28 de mai. de 2011

Crônica Artificial 0.2


H H

Era um dos escritórios simples da sobreloja, na embocadura da Avenida P.: o corretor engravatado sorria por trás da mesa, verificando as páginas grampeadas de um contrato: diante dele, outro engravatado de ar ansioso saca o celular do bolso para ver as horas:

-Celular de bolso!Tem anos que não vejo um desse aí: não tiraram de circulação, não?
-Tem quem goste dessa coisa vintage, né. É ainda mais caro que o...
-O senhor devia usar monóculo também, hein? Combina, pô! Brincadeira, brincadeira... Meu menino outro dia me perguntou se esses cels antigos aí tinham corrente pra prender no bolso... celular com corrente... de onde ele veio com essa?
-Molecada...
- Pois é... Estamos acertados, então? Muda Maiêutica: M.M.! O senhor nunca experimentou, não é verdade? É uma diversão super segura, viu: não causa dependência nem problema de saúde. Tem quem ache um inferno... Bom, mas o que é ruim pra um, pro outro é o que há, não é verdade?! Na minha área a gente precisa entender os gostos. Mas um aviso antes de eu entregar o comprimido pro senhor: a primeira visão externa de si mesmo é um choque: necessariamente. Precisa superar certos bloqueios pra gozar da experiência como se deve.
- …
- É bem diferente de ter um irmão gêmeo, não adianta se consolar por aí, é outra coisa e... assim, quando o senhor estiver lá, só consigo num ambiente hermeticamente isolado... bom... o senhor pode vir a sentir certa curiosidade...
- Mas eu deixei bem claro que a experiência não teria caráter sexual de nenhuma espécie, inclusive minha orientação não permitiria...
- Orientação? Que orientação? Por que essa conversa agora?
- Ué, você mesmo disse que...
- Mas o que foi que eu disse? Uma sugestão: volte aí algumas linhas e...: espera, espera, espera...- dizendo isso o corretor cobriu o olho esquerdo com a palma da mão, e começou a mover a outra vista da esquerda para direita. 
-Ah... ok. Ok. Já começamos! Fica tudo explicado, não?
- Mas você nem me deu o comprimido.
- Claro que sim, coisa de vinte minutos atrás, e antes disso expliquei os procedimentos e o senhor concordou com tudo... Continuo?
-...
- O senhor tomou o comprimido com um copo servido de água imantada e depois a gente foi até o vestiário (eu esperei do lado de fora, óbvio): o senhor trancou todas as suas coisas no armário e saiu de roupão apenas, carregando uma chave azul.
- Entendo. 
- Minha sócia do escritório do lado trouxe a maca e... aliás, já mencionei que ela é médica?
- Duas vezes.
- Imagina: a moça passou numa universidade pública e se formou sem ajuda financeira de ninguém. É de admirar. Ainda mais sendo a medicina uma profissão tão bonita, o senhor não acha? Já que estudou direito, como eu, o senhor sabe o quanto é difícil sem uma ajuda e...
-...
- Enfim, vossa excelência apagou e te deixamos na estufa espelhada, que é aquela sala em forma de cubo com 5 metros de lado, e todas as faces espelhadas. A iluminação vem das arestas, né: dos ângulos.   
- Não estou conseguindo lembrar por mim...: quando você conta me vem, mas antes disso não.
- Não tem problema porque o que eu tinha pra contar já acabou. Daqui pra frente a narração é sua: "bemamigosdaredeglobo"!

            O corretor tirou uma folha de papel sulfite da gaveta e estendeu para o cliente: as páginas estavam cobertas, frente e verso, com uma escrita cursiva, arredondada e infantil. Tudo a lápis.
- O que é isso? De quem é essa letra?
- Sua, mas o senhor preferiu escrever com a mão esquerda, né, não entendi bem por que. E sem ser canhoto ainda... o senhor é um tipo curioso mesmo! Mas ops, zip zip, não falo mais, pode ler: leia, leia, leia...

            O sujeito segurou a folha entre mãos e leu o trecho que se segue:

            Acordei com uma sensação estranha no topo da cabeça, e quando movi a mão na direção do desconforto encontrei os cabelos de outra pessoa, ao mesmo tempo em que alguém me tocava a lateral do crânio. Com o susto dei um salto na direção oposta: de pé e nu na pequena sala espelhada, vi-me frente a frente comigo mesmo de pé e nu na pequena sala espelhada. 

            A princípio cerramos os punhos e fechamos a cara: a visão dele me constrangeu muito porque sou peludo demais e andamos meio fora de forma. Ele pensou com desprezo o quão vaidoso você é e riu de si mesmo, coçando a barba. Em seguida encolhi a barriga, erguemos a cabeça, alinhando a espinha e, analisando daquela distância vi que você talvez não fosse de todo feio. Ele pensou que era sorte que ninguém te visse ali, e me senti tão envergonhado que fizemos uma dança com os quadris: a gordura nas coxas e na região do estômago vibraram de modo escandaloso e parei. Suspiramos. 

            Dei dois passos na minha direção: com ar desconfiado você percebeu que podia sentir o calor da pele e o hálito dele dali. Mesmo estando sem comer a algum tempo, ele não achou o cheiro de todo desagradável. Súbito os olhos desceram para a linha da cintura, tudo um eriçado de pêlos, a virilha escura: você já não me olhava nos olhos, o esfíncter se contraiu e a boca dele se encheu d'água. Senti um arrepio na região do escroto que se espalhou por sua genitália e entre nádegas. Veio-lhe uma sensação engraçada no estômago e rangemos os dentes. 

            Estendi o braço e toquei meu rosto, sentindo pinicar a face e a mão. Você deu um passo adiante e o segurou pela nuca, beijando-me nos lábios. Passados alguns segundos nos soltamos e suspirei: tivemos a sensação de beijar um braço dormente, ou um cadáver, ou o próprio irmão. O tesão foi me escapando pelos dedos até que você não sentisse nada. A frustração dele nos preencheu: você deu um passo na minha direção e ele te agarrou pelos cabelos: gritei.

            O estímulo, na verdade, era agradável até certo ponto, e você teve a idéia de nos enforcar, bloqueando o sangue que lhe chegava no cérebro. Puxei seu cabelo com mais força e ele continuou nos enforcando. Alguém me pisou no pé e você devolveu, golpeando-lhe a canela. A resposta veio na forma de uma bofetada da mão que segurava os cabelos: os olhos dele se encheram d'água e a garganta engrossou, antecipando o choro. Ele não pôde mais se conter e devolvemos mais dois ou três golpes, que fizeram o nariz sangrar: você se atracou com ele e caímos no chão, chorando.

            Ele teve muito dó de te ver daquele jeito, de cócoras num ângulo da sala, sangrando e chorando nu, com os cabelos em desalinho... Me deu vontade de gritar e efetivamente gritamos: ele, você e eu: teu, eu, seu, meu...  

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