27 de mai. de 2011

Crônica Artificial 0.1

Escola do Futuro


            M. e dezenas de outras crianças cantam e fazem arruaça, descendo a ribanceira de terra do conjunto habitacional P. Grande: elas vestem togas de algodão cru e sandálias de borracha preta: têm os cabelos raspados sobre as orelhas e a nuca, mas com o comprimento de um dedo no topo da cabeça: cada uma carrega uma prancheta de acrílico negra e resistente, com as proporções de uma folha A4.

            No final da ladeira cruza outra rua larga, também essa sem calçamento, e os pequenos têm de esperar a passagem de dois treminhões carregados de cana crua: as rodas passam rente às crianças, e têm quase quatro metros de diâmetro. 

           Do outro lado, a muralha de concreto que circunda a escola se ergue com cinco metros de altura: no topo delas estiram-se novelos de arame farpado e grandes lâmpadas acobreadas, de vapor de sódio, que estavam acesas em pleno dia por conta do céu encoberto.

            Ao se aproximar dos portões de ferro algumas crianças se abraçavam em despedidas, outras riam e trocavam sopapos, colocando um pé ora dentro, ora fora dos limites da escola: as que finalmente cruzavam o portão apertavam suas pranchetas contra o peito e amuavam, silenciando imediatamente: M. abraçou forte uma colega de classe e beijou-a perto dos lábios: em seguida entraram de braços dados no pátio do colégio. Bastaram alguns passos para que as duas baixassem o queixo quase até o peito e soltassem as mãos, movendo-se pra direções opostas: o pátio era um enorme espaço quadrangular e concretado: do alto dos postes de luz, harmonizadores enferrujados em forma de cone zumbiam numa freqüência baixa e nauseante: as crianças se moviam devagar: em silêncio. Algumas recostavam na parede, outras se encaravam com um sorriso abobado, imitando os gestos umas das outras.


            M. ouviu o estampido de uma gargalhada e se voltou para o barulho, que calou num soluço: um grupo de três meninos olhava com sorriso embasbacado outro rapaz, grandalhão, que não conseguia mover a perna esquerda ou braço direito. Com a mão que ainda funcionava ele tentava alcançar uma espécie de tiara de latão, que lhe envolvia a testa, mas a cada tentativa se contorcia todo, rebolando de modo involuntário:


- Castigo...- sussurrou M. com voz narcotizada, e balançou a cabeça em negativo muito lentamente.


            Uma sirene de fábrica soou, e os alunos iniciaram uma formação no centro do pátio: o grandão com a tiara de lata, ao passar pelos meninos que riam dele, deu-lhes ombradas e pisões no pé.


             Duas serventes de avental branco e tiara dourada organizavam as filas, empurrando as crianças para as posições, dando-lhes ordens curtas e firmes: M., por coincidência, foi colocada ao lado de sua amiga: de olhos baixos e forçando um sorriso ela encostou o ombro na companheira, que tentou sorrir também:


- Pri, pri, pri,pri... – sussurrou M. entre dentes.


              Fileiras de quatro alunos avançavam prédio adentro a passo regular: os corredores eram todos em concreto, com paredes nuas e iluminação branca. No batente das portas números, de 1 a 8 piscavam em vermelho, e crianças da mesma idade iam entrando nas salas liberadas: P. e M. dobraram à direita, entrando na sala número 4, que instantes depois atingiu sua cota e se trancou automaticamente: assim que a porta bateu o ruído do harmonizador cessou e as crianças voltaram ao normal, rindo e se cumprimentando.


               A sala tinha grandes janelas gradeadas, que mostravam um morro coberto de casebres de alvenaria. Ali dentro, seis fileiras de bancos de pedra, para dois alunos cada, se voltavam para uma grande tela branca: no topo da tela, um farol vermelho com as feições de uma íris oscilava, acendendo e apagando numa batida regular:


- Fundão, fundão!- disse M. passando o braço por sobre o ombro da amiga e puxando para o último banco: no caminho ia empurrando as outras crianças. Quando as duas se ajeitaram na última carteira, do lado da janela, P. se voltou para M. com ar espantado e disse:

- Má! Preciso te contar, o...

               Então a sirene de fábrica soou mais uma vez: os vidros da janela escureceram gradualmente e a luz branca também diminuiu, enquanto o olho vermelho parou de piscar, assumindo uma coloração viva: o rumor do harmonizador ocupou o ambiente mais uma vez e as crianças calaram, engasgando nas últimas palavras que diziam: uma voz robótica e feminina saiu dos alto-falantes espalhados pela classe num tom excessivamente maternal:

- Bom dia, quarta série...
- Bom dia, orientadora...
- Classe, vamos dar outro bom dia, agora bem forte, pra coleguinha M., porque parece que ela esqueceu como tratar os amiguinhos em sala de aula. Vamos lá? Bom dia, M...
- Bom dia, M.! – rugiu a classe. Pouco antes de gritarem, a freqüência do harmonizador se intensificou subitamente, excitando os ânimos. De repente todos estavam sussurrando e olhando para trás, com gestos acelerados: P. se encolheu na bancada e M. fechou a cara, desafiando os colegas. A orientadora continuou:

- Agora um bom dia forte pra P. também, porque elas são a dupla dinâmica, não é verdade? Bom dia, P.
- Bom dia P.!- urrou a classe, explodindo numa gargalhada ruidosa. No auge da algazarra, porém, a freqüência do harmonizador caiu vertiginosamente, sufocando a grita das crianças.
- Ok, no more distractions! Take your blackpads and... M.?
M. se sentou ereta na bancada, com os braços ao longo do corpo: ela ergueu o rosto na direção da orientadora e arreganhou os dentes num sorriso. Os olhos também estavam arregalados: ao seu lado, com a expressão sonolenta imposta pelo harmonizador, P. segurou a mão de M. e balbuciou com dificuldade:

- Não, Má, não...
- O que é isso? – perguntou a voz eletrônica em tom de ameaça – What do you think you’re doing?
- I-am-the-ha-ppi-est-girrrl…- enquanto lutava para dizer as palavras, os vidros da janela enegreceram totalmente, e as lâmpadas brancas intensificaram seu brilho.
- Calada, M. Coloque as mãos sobre a carteira...
A freqüência surda desceu a níveis nauseantes: alguns estudantes começaram a gemer, com a testa na laje e as mãos sobre a nuca. Por debaixo da mesa, M. apertava com força a mão de P., que colara o rosto ao blackpad, chorando de olhos fechados: a luz branca agora cegava com um clarão.

- M.P.M.S., último aviso: put your hands on the bench and shut your mouth!

           O rosto da garota tremia todo, com os olhos e os lábios arreganhados: como o maxilar estivesse travado, ela balbuciou por detrás dos dentes:

- Eu-sou-a...

            A porta da classe se abriu num supetão e o harmonizador cessou de emitir: as janelas clarearam e a luz voltou ao normal: duas serventes de avental e tiara dourada entram a passo rápido, ordenando que as crianças se calassem:

-M.P.? – perguntou uma delas engrossando a voz.
- P., solta minha mão, please...- sussurrou M. para amiga.- E, viu, cê vai lá em casa hoje de tarde? Minha mãe comprou uma I.A., cê acredita? Tem GTA e M. Bros. na memória.
- M.P.! – repetiu a mulher.
- Presidente, servente!

            As crianças, então, explodiram num riso desbragado: e começaram a bater os pés no chão e as mãos na carteira, gritando em cadência:

-Má, má, má, má, má, má!...


3 comentários:

  1. E tocou a sirene da fábric...ops, escola!

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  2. Muito bom meus parabens.
    Achei muito interresente se vc me permite
    que copiar e mandar por email a alguns dos meus colegas.
    Bom manda a resposta por sua irmã Sabrina obrigado

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  3. Ei, fique a vontade pra mandar! isso está solto por aí...

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