3 de jun. de 2011

Crônica Artificial 0.6




Esta que tá aqui atrás

            O escritório central do SNI funcionava num gigantesco galpão subterrâneo, 30 metros abaixo da superfície: as paredes em torno do fosso foram escavadas na pedra e reforçadas com escoras de concreto: canos de cobre saiam do paredão aqui e ali, minando filetes de água cristalina ou barrosa.

            No meio da vala circular, alguns metros depois da canaleta que recolhia a enxurrada dos canos, um conjunto de 100 mesas e cadeiras se distribuía de forma eqüidistante e quadrangular, com 10 linhas e 10 colunas de 10 mesas e carteiras cada: as mesas e cadeiras eram completamente negras, com tampos de vidro e estofamento discreto e anatômico: sobre as mesas, trapézios baixos e pretos inclinavam uma de suas faces na direção dos funcionários sentados: eram páginas de super-contraste preto e branco, com as proporções de uma folha de jornal.

No centro do grande quadrado, ocupando as posições E-5 e E-6, as XX, F. e L., voltavam para seus lugares trazendo copos brancos de plástico cheios de café: L. tomou seu lugar à esquerda de F. e suspirou, olhando pra cima: grandes lâmpadas fluorescentes de luz branca avançavam aos pares em linhas intermitentes sobre as mesas: (==========)
Nesse momento, o par de lâmpadas que iluminava o quadrante de L. oscilou emitindo cliques, e se apagou:

- Fran, olha isso: eu não devia nem ter saído de casa, sabia...
- Tsc tsc: é o inferno astral, linda. Mas logo acende, quer ver? – as duas se voltaram juntas para as lâmpadas e elas acenderam num flash.
- Viu? A única coisa que gosto nesse buraco é da iluminação, acho que me favorece!
- Prefiro a do banheiro, queria que a do alojamento fosse igual...
- Pra você qualquer luz vai bem, sua insuportável. - disse F. Ao que L. negou com a cabeça.

            Da fileira diante delas, no quadrante F-5, virou-se uma jovem de rosto conformado e cabelo curto e loiro: apoiando o peito no espaldar da cadeira, ela baixou o queixo sobre os braços cruzados e perguntou num suspiro forçado:

- E eu, Fran, que luz é boa pra mim?
- Luz negra! Ainda mais agora com você loira desse jeito.
- Que abusada! Mas eu não tô mais loira...
- Como não, C.! Não tá? – disse voltando-se pra L.
- Tá bem bonita: parece a santa J. dos matadouros...  E quanto deram pelo seu cabelo, Cá?
- 150 créditos...
-  Nossa, cê tá pensando em vender? Não faz isso, me arrependi demais... – disse F. ajeitando os cachos.
- Ai, vamo começa né gente, senão não acaba nunca!... – disse C. enquanto voltava pra posição anterior. - Luz negra...: cê vai ter que me explicar isso aí direito, dona flor!

            F. riu e tocou o lado direito da tela no trapézio: um retângulo branco surgiu e dentro deles alguns links ilegíveis e enormes se distribuíam em lista: F. pressionou um dos links com o polegar e o arrastou até a borda do enquadramento, fazendo-o desaparecer enquanto cerrava o punho:

- Psiu, C.: quer confete? Toma aí. – em seguida ela fez o gesto de quem atira alguma coisa na direção da amiga, que do seu lado agarrou o objeto invisível com a mão: na sequência, C. tocou o próprio trapézio e esperou, até que a imagem em preto e branco de um tipo barbado e de toga surgiu na tela.
- Fran, que foda! Eu via com a minha vó...
-...

            Enquanto isso L. já se movimentava intensamente, suando no uniforme negro: Todos ali vestem peças de algodão que descem folgadas sobre o peito e os ombros, e não têm mangas: já a parte de baixo se ajusta ao corpo, terminando num par de sapatilhas pretas.

A moça manuseava dados na tela em preto e branco: com o dedo médio da mão direita ia virando páginas, subindo e descendo a barra de rolagem enquanto ampliava, destacava e recortava os trechos lidos, com movimentos de pupila ou toques da outra mão. Vendo-a naquele ritmo frenético, F. pausou o registro em super-8 de uma parada militar que estava assistindo e comentou com a amiga:

- Você ficou boa nisso, hein. O que cê tá investigando essa semana?
- Ah, tudo! Todo o conteúdo de páginas pessoais do período pré-Hecatombe: tem umas palavras chave aqui pra catalogar o desenvolvimento de ideologias distópicas, digo, das utopias anti-ideológicas que alimentaram as lutas entre as Facções Principado e o Terror-Terror dos anos 80: que-cha-to! Cassete...
-...
- Você não fica com vontade de fazer o teste vocacional de novo, Fran?
- Ué, mas eu já passei no que eu queria: imagem e som. Precisava começar com as aulas de música, mas... É isso ou isso.
- Que inveja, eu não passei no que eu queria não... Estudei tanto pra aquele teste vocacional, que angustia.
- Mas o que você estudou? Foi análise textual e design ideológico, não?
- Isso, mas sempre quis narrativa corporal e estruturas simbólicas. Isso aqui é um negócio que faço bem, mas detesto...        
- Bom, então faz menos bem que cê tá me dando taquicardia! Relaxa, Lí, eles não têm pressa de concluir nada... Só de te consumir.
-...
- Eu também queria narrativa corporal... –suspirou C. lá da frente.- e tô aqui vendo  vídeo mexicano.
- Que é essencial pra nossa investigação, hein! Ascensão de movimentos neofascistas, o México dos anos 70, tá tudo ligado...- disse F. piscando o olho.

De repente ela olhou pra cima e ergueu a mão esquerda até a orelha, tapando-a com o indicador. Em seguida se levantou, ergueu a mão direita e acenou para uma grande janela de vidro que ficava lá adiante, dentro do paredão de rocha:

- Positivo? – disse F. se sentando e olhando pra tela. O indicador esquerdo continuava no ouvido:

- É claro que a nossa conversa é sobre o trabalho, você não sabe quanto!... Sei. Os índices você consegue checar daí, não? Que eu saiba fiquei entre as primeiras e... Comportamento disruptivo? Olha, desculpa: isso é conversa de eletricista. Eu realmente tenho que voltar pra análise até... Oi? Não, amiga, eu não “corro o risco de ser desligada” porque não sou torraderia... Ah? Cinismo? Você sabe o que é cinismo? Você sabe o inferno que o mundo tá por conta disso aí? Pois vá se informar do significado de cinismo antes de atirar isso na cara de alguém... Não, eu não vou aí, tenho que terminar a pesquisa e cumprir meu prazo de avaliação: se eu perco tempo, ganho desconto. Passo no seu escritório no final do período e... Olha, não vou. Não: aliás, se eu for aí agora vai ser pra discutir o caso Trier! Lembra? ... Alô?... (suspiro)... Ok. No final do período... Boa tarde. - e deixou a mão cair sobre o colo.  
- O que foi isso?
- Nem queira saber: picuinha, pequenos poderes...: aí, meu-eu, me dê paciência, porque se me der força eu mato!

            Nesse meio tempo C. havia se levantado e trouxe um copo de plástico branco cheio d’água:

- Bebe aí, Fran. Eu não peguei dos canos, viu? É do bebedouro.

            C. ainda de pé voltou-se para a própria tela e arrastou um link até o punho cerrado, unindo as palmas das mãos em seguida: colocando-se entre a mesa das duas amigas, ela abriu os braços e tocou ambos os trapézios ao mesmo tempo. Enquanto voltava para o lugar perguntou:

- Vocês sabem quem é essa mulher?

            Diante das duas surgiu a fotografia em preto e branco de uma mulher muito bonita, de traços latinos: F. e L. se entreolharam com cara de ? .

- É a P. Cruz. Lembra dela?
- Agora sim! Estudei esse diretor em Cannon I o... P. alguma coisa.
- Enfim: essa aí foi primeira atriz artificial post-mortem, lembram? Na época eles já tinham recurso à animação fotográfica, mas essa P. foi a primeira que, depois de morta, continuou trabalhando como persona de ficção: a atriz avatar!
- Credo, que horror, que coisa cafona... Jura que fizeram isso?- perguntou F.
- Me deu um arrepio... – disse L.

            F. e C. riram um pouco e depois calaram. Em seguida C. se virou pras duas mais uma vez e, sorrindo, perguntou:

- Mas cê sabe, Fran, tem uma moça lá da linha B que é a cara dessa P. Cruz: chega a dar medo.
- Jura? – perguntou L.
- Hum, hum. Só que eu não lembro se é a B-5 ou se é a B-6...
- Bom... - disse F. – Não sei, mas pra mim... é esta que tá aqui atrás.
- Qual?
- Esta que tá aqui atrás.
- Qual?
- Esta que tá aqui atrás.
- Qual?
- Esta que tá aqui atrás.
- Qual?
- Chega, C.!





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