurso com voz potente: ao seu lado uma menina negra com chapéu de cangaceiro, vestido de renda e capa vermelha, segura um cajado retorcido com um microfone na ponta, inclinando-o na direção de H.: sua voz era transmitida por uns poucos alto-falantes em redor e as palavras, muitas vezes, acabavam carregadas pelo vento:

- ... mas por que Deus tem precisão de profetas? E por que J. foi o maior de todos?... Por que se a Palavra pudesse morrer pelo fim de um único homem, ou de um único povo, ela já não seria mais a Palavra de Deus!... Foi por isso que Ele se fez carne e viveu a chaga da miséria neste mundo: pra mostrar que nem a Morte! pode se colocar no caminho que a Palavra tem que percorrer... E que a Palavra leva à Vida Eterna, porque ela desafia o espírito com a Igualdade sem limite... Ai daquele que ouve o chamado da Igualdade! Ai daquele que já se vê no Monte das O.! E que suando sangue, em calafrios, quer endurecer o coração pras lutas que estão por vir!... Em verdade vos digo: J. viu muito antes a tragédia que esperava Jerusalém na curva do futuro...: Grande desgraça caiu sobre aquele povo! A cidade veio abaixo na mão do dominador imundo! Seu templo foi profanado! As famílias degoladas ou prostituídas no estrangeiro! Vergonha! Vergonha!... O que tem de podre em D. tem de podre em todo lugar....: Podre é um dos nomes dele... Do Mafanho. Do Pé Preto: O Inimigo do Amigo e do Inimigo... Por isso o Povo de Deus deve marchar sobre quem traiu essa terra primeiro! Sobre as pilastras de mão dupla, as duas estradas, pro paraíso e pro inferno, que cortam essa Terra!:



a da riqueza obscena e a da miséria total:
[ ̮ ‖ ̯ ]
o prato que implora e o prato que nega!

 )
  =
(

 Eles venderam nossa gente antes! Agora querem mudar pro estrangeiro pra clarear a pele e afinar os narizes! ? O Litoral Novo, comido pela peste e pela fome, agora é um mar de cana! A gente fugida dos conflitos de terra não tem mais nem um país, nem um chão! Em todo canto, a bandeira vermelha com uma cruz branca no meio, marca o lugar do sofrimento sem fim... Por isso essa cidade vai ser do Povo de Deus! Finalmente! B. vai ser o novo B.! ... B.: Coração do Mundo Pátria do Evangelho! É o destino dos Capelinos que se cumpre! Melhorar sempre! Progredir sempre! Infinity Power! Infinity Consciousness!... E viva Macedo! Viva Xavier! Viva Cícero! Viva Vicente Mendes Maciel!

            A multidão ergueu os braços e gritou tanto que foi preciso que o beato parasse: as últimas fileiras de pessoas, muito longe, iam recebendo com atraso a ovação, e mandavam gritos para o centro já silencioso:

 –. ..E não pensem que o faraó, rei de D., não vai mandar os Anjos da Morte pra nos sujeitar...: a peste não vem pela flecha de A. nem pelo Arcanjo G., mas pelos ares... É preciso manter os olhos no alto e não sentir medo dos teleguiados, Jovem Guarda, pois é a força do seu medo que atraí a angular maligna de...

            Nesse momento AF. se levantou e deu um soco na projeção do beato: a tela oscilou com uma ondulação líquida e se tornou preta de novo: a moça cobriu o rosto com as mãos e soluçou, caminhando pra janela: com lágrimas nos olhos, ela limpou os óculos e observou o movimento dos policiais: eles agora riam e mudavam de lugar em ritmo acelerado.




            Cruzando os braços sobre o peito, AF. se voltou para a tela com raiva:

- Imbecil... falta de respeito com o sofrimento desse povo!... Fascista barato... monstro... acha que vai ser o paraíso na terra quando a polícia fugir? Quando os beatinhos armados entrarem nas casas sem o santinho pra vigiar?!... Filha da puta... e com a bomba de nêutrons a gente vai volta pro tempo das cavernas...os dinamarcos vão varrer a cidade do mapa... varrer a mosca, a grande mosca, a mosca que perturba... – e das caixas de som começou a soar baixinho, com chiadeira:

- observando e abusando. Olhe pro lado agora, eu tô sempre junto de você...
- Shhh... – fez a moça pro retângulo negro, e o som parou.

           
Ela se voltou pra fora de novo, sussurrando a leitura dos lábios: o capitão agora falava com os subordinados de braços cruzados, sorrindo uma fileira de dentes brancos sob o bigode:

- ... mais de três horas discursando... que nem o F.!... o F. Castro ... F. Capão: sem graça essa, hein... Cê cheira cueca?... F. Casto: boa... diz que ele vai separar as águas... do Paranoá, ué!... Vai arreganhar o L. Paranoá erguendo o braço assim ó... o lago vai sentir a sovaquera do beato e vazar pros lados!... Que nem Noé, não: Moisés! Moisés! Fugiu da escola?... oh, outro samba bom... Juízo Final, conhece?... Exterminador? É samba, carai!...meu vô curtia... era bombeiro... a milícia matou... como era mesmo?... O sol... há de brilhar mais uma vez... A luz... há de chegar aos corações... O mal... será quemada a semente... – e novamente a canção começou a soar pelo quarto num registro cristalino, com instrumentos ao fundo e coro:     


-  “...O amor...será eterno novamente
       É o Juízo Final, a história do bem e do mal
       Quero ter olhos pra ver, a maldade desaparecer...”


            Enquanto a música rolava, ela fez seu caminho até o banheiro e ligou a luz branca em cima do espelho: sobre a pia havia uma toalha branca dobrada, uma escova de cabelo preta e uma tesoura grande, toda em metal:

- ...

            Ela puxou uma mecha de cabelo colocou entre as lâminas, medindo o cumprimento do corte: seu rosto então ficou vermelho e as mãos tremeram. Ela baixou a lâmina e golpeou a pia com o punho cerrado três vezes:

- “...o amor...será eterno novamente...”
- Quieto! - e a música parou.

            AF. saiu do banheiro e começou a se mover de um lado pro outro, no espaço entre a cama e a bancada, em frente à tela negra: seu braço direito apertava as costelas num abraço, enquanto roia as unhas de olhos no chão: ela se sentou novamente na beira da cama e lágrimas subiram aos olhos: caiu num choro transtornado, batendo nos joelhos e rangendo os dentes: diante dela, na tela preta, surgiu a imagem de uma mulher uns 20 anos mais velha que AF.: era como se a moça se olhasse num espelho, e visse a imagem da outra em seu lugar. A diferença é que mulher na tela está contra um fundo negro e veste uma bata branca simples: era bonita como AF. , mas como a outra também chorava, inconsolável.

            A moça congelou quando percebeu a mulher na tela: seu rosto perdeu cor e os dentes começaram a bater. Tremendo ela formou um X com os braços sobre o peito e cerrou os punhos, fazendo cara de espanto:

- ...mãe?!...
- ... fia... minha filha... sai daí... sai logo, filha, sai...
- ...
- ... sabe...: ele não tinha o direito de fazer aquilo comigo... Ele não tinha o direito!... o que seu pai me fez sofrer nessa vida... o que ele me fez sofrer não tá escrito...(choro) largou a gente, e eu não tinha nada, eu não tinha ninguém (choro)... você era pequena e não lembra: sorte sua... Seu pai foi um crápula!... Era o melhor homem do mundo... um menino... Meu amor, meu amor, onde for... O que foi que eu fiz? Hein? Por que ele não tá aqui?... ele não me quer mais... você é meu bebê, minha linda... Seu pai é um monstro... queria que ele voltasse. Ia ser como era... Você começou a ler com quatro anos! Linda... ele não me quer... cê terminou o que se tinha que fazer? Por que cê é enrolada assim?... Mas que roupa feia é essa... Por que você não põe a amarela?... ai filha, cê tá com cc... não fica bancando a oferecida, tá ouvindo?! Se dê ao respeito: sonsa! E cuidado com os moleques, não dá uma de uma de idiota...ficar grávida, só faltava essa... Seu vô foi mexer com garimpo uma época: ele voltava tão barbado, tão cabeludo que eu não reconhecia ele! Eu chorava, chorava... O pai tinha negócio meio triste... era triste o papai. O pai era triste.
- ...mãe, oh mã... por que que o pai foi embora?
- acho que foi culpa sua, meu anjo... tenho quase certeza, porque eu era tão bonita... o povo dizia, na rua tamém, a gente sente isso... Mas daí você apareceu... Não sei porquê você tinha que chegar. Pra quê?  Eu quis tanto você... por que cê roubou ele de mim?... Por que?! Por que!... Você é linda, meu amor, minha vida... Nunca vou deixar você sozinha, viu?... O papai é assim mesmo, estouradão!... papai é quietão... ele era tudo pra mim... Tava disposta a tudo... Disposta a tudo, ele sabia... É você. Ele preferia você. Só ficava em casa por sua causa: a culpa é sua. A culpa é sua...
- Minha culpa!? Cê tá delirando!... Não lembro?... claro que eu lembro! Você aí, toda santinha, sempre a última a saber de tudo..: ele nunca tava lá de verdade, cê não via?: sempre fechado num canto, sempre com um olha pra rua, sempre com uma mania nova. Ficava contornando a gente, contornando sair, não conversava, passava o domingo vendo TV e fumando, fumando, fumando!  
- Antes de você chegar era perfeito!... Ingratidão sua... Menina enjoada... Você sabe o que ele me jurou? Cê sabe?!... Eu não sabia quem eu era até ele me jurar aquilo... Daí eu soube: mas você tinha que vir... Você tinha que vir, entende?!... e ele me largou... não tem um dia que eu não sonhe (choro)... tem um punho que me aperta o peito... a culpa é...
- Cala a boca! Some! Escapa, escapa!
- ... Fia... oh filha... sai daí! Sai daí, fia! Não fica aí!
           
            AF. se ergueu e avançou com as duas mãos sobre a mulher na tela: seus braços atravessaram a projeção, que mudou novamente numa tela negra, oscilando num par de ondas concêntricas: a moça caiu de bruços sobre a bancada e depois deu um pulo pra trás, com cara de susto. Depois de ofegar um pouco seu rosto foi se contorcendo, até terminar numa gargalhada. Ela se deixou cair sobre os objetos na cama e continuou gargalhando: passado o riso esteve séria por um instante e, esfregando as lágrimas que lhe cobriam o rosto, se ergueu com ódio:

- Esses filha da puta! Como a gente vê um negócio desse?! Querem que eu fique louca?! Eu vou ligar pro P. e reclamar dessa bosta! Não é possível, puta que pariu! Puta que pariu!

            Na tela negra havia uma mensagem em caixa baixa, escrita em branco, que dizia:

“a Mental Screen telas mentais não se responsabiliza pelo uso indevido de seu Device. Conferir Art.69 do Código de Defesa do Consumidor on cláusula 25-P: Psychoactive Appliance

            Ela então sacou um celular de bolso e começou a discar um número freneticamente. Segundos depois se levantou e bateu com o celular no balcão, como se quisesse acertar a tela: a projeção ficou preta e o celular em pedaços: bufando ela apanhou uma calça jeans jogada pelo chão e a vestiu, enquanto tirava o roupão sobre a camiseta branca: em seguida colocou os óculos e se aproximou da janela, agora sem nenhuma cautela: H. e P. estavam recostados no veículo. B. estava voltado pra ela e falava muito, gesticulando: AF. estreitou os olhos e começou a sussurrar a leitura, mas antes que tivesse chance de falar uma voz eletrônica, de gênero indefinido, começou a dublar o que o marmanjo dizia. AF. sorriu:

-“... não, não, não, não: nem... chama Nanaê Nana naiana... Nanaê nana... que é? Vai ficar rindo, excelência? Cê tamém barbudo? Foda-se ué: é bonito que só a porra... Vózinha me ensinou, ela era da linha de Umbanda... Oxóssi espreitadô!... a história é bonita... a negra Nanaê tinha voz de anjo e cantava pra sinhazinha dormir. Mas se a sinhazinha acordasse de noite e a negra tivesse no batuque do canjerê, a sinhazinha chorava querendo Nanaê, e o senhor mandava dar chicotada na Nanaê... É, barbaridade isso aí... e se fosse sua mãe? Sua filha? Culto da gente... depois de grande a sinhazinha apanhou respeito pelos Orixás!... fez um povo forte... Cantá? Canto ué: mas se ri sento a quadrada no cês, o respeito!... Nanaê, nana naiana, Nanaê... Nanaê, nana naiana. Como mano e mana na jangana... como mano e mana na jangana, Nanaê...

            O aparelho silenciou a voz eletrônica e mais uma vez começou a tocar a canção, agora com voz clara e imponente de mulher:

- “...Nanaê...
Cantava pra sinhazinha dormir ao luê
Pra ir pra debaixo do pé de café
Fazer canjerê,Nanaê

Nanaê,Nanã,Naiana...

Se sinhazinha acordasse
Antes de Nanaê chegar e começasse a chorar
Senhor mandava amarrar Nanaê
E chibatar Nanaê ...”

- Foda-se. Foda-se... eu vou pra Padre B. Vou pra Padre B.!... Vou procurar a cooperativa de mulheres, uma fazenda comunal, as operárias da indústria de armas, a Milícia das Mães e Viúvas do cerco Dinamarco! MMVD!...

- “... Mas Nanaê,
Se incorporava de Nanã Buruquê
E não sentia a pancada doer
Nanaê...

Nanaê,Nanã,Naiana...

Sinhazinha ninada,embalada no cantar da negrotina Nanaê
Herdou todo o seu ser
Hoje em noite de luana é sinhazinha
Quem vai dançar na Mujungana,Nanaê

Nanaê,Nanã,Naiana...”

            Nisso as sirenes da viatura lá fora começaram a soar e a moça pediu silêncio à tela mental, que obedeceu: em seguida ela correu pra janela e abriu a cortina e o vidro: lá embaixo os três já estavam dentro do veículo e com motor ligado. H., que estava ao volante, acenou para AF. segurando um cigarro entre os lábios e com um sorriso amarelo. Os outros dois, entre apreensivos e excitados, olhavam pra ela também:

- À tout à l’heure, sinhazinha! – gritou o capitão: ela não se manifestou.

            Os três explodiram numa risada exagerada e partiram cantando pneus e buzinando: AF. esteve por um momento olhando a rua deserta. Fazia um silêncio absoluto. Súbito se ouviu uma explosão ao longe, e um suave coro de gritos que começou a vir de lá: dentro do quarto, as luzes e a projeção de tela se apagaram. Não se ouvia nada além do rumor dos gritos e o ranger de dentes de AF., que com dois saltos alcançou a porta do banheiro, sumindo lá dentro.





Jangana
Substantivo De Dois Gêneros
Indivíduo muito alto e desajeitado; Jangaz

Canjerê
Reunião de pessoas para rituais de religiões afro-brasileiras.

Lenda de Nana-Buruquê



Juízo Final:




Meu apelo:





Árvore queimada durante a filmagem:

Nanae Nana naiana

Juízo Final

Meu apelo







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