Arquivo
Humano
[Impromptu]
No
alto do prédio do Arquivo Humano, o
jovem O. Luan de Freud apoiava a
testa contra o vidro do ateliê, observando o pôr-do-sol com expressão furiosa.
Na mão direita, um copo de uísque tilintava, movendo-se no gesto circular que o
punho fazia. Diante dele, por conta da grande altitude em que se encontra a Cidade Suspensa de F., a parede transparente revela um horizonte imenso por sobre as nuvens. Grande extensão de terra
visível, que cobriria mesmo um dos gomos do mundo, se o mundo fosse uma
tangerina. Nisso o rosto do rapaz serenou, e ele passou a ponta dos dedos sobre
o ouvido, tirando dali os longos cabelos negros. Segurando uma das mexas diante
de si notou, com um suspiro, um fio de cabelo branco, e o arrancou num gesto
brusco.
Voltando-se
para dentro O. deu com o amplo
estúdio em concreto, que parecia iluminado
pelas chamas. A tal parede de vidro, que tomava toda uma ala do salão, àquela
hora ficava vermelha como brasa, borrifando um brilho rubro sobre os objetos. A
poltrona, o divã, a escrivaninha
antiquada, abarrotada de livros, o balcão de trabalho com as tintas e pincéis.
Mas o olhar de Freud evitava um ponto
específico do lugar, fugindo à visão de uma grande tela, alguns passos à sua
esquerda. Olhando para o chão com os olhos fechados e engolindo em seco, O. deu um gole na bebida e se voltou bruscamente
para o quadro, arregalando os olhos. Boa parte da pintura era uma representação
do espaço sideral, polvilhado de estrelas, que eram, na verdade, minúsculas galáxias, cada qual com sua
cor e formato. Mas no centro da ilustração, emergindo do abismo, um monstro
balofo e disforme, com quatro pares de patas, se curvava no vácuo, expelindo
pela traseira uma espiral de matéria
leitosa. A imagem era perturbadora. Freud
se aproximou da tela com expressão sofrida, como se fosse um estranho que a
visse pela primeira vez. Ele toma outro gole e continua observando, em silêncio.
As emoções vão se sucedendo em seu rosto, em transições que vinha sempre depois
de um gole: agora apreensivo, depois frustrado, então raivoso, e por fim feliz. O copo estava vazio. O.
colocou-o sobre um móvel, cruzou os braços e deu uma gargalhada longa, inclinando
o tronco para trás, como um vilão histérico. Seus olhos brilhavam, vertendo um
par solitário de lágrimas de riso, que limpou com a ponta dos dedos:
- Xangô, meu
rei, me salva. Imagina eu apresentando meu cosmos
lá na Convenção de HQ? Aqueles nerds vão me devorar vivo… O que
é que eu vou dizer disso?
Freud apanha a garrafa acobreada sobre o
balcão e se serve de mais. Enquanto bebe um gole lento, olha mais uma vez para
o monstro sideral:
- Ah, eu vou dizer que els habitam nuvens de
hidrogênio... [risos] Bicho, que vergonha… Mas
vou dizer que elas habitam as imensas nuvens de gás lá, no infinito! Que elas absorvem daí tudo que é preciso pra
minha ficção funcionar [gole - exaltado].
Mas por que Isso tem tantas mãos e o
corpo rasurado e tosco desse jeito? Eles vão perguntar, e eu vou responder:
porque é um tardígrado! Um urso d’água dotado de linguagem, modificado
pra sobreviver de forma independente nas fronteiras do universo! [risos
- gole]
E como Isso faz pra comer, pra se locomover, pra se reproduzir no vácuo? Que
bobagem... Aí, eu respondo: bobagem não! Eles
se propalam no vácuo emitindo gás pelo ânus… [gole]
Elas também produzem teias super resistentes... E casulos! Gigantescos
cocoons, lá dentro os pequenos são
criados e aprendem as coisas... Tá
bom pra ti, nerd?! [risos - gole] Mas se só tem hidrogênio na parada, lá nas
nuvens de hidrogênio, como é que esses bichos vão se alimentar? Vão formar o
corpo a partir do quê, de que comida? Perguntam lá na Comissão de Quadrinhos, e aí vou responder: olha, nesse momento
vocês precisam ter um pouco de boa-fé,
meus queridos nerds, por favor... Tão vendo essa esfera translúcida na cabeça do tardígrado?
Esse círculo perfeito, onde se vê o córtex flamejante e o par d’olhos flutuantes da criatura? Então,
ali dentro tem uma nano-estrela,
estrela minúscula que, a partir do hidrogênio, sintetiza materiais mais
complexos. Uma usina de fusão nuclear na
cabeça. [risos] Sabe aquela música
antiga?
You’re a shooting star, I
see. A vision of ecstasy...
[tu és uma
estrela-candente, eu vejo. pura visão do desejo...] [gole súbito - continua exaltado]
- Uma usina
dentro da cabeça?! Ai, que merda,
pintor. Que bosta de ideia essa aí... [joga-se sobre o divã] Tu
pirou, parceiro? Tá loco, mano? Enlouquecesse, foi? Tás tolo? [fechando os olhos e balançando a cabeça
com um sorriso] É que, querides,
quem trabalha com cultura, quem chupa do universo esse caldo infinito!;
a gente transforma essa cultura,
praticamente, num mistério pra nós...
O mistério da cultura nas nossas vidas,
não é verdade? [baixando
os olhos, expressão aborrecida] Por mistério a gente quer dizer uma atividade que se faz com fé, tipo, puta que pariu...
Deixando
a mão cair ao longo do corpo, O. deu
com uma argola de prata finíssima, que estava ali no chão, e a levantou diante
dos olhos:
- Uma tiara de
prata, isso sim... Voyage, voyage, sur
l'eau sacrée d'un fleuve indien... Et jamais ne revient. [viajar, viajar, sobre as
águas sagradas de um rio indiano... e nunca voltar [todo ano]] Nossa, será que mergulho na Dip Web doidão desse jeito?... [suspiro]
É até melhor. Esse negócio de navegar
dormindo ao mesmo tempo é muito louco, só dá trapalhada, ninguém se
acostumou com isso ainda não. E teve aquele cara que mergulhou e nunca
mais voltou... Mas vamos lá [colocando a tiara na cabeça],
é só assumir posição relaxada, mãos e pés livres... [inspira
fundo]
Agora, de olhos semicerrados preciso olhar pra um ponto fixo que se encontra
exatamente na ponta do meu nariz...
Isso, apareceu a estrela azul contra
um fundo negro, a voz do Envoy tá perguntando o password, eu respondo em voz alta: Estrelanus-Lazuli. E aí é só... [ronco]
This is the sound of my soul
[som d’alma]
Freud
se viu num amplo estádio de pedra,
cujas escadas convergiam pra uma arena circular, coberta de água até as
canelas. Lá no alto, o sol do meio-dia
alinhava-se com todas coisas, e a sombra de O. desapareceu debaixo dele, como um círculo negro na água. O
estádio parecia estar completamente vazio, não fosse um imponente Cavalo Branco, que se encontrava no
outro extremo do palco, e olhava para O.
com a cabeça levemente inclinada, como que se perguntando o que aquele homem
fazia ali. Os dois caminharam em direção um ao outro, Freud não conseguia conter o sorriso ao ver tão lindo alazão cortando as águas numa
passada elegante, como se fosse o dono do mundo. Que lindos os cavalinhos, o deus-escravo da humanidade! Pensou, mas
nada disse, com medo de espantar o animal.
Ambos
se aproximaram com confiança, e O.
estendeu a mão para tocar o rosto do bicho, que afastou a cabeça, fazendo um
gesto de negativo. Qual não foi a surpresa de Freud quando o cavalo falou,
só que não falou no idioma do moço, e sim numa linguagem especial de cavalos,
com relinchos, guinchos, toques de pata no chão, sopro entre os lábios e pelas
grandes narinas. Apesar disso, O.
compreendeu a linguagem do cavalo sem dificuldades, e se espantou profundamente
quando percebeu que era capaz até mesmo de responder:
- Quem és tu? Onde
moras? - perguntou o animal olhando-o nos olhos à maneira
dos cavalos, ora com a vista direita, ora com a esquerda:
- Eu sou o O.,
mas não moro aqui não. Parece que ninguém mora aqui... - respondeu Freud em língua de cavalo.
- É bem verdade,
que desperdício obsceno... Mas tu és
bem observador para um estúpido yahoo,
como pode? Pois não tiveste medo, vontade de fugir de mim?
- Não, não tive não senhor.
- Houyhnhnms!
Houyhnhnms! Houyhnhnms!
- urrou o cavalo erguendo-se sobre as patas traseiras. Ao que Freud não esboçou reação:
- O senhor está bem?
- Hunf, qualquer
outro yahoo já estaria gritando e
correndo, mas tu não.
- Sou um grande apreciador da tua gente, amigo, venho
em paz.
- Sei, agradeço
a cortesia e me desculpe pela cena... [bate com o casco duas
vezes] Mas
essa arena não foi construída por nós, Houyhnhnms,
não, nunca. Isso é um palco dos divertimentos sujos dos yahoos. Gostaria de sair daqui...
- Eu também amigo, eu também gostaria de... Mas o que
é aquilo voando lá no céu, meu senhor? Aquilo vem nessa direção atravessando as nuvens, parece um
helicóptero, mas, não pode ser, não, que horror, o horror... Mas aquilo é um Mosquito Gigante?! [ambos
arrepiam-se de cima abaixo]
- Não é coisa
que se veja todo dia, não é, yahoo? Só que aquilo não é um mosquitão, como tu
disseste, mas sim o Anjo da Morte, que vai passar pela Cidade sem nos beijar.
- Puxa, eu não saí de casa pra ver Anjo da Morte nenhum não, bicho, que bad...
- Como assim? Tu
não sabias que a Cidade toda ia ficar sem Água? Teria sido uma Grande Tragédia, os antigos alertaram, mas por sorte não aconteceu. O Anjo da Morte apenas passou por nós, sem nos beijar com seu proboscídeo sangrento...
E agora lá vai ele lá, olha, voando embora trás dos montes, hunf, vá de
retro...
- Esse barulho de pernilongo me enlouquece... [abaixa-se
e cobre a cabeça com as mãos]
- Pronto, aquilo
já foi, yahoo. Mas precisa tudo
isso? Vocês primitivos são uns ouvidos fracos mesmo, pois aquele mosquitão não
me assusta nem um pouco, ele que venha aqui embaixo! Hunf...
- Preciso tirar a gente daqui... O senhor gostaria de
uma manga madura?
- Tu tens uma
manga aí?!
- Não. Mas penso que lá fora pode ter. Venha, senhor,
me siga, por favor, eu vou abrir a cancela e a gente sai desse lugar. O senhor
vem? Isso... Agora cuidado com o degrau pra sair da água: pronto. Por aqui, a
gente atravessa e túnel e desce aquela rampa. Mas diga lá, o senhor, seu Houyhnhnms, prefere manga, sal ou espiga
de milho?
- Puxa, aí tu me pegaste, yahoo, depende muito do clima, sabe. Mas o desejo tem que estar
sempre afinado com as necessidades, pois um dos pilares da Sociedade Equina é uma dieta equilibrada.
- [declamando] “Não
há melhor comida, casa ou cama que a nossa grama, que a nossa grama.”
- Ah, então tu
conheces nossa poesia! Que ladino és, yahoo,
o mais brilhante que já vi. Admiro-te.
- Muito obrigado, meu senhor! Mas veja, estamos
chegando na saída do túnel. Por favor, vá na frente, mas... Não, espera, melhor
eu ir na frente, não é verdade?
- Sim, prefiro
que os yahoos fiquem na minha
frente, se não se importa. Posso ter um reflexo e coicear, não sei. Nós Houyhnhnms
temos muita energia, sabe?
- Bem sei, meu senhor, então eu vou na frente, licença... [correndo]
O
estádio era rodeado por um grande gramado,
com um par de quilômetros de extensão. Nas bordas, quando acabava o capim, uma
grande floresta tropical circundava
tudo como uma muralha. O. continuou
correndo pela grama ensolarada com um sorriso no rosto, sem ofegar ou diminuir
o passo, pois dentro da Dip Web as
pessoas são projeções e não se
cansam. Nisso o grande Cavalo Branco emparelhou com o moço na corrida
e, voltando-se pra ele perguntou:
- Bom, yahoo O., e agora, onde está minha manga?
- Vamos primeiro chegar até as raias do campo, na boca
da mata, meu senhor. Tenho certeza de que lá vamos encontrar manga que lhe
agrade... Ah, como é bom correr assim!
- Hunf, correr é
até bom, mas também não é tão bom assim, a gente faz isso toda hora. Vocês yahoos é que são uns abobados, tentando
galopar com essas patinhas pequenas, moles...
- [rindo] Sem
dúvida, meu senhor, sem dúvida! Olha, chegamos na mata, mas... Tu enxergas
algum fruto, senhor? Sentes o cheiro de algo?
- Nada, só
farejo bugios, aranhas e cocô de yahoo...
Tu me prometeste uma manga, onde está?!
- Mil desculpas, meu senhor, achei que a sorte iria
nos ajudar mas parece que, dessa vez, ela não ajudou.
- Hunf! É
isso que dá dar trela a yahoo... [bufa
- bate com o casco na grama três vezes]
Então, vou me embora, adeus. Ah, e tu deves voltar pra o centro, yahoo, aqui não é lugar pra ti, e a
noite cai depressa por esses lados. Fui-me!
Disse o Cavalo Branco saltando por uma trilha pra
dentro da mata. Freud fez menção de
acompanhá-lo, dando um grande salto naquela direção, mas se conteve, porque
aquela não era uma mata ordinária: ela
mudava de forma. Os galhos cresciam, virando tentáculos, serpentes e vermes,
enquanto as folhas mudavam em rostos de animais, olhos gigantes, insetos.
Pássaros pousavam e se transformavam em frutas, que caiam mudando em lagartos e
roedores. Tudo numa profusão estarrecedora e repugnante. Por isso O. recuou um tanto contrariado,
dizendo:
- Ah, vá cagar,
cavalo... - e correu de volta para o centro.
Nous
Mourrons Tous Inconnus
[nós
morreremos todos desconhecidos]
- Eita, vida danificada!
Essa vida nossa está com defeito, viu... - resmungou O. Luan de Freud enquanto
corria nu, no gramado, no meio da noite. O céu ainda estava entre o violeta e o negro, e apenas as estrelas mais brilhantes despontavam com
intensidade. Lá na frente, colado ao horizonte, o Cruzeiro do Sul apontava para a grande construção às escuras de
onde saíra com o cavalo, e Freud
engoliu em seco quando parou diante do portal:
- Cheguei, mas não sei se quero entrar aí não, que
breu... Olha, acendeu um letreiro luminoso no topo da entrada, o que diz? O mais medíocre dos homens julga-se um
semideus diante das mulheres... Que estranho, eu hein.
Em
seguida um foco de luz acendeu no fim
do longo corredor, bem no centro da arena,
e iluminava o grande Cavalo Branco,
que esperava batendo as patas dianteiras na água e agitando a crina contra o
vento. O. teve uma excitação súbita
e, sorrindo, correu na direção do cavalo, corredor adentro. Qual não foi sua
surpresa quando todas as luzes se apagaram e, cruzando os braços sobre o peito,
rangeu os dentes na escuridão. Um instante depois luzes se acenderam, mas Freud já não estava mais nos corredores
da arena alagada, e sim nos
subterrâneos de uma estação de metrô.
O. respirou fundo e olhou em redor mais
uma vez, já não estava mais nu, mas ainda assim não se sentia confortável. Olhou
para baixo, para si, apalpando o próprio corpo, e não pôde reconhece-lo. Vestia
um par de chinelas de dedo e uns shorts jeans, que julgou curtos demais. Tocando
o próprio peito, súbito, lhe veio a consciência do que havia acontecido, e seu
olhos arregalaram. Antes, porém, que tivesse tempo pra formular pra si mesmo,
uma voz de mulher gritou por ele do alto de um lance de escadas concreto, no
fim do corredor emborrachado. Dizia a voz:
- Oh, Freud!
Vem aqui, meu nego. Vem ati...
- Mas tu és... [engasga-tosse]
Mas tu és o Peri, não é verdade? O
cavalinho corredor de agora pouco?
- Eu mesma! Meu bem, eu preciso que ocê saia daí pra
gente conversar, eu não posso descer no metrô não, senão eu mudo de forma, meu
amor... Sou amiga de Leaju, de L., de M., do...
- Eu sei quem tu és, tranquilo, só não acredito que tu
fizeste isso comigo, bi, me transformar em...
- Vem aqui fora!
- Tô indo, pronto. Mas, Peri, tu és uma guria?!...
- E tu também! Aqui na Dip Web a gente se monta no completo, bem, a gente pode ser outra e
de boa... Mas vem, sobe, sobe, olha como a rua tá cheia aqui na Ilha: é carnaval!
- Carnaval na Ilha?
[subindo]
Mas é a ilha da superfície, correto?
- Sim, claro que é a ilha da superfície, onde mais? Tô
aqui de visita, venho quase todo ano. E aí? Me dá um abraço, querida, as
meninas falam d’ocê toda hora, fiquei
curiosa demais pra te conhecer. Ah, e obrigado pela paciência, quer dizer,
passar por tudo isso só pra gente poder se encontrar aqui. Espero que meu sonho
não tenha te broxado muito.
- Pois é, tu és complicada de encontrar, hein? Mas foi
tudo bem, teu sonho foi bem interessante. Tu lembras de alguma coisa que
aconteceu agora pouco?
- Lembro de nada, não sou boa pra lembrar de sonho. Mas
se ocê me contar eu vou saber.
- Depois eu conto então. [olhando
em redor] Veja só, então aqui não é a ilha de F., ao
invés é a ilha lá da superfície.
- Exato, mas é a ilha da superfície da minha época.
Porque eu sou de uma outra época, ocê sabe, num sabe?
- Sim, claro, as meninas me alertaram: o Peri é de outra época. Sei, sei. Mas
pra mim é até bom, o XXI não me
desagrada não, e pra mim é uma chance de aprender umas coisas, reparar no que
não vi... Ah, o cheiro de mar! Areia na calçada de pedra, o vento batendo na
folha das árvores. Tu sabes que fico anos
sem ver isso? A gente só vê natureza estrangulada lá no centro. E pra que lado
é o mar?
- Seria pra lá, lá na esquina, mas hoje não tem mar
porque não fiz o mar, bi, desculpa.
É que fiz tudo meio Impromptu, sabe? De Improviso. [risos]
- Tem nada, Peri.
Pois todo o resto tá tão bem feito, tão bom. Então tu e eu somos pessoas do
sexo feminino então.
- Sim, ocê se parece muito com uma amiga minha, uma
moça ágil, poranga, de espírito
aventureiro.
- E tu te pareces com quem, Peri, já que tu também não és tu mesma aqui na Dip?
- Pareço com uma outra amiga minha também, só que essa
tem um ar mais intelectual e contemplativo. De propósito ela não é indígena
como eu, mas se ocê procurar bem vai encontrar traços profundos né... Olha aqui
nós duas refletidas na janela do carro: ocê tem o cabelo anelado! Sei que na
vida real, na verdade, teu cabelo é escorrido, comprido, preto. O meu também
é.
- [mexendo nos cabelos diante do vidro]
Eu fazia isso quando era adolescente, vir aqui com persona feminina e era
maravilhoso, engraçadíssimo, mas depois parei, não sei porquê...
- Vem, vamos tirar uma foto nesse vidro de carro,
olha, uma foto na praia! [passa a mão sobre o ombro de Freud -
enquadram-se no reflexo na janela - sorriem] Pronto, ficou linda,
obrigado por viver seu passado comigo de novo, cara, sei o trabalho que dá.
- Que nada, tá tão bom aqui...
Pelo
outro lado da rua, no canteiro central, um grupo de caras, vestidos para a
praia e o carnaval, se aproximavam carregando latas de cerveja. Subitamente
começaram a fazer uma arruaça, gritando e se empurrando, e foram vindo para o
meio da rua, pra perto de onde as moças estavam:
- Hum, olha elas! Tão sozinhas? Tá sozinha? [aproximando-se
e fechando a roda] Mas que delicia essa vietcongue aqui,
você não usa calcinha não, você usa porta joia. [risos]
- Tu é sempre assim ou tá fantasiada de gostosa, loira?
Vem aqui, princesa, me dá um beijo aqui, tenho uma coisa pra você segurar... [risos
- encurralam as duas contra a parede]
- E aí, Peri?
E agora? Não quero saber disso não, bicho...
- Claro, desculpa
Freud, culpa minha. É que eles estão
programados pra fazer isso. É só estalar o dedo perto do ouvido deles que
eles ficam hipnotizados que nem frango, olha isso. [estala
o dedo e um dos rapazes arregala os olhos, olhando pro alto - repetem o
processo com todos]
- Hum, tu és cheia de cenas, não, Peri? E agora.
- Agora é só mandar cagar: vá cagar.
Nisso
os homens dispersaram, cada qual pra um lado: dois saíram de mãos, dois
abraçados, e uma dupla correu, disparando para cada lado em grande velocidade:
- Allora, mister
Freud, a nossa conversa vai ser num ponto de ônibus aqui do centro, porque
ali naquele ponto a calçada recua
pra dentro do terreno, como se fosse o estuário
de um rio... Mas esse ponto de ônibus fica na frente de um templo feio, só
pra situar quem já esteve aqui na ilha.
- Eu nunca estive, mas deve ter mudado muito nesses
anos todos... E onde é o tal ponto, esse templo feio aí, tu disseste que a
calçada recua ali que num rio? Tua louca. [risos - andando]
- A gente tenta né, e ficar louco nesse mundo é fácil,
é só deixar rolar... Mas é logo aqui em frente, O., depois desse paredão de prédios, o famoso: Paredão.
- Nossa, mas porque faziam os prédios tudo coladinho
um no outro desse jeito?
- Assim um prédio aproveita a parede do vizinho e fica
mais barato de construir. Seria uma questão energética, não é?
- Energética, Peri?
Mas olha isso, é uma parede contínua que não deixa os elementos circularem.
Criou esse corredor estreito, esse túnel de vento, que deve ser congelante no
inverno e um forno no verão.
- Exato, Freud!
Aqui na ilha as coisas vão acontecendo umas em cima das outras e a gente vai
tentando se adaptar. Construindo o nosso inferninho né, corredores de vento, a
destruição do mangue, o esgoto no mar, a derrubada de prédios históricos na maior e... Ali o ponto! Mas já te
aviso que tem um cara ali, esperando o ônibus, que ocê conhece muito bem...
- ...
Arte dei Tagliapietra
[cortapedra]
Ali,
um pouco depois do poste, a calçada recuava para dentro do terreno, formando uma
espécie de seio ou de sino, que era o tal estuário na rua, referido
por Peri. Ao se aproximar do ponto de
ônibus que estava ali, diante do templo feio, as moças tomaram um susto e
deram-se os braços, cobrindo o rosto pra não rir. É que sentando, esperando com
as mãos nos joelhos, estava um rapaz que não era ninguém menos senão o próprio O.
Luan de Freud, melhor dizendo, uma projeção exata do moço, desenhada por Peri. Elas passaram diante dele, que
ergueu um olhar desconfiado, apenas num relance, e em seguida voltou aos
próprios pensamentos, de bot computacional.
As moças riram:
- Cara, o que é isso?! Sou eu mesmo, olha: é ela, é
ela!
- Shhhh... [sussurrando] Não
dá pala, bi, tem umas palavras-chave que fazem ele se aborrecer, digo, ocê se
aborrecer né [risos]. É só não abusar que ele
fica ali, não espanta o...
- Não acredito que tu fizeste isso, bicho. Olha só ele...
- [tosse - tosse]
- Quer dizer, ela
né, ela é igualzinha a mim, tu tens mãos de fada pra desenhar esse povo, Peri.
- Que isso, são seus olhos, mona... [risos] [gritando]
Ah, mas ela se acha a pura né! A santa!
- Ela quem?
- Como quem? A fulana, bem... [apontando]
- Ah, sim, claro. Ela se acha o último pacote de
bolacha. [risos]
- Não é assim bi, é ao contrário, é o último biscoito
do pacote. [tosse] Mas ela, essa daí, ela
não vale nada. Trabalha de graça! Quem ela pensa que ela é? Todo mundo se fodendo,
lutando que nem doido pra se manter, e ela fica fazendo a louca? Dando os
trabalhos de graça? Que raiva, que desprezo por essa idiota, sua idiota. Na verdade, eu tenho dó
disso aí, sabia?
- [sussurrando]
Peri, é bom tu parar, parece que eu, que ele tomou as dores pelo que tu estás
falando aí...
- Oi? Não esquenta com ela não, isso aí não faz nada
pra ninguém, coisa nenhuma. Ela não fala nada, ela não tenta nada. Nada,
nada... O apelido dela é Quase-Nada,
que nem o vilão do seriado mexicano.
- Pê, agora
eu fiquei nervoso, olha lá, porque tu não paras com isso?
- Ocê não entende, Freud?
Ela é um escravo. Um escravo, um escravo bugre. Indiazinha...
- !!!
Nisso
o bot se levantou do ponto gritando
palavrões e voltou pelo mesmo caminho por onde as moças vieram. Passando por
uma garrafa, chutou-a longe:
- Nossa, que nervosinho que eu sou hein, Peri, e que vândalo. Por que o programa chutou a garrafa daquele jeito?
Eu não faria isso não.
- Claro que não, ocê não faria isso, Freud, eu sei... [fecha
os olhos] Não
consigo modificar-me... É o que mais me aflige.
- É foda...
Obrigado mesmo pela demonstração, jogador.
Só que tu sabes que todo mundo passa por merdas assim na vida, então não sei
bem o que te dizer... [suspiro - silêncio]
Mas e aí, como andam as coisas aqui na superfície, mano? Tirando essas orgias
sem tesão aí né. [risos]
- Ah, vai tudo diminuindo
por aqui, a gente sente no ar... Acho que por isso eu tenho me sentido muito impelido
pro passado, sabe, empurrado pro passado. Todo mundo aqui tá se sentindo
assim, só que ninguém quer voltar pra aquilo não.
- Tu dizes que o pessoal não quer voltar pra onde, Peri?
- Voltar pro passado.
- Até porquê é impossível voltar no tempo né. Só é
possível voltar no tempo assim, quando tu desenhas um programinha e a gente
entra pra ver.
- Mas tem um outro jeito também, de voltar, sabe, Freud, e eu vou ter que tentar. Não dá
mais pra adiar isso.
- E a escrita, como anda, Peri? Tu andas escrevendo ou o quê.
- Sim, tô escrevendo nesse momento, aliás, uma
história muito boa, espero que fique boa.
- Tem que ver com o Anjo da Morte em forma de Seca
que tu me mostraste agora pouco?
- Não, isso aí foi só um susto. É que a Seca seria um desafio pra comunidade inteira, e isso me deixou ansioso na época,
não só eu... Mas minha história não é sobre isso não, minha história é sobre trabalhar
com o barro, moldar no barro.
- Moldar o barro, mas pra fazer o que, Peri?
- É que moldar no barro é como manipular as fezes,
sabe? Trabalhar os reprimidos da minha sexualidade amassando um monte de merda,
assim, muita bosta, muito cocô. [faz gestos - risos]
- Quero ler essa história aí depois.
- Ah, claro, Freud,
quando ocê tiver um tempo. Assim ocê valoriza meu trabalho um pouquinho, porque
o pouquinho de mais-valor que eu
investi ali me custou sangue, suor e lágrimas! [risos]
Não existe almoço de graça né, se
ninguém me paga pelo meu trabalho,
quem está pagando sou eu... Com todo ser humano é assim, o taxímetro tá rodando
pra todos.
- Sei, boa sorte, então, mano.
- Mas ocê é um artista,
não é, Freud? Ocê produz objetos,
quadros não é, e como é isso? Ocê consegue vender as peças?
- Consigo.
- ...
- É que já existe uma máquina, uma estrutura pra
absorver essas coisas, uma indústria de valorização de objetos e... [suspiro]
Mas é sempre uma corda bamba, instabilidade financeira total, com momentos bons,
outros ruins. Daí é preciso emprestar pros companheiros, pedir emprestado pros
amigos, parentes, etc... Mas essa é a vida que a gente escolheu.
- Mas ocê tem algum contrato, Freud? Algum contrato que te proteja?
- Nossa, parece que tu adivinhasse, bicho, pois meu
contrato com o Arquivo Humano está
pra terminar, e vou ter que sair do ateliê.
- Que pena.
- Sim, eu gosto tanto de lá. Também existe a
possibilidade das diretoras renovarem minha residência, mas não depende somente
delas. Eu tenho que ser avaliado por umas pessoas da Comissão de Quadrinhos, e esse pessoal é impossível de agradar, são
uns racionalistas ferrenhos, grandes cérebros...
- Comissão de
Quadrinhos? [risos]
- Sim, qual a graça? Eles são a instituição mais
respeitada dentro da faculdade de belas artes e... Ah tá, é que tu não sabes nada
do meu tempo, não é, Peri?
- Não sei não, sorry.
Tentei explicar minha situação pra Leaju
dá última vez e não pegou nada bem, melhor ficar quieto. Na verdade, sou uma
pessoa muito quieta, a maior parte do tempo eu estou quieto e não é todo mundo
que me aguenta, que tem paciência com isso.
- Eu não me importo, Peri. Não é todo mundo que mostra a um estranho tudo o que tu me
mostraste hoje, foste muito generoso, obrigado por me receber aqui, amigo.
- Amigo, sim! Um amigo... [cantando] Olá, como vai? [risos]
- Eu vou indo e
você, tudo bem? [cantando]
- Tudo bem eu
vou indo correndo pegar meu lugar no futuro, e você?
- Tudo bem, eu
vou indo em busca de um sono tranquilo, quem sabe... [risos]
- Mas sabe o que eu queria te pedir, Freud? Pra
perguntar se o S. Açorian não gostaria de vir aqui na Dip pra me visitar. Ele mergulha?
- Olha, que eu saiba pra algumas coisas ele é que nem
você assim, meio antiquado, mas eu posso... [barulho no estômago -
pum]
Nossa, desculpa mano, peidei! [risos] Mas isso é normal
aqui na projeção?
- Não é normal não...
- [pum - risos]
Amigo, peido pesa?
- Acho que não, amigo.
- [abrindo
a boca]
Vish, então me caguei, tô com piriri! Diarreia mesmo, preciso ir no banheiro
já.
- Mas não era pra você ter essas reações física aqui
não, Freud. Deixa ver, ocê bebeu
antes de mergulhar aqui?
- Se eu bebi? Bebi o quê?
- Ocê ficou bêbedo antes de mergulhar?
- Eu bebi um pouco... Quer dizer, bebi sim.
- Então ocê tem que acordar agora porque ocê tá pra
vomitar lá em cima. Vamos, dá o braço aqui, a gente tem que ficar no meio da
rua, não existe carro aqui. [andando]
- Não consigo mais segurar, merda...
- Não segura não, Freud,
põem isso pra fora! Não tem problema, só vira a cabeça pro lado e deixa descer,
mas vira a cabeça pra lá.
- Ai, que nojo, porra! [risos] Nossa,
eu sou o bêbado chato né, bêbado chato, hoje fui eu.
- Não tem problema, pelo menos ocê não saiu andando
por aí e me deixou aqui sozinha... Bi, agora tu deita no chão bem aqui, pronto.
Então, Freud, ocê precisa ir pela
saída rápida do programa, que é caindo pra cima. Ocê já caiu pra cima aqui na Dip?
- Claro que não! [deitando]
Ai, que merda, não gosto desses medinhos de montanha russa, eu passo.
- Mas precisa ser, Freud,
senão ocê pode se afogar no vômito, olha que coisa triste.
- Vamo lá, Peri,
me manda pra lá logo, e desculpa, mano.
- Descurpa eu,
irmão... Mas fala com o S. por
mim, por favor.
- [positivo]
Nisso
o mundo se inverteu, e Freud se desprendeu do chão como se
antes estivesse preso por cordas. Seu corpo se projetou no vazio, com braços e
pernas vergados pra traz. Mais adiante, no seu caminho, surgiu uma grande nuvem
de chuva, negra e carregada, e Freud
sumiu dentro dela com um clarão de relâmpago.
Caindo
do divã sobre o tapete felpudo, o rapaz fez uma careta e abriu os olhos,
empapado no próprio vômito. Atirando a tiara sobre a mesa ele se arrastou pra o
banheiro através do salão, prostrado como se vestisse uma capa de chumbo.
O
amplo banheiro lembrava um pequeno templo de mármore negro. A um canto, colada à parede de vidro que dava para o abismo, uma banheira de fundo azul borbulhava
com partículas florescentes. A água fumegante permanecia sempre na mesma
temperatura, por conta de processos bioquímicos. Freud tirou a roupa com os olhos meio fechados e rastejou para
dentro d’água como um jacaré. Em seguida começou certa efervescência, pois agentes
biológicos estavam devorando a sujeira que havia nele.
Freud parecia exaurido, e foi se
deixando escorregar pra dentro da banheira, até que a água lhe cobrisse a boca
e o nariz. O olhar triste procurou à esquerda e à direita, sem encontrar, enquanto
lágrimas furtivas brotavam. Nisso ele borbulhou, afundando completamente.
Um
minuto e meio depois O. emergiu das
águas com violência, em busca de fôlego, e seus olhos estavam vidrados, o peito
arfante. Em seguida teve um ataque de riso e se atirou de bruços na banheira,
fazendo grande pampeiro:
- [cantando] Mas não diga nada que me viu...[quá], e pros da pesada diz que eu vou
levando!
You have chosen not to have a
choice
[escolheste
não ter escolha]
- Desculpa te acordar assim tão cedo, consciência, foi mal. Mas está tudo bem
contigo? Como anda a vida? - perguntou Freud
para a lente de uma câmera móvel, suspensa por um braço mecânico. Ele havia
descido até o estúdio de entrevistas do Arquivo
Humano, e carregara o arquivo-consciência
de um antigo fazedor de filmes. O. tinha
os cabelos molhados e vestia um roupão preto aveludado. Estava sentado numa
velha cadeira de bar, com os braços e pernas cruzados diante do equipamento.
- Ah, eu vou
bem, estou bem, obrigado por perguntar, mas... - responde a voz vinda do
aparelho, enquanto o grande braço metálico se move para todos lados, apanhando
diversos ângulos de Freud.
- Estás tentando me reconhecer, não é verdade, senhor gewdner? É que sou muito parecido com
um amigo seu.
- É verdade,
verdade. - respondeu o aparelho enquanto sossegava, estabilizando o enquadramento
no rosto de O. Luan.
- Agora há pouco acabei de consultar o livro das mutações e ele me disse que
era favorável ver o grande homem, e
na hora que li tu me vieste à cabeça, diretor.
- Quem, eu,
grande? Acho que tu se enganou, não sou grande não, não tenho nem um e oitenta...
- É a altura exata, não te preocupes. Mas o oráculo
também disse que não é favorável
atravessar a grande água. O que tu achas que isso quer dizer?
- Aí tu me
pegou, porque acabou a água aqui em casa de manhã, veio até um povo da sanerj pra
olhar, mas até agora...
- O céu e a água
movimentam-se em sentido oposto: a imagem do conflito... Assim, em todas
as negociações, considera, cuidadosamente, o começo... Eu estou citando o
livro, diretor.
- Sei, eu
percebi, mas não sei como ajudar, não é a minha ficar interpretando muito as
coisas, só faço o que acho bonito, repetir o bem feito dos filmes que a gente
vê... Só que tu ainda não explicou quem tu és. De qualquer jeito tô feliz com a
atenção, sério mesmo, mas, quem és...
- [cortando]
Faz uma forcinha, diretor, eu sei
que tu tens uma coisa importante pra me dizer, ainda que não seja consciente
pra ti, só deixa vir. Pensa no ideograma 6: Sung.
- Sung é? Sunga?
Bom, por acaso estou usando sunga, será isso que tu precisa ouvir?
- Não exatamente, mas obrigado por tentar... [coça
o queixo - olhar pensativo]
- Então tu és
o...?
- Eu sou o Freud.
- O Freud?! [risos]
- É só um nome, eu garanto, não pergunte nada da
teoria porque não vou saber explicar.
- Sabe, não sei
se eu iria gostar de fazer análise não, minha ingenuidade é uma das coisas mais preciosas pra mim... [risos]
Ando muito filosófico esses dias porque tenho passado muito tempo sozinho, mas
isso são épocas né. Épocas de ficar sozinho, épocas de ter um monte de gente em
redor... Mas tu não está gravando isso, está? Bom, se estiver gravando tudo
bem.
- Não estou gravando nada não, não sou jornalista, sou artista, até onde eu saiba. E completamente
comprometido com minha pesquisa, o que quer dizer que estou ficando meio
maluco... Ah, por falar em pesquisa, tu conheceste uma amiga nossa, a pesquisadora, não conheceste? Ela veio
fazer uma entrevista contigo, fazer umas perguntas sobre uma arquiteta. O nome dela é L.
- Claro, como não, a moça albina! Ela me fez uma
impressão forte, sabia muitas coisas do meu trabalho. Mas tu diz que ela queria
saber de uma arquiteta é?
- As reais intenções dela era coletar informações
sobre essa arquiteta, tem que ver
com uma Seca que aconteceu durante a
ditadura, ou sei lá. Mas como a gente não tem a consciência dessa arquiteta aqui no nosso arquivo, ela
pensou que através de ti...
- Consciência no
arquivo, o que tu quer dizer com isso? Que arquivo é esse?
- Nada, esquece isso, tô viajando, bicho! Tomei tanto
ontem que acordei ainda bêbedo, uísque do bom, sabe? É que fui num casamento.
- Ah tá! E sabe
que a pesquisadora, quando veio aqui, me trouxe uma garrafa de
vinho de presente? Um merlot muito decente, diz que veio de longe...
- A L. te
deu um vinho é? [risos] Que danada, ela não
tinha me contado. Mas olha, diretor, eu também te trouxe um presente, por favor
aceite... [estende as mãos abertas com palmas pra cima]
- Uau, que lindo, o que é isso?
- Isso é um Caldeirão
de Bronze: Ting! Trouxeram lá das beiras do Rio Vermelho.
- Nossa, tu tem
certeza que quer me dar isso? Parece tão valioso. E o que será que tá gravado
nas laterais?
- Deste lado a gente tem o ideograma que representa o
número 50. E do outro a seguinte
frase, em letras douradas: Suprema boa
fortuna.
- Puxa vida, agradecido, boa sorte nunca é demais né,
muito obrigado mesmo, Freud. E eu que
não tenho nada aqui pra ti! Nem interpretar essas coisas malucas que tu me
falou eu consegui.
- Não tem problema, diretor, tu ainda vais me ajudar, mesmo que seja num momento
inesperado.
- Nunca achei
que um dia iria agradecer o Freud por ganhar um caldeirão dele de presente.
[risos] Parece coisa de
sonho isso, não parece não?
- Sim, a gente está sempre sonhando, diretor. Mas mesmo nos sonhos, a gente
sempre tenta fazer o melhor que a gente pode.
- Sem dúvida.
- Ah, faltou dizer que o caldeirão representa a superestrutura cultural da sociedade.
Profundo, não?
- Muito. [longo
bocejo] Mas viu, Freud,
eu estou enrolado com uns trabalhos aqui, montando um filme pra um amigo e...
Isso! Acabei de lembrar do meu encontro com a arquiteta! Quando a coitada da pesquisadora veio aqui eu não consegui
lembrar de nada, mas agora me veio à lembrança.
- Oh, por favor! Depois disso vou embora.
- Bom... Essa arquiteta não era só arquiteta, ela também era artista, só não lembro se atriz, dançarina ou escritora. Talvez ela costurasse, ou fizesse uns
vídeos, eu não lembro bem. Porque parece que faz tanto, tanto tempo? Enfim, mas
ela se mudou de são p. pro rio e estava com problemas de adaptação na cidade.
Se tu não sabe lidar com o jeitão do povo daqui as pessoas podem ser meio ariscas,
e ela tinha muita vontade de voltar. Como sou do sul, e não daqui, nossos
temperamentos bateram. A gente se conheceu depois da exposição de uma amiga,
numa mesa de bar, mas o ambiente estava meio carregado naquele dia, tinha uns
babacas disputando sobre alguma coisa, e a gente acabou saindo mais cedo, à
francesa. Fomos conversando no caminho pro metrô, e também pegamos o trem
juntos, porque a gente estava indo pro mesmo lado. Daí ela me explicou um
bocado de coisas da pesquisa dela lá, sobre valorização imobiliária, luta de
classes, expropriação de vulneráveis, tijolos macho e fêmea... E eu ouvi aquilo
do jeito que eu costumo ouvir essas coisas né, entendendo só uma parte delas,
porque não consigo entender tudo de tudo, sou meio perdido... Mas tu ainda está
me escutando, ô Freud?
- Claro, claro, isso é muito importante pra nós,
continua por favor, diretor.
- Aí, de
repente, ela tirou da bolsa uma obra de arte! Ela sacou lá um objeto da bolsa e
disse que era objeto de arte, e que ele tinha um irmão gêmeo em outro lugar,
daí eu olhei praquilo eu olhei e olhei...
- E que objeto era esse?
- Era uma
prancheta de compensado com uma folha de papel presa pelo grampo. No papel
tinha umas coisas escritas, que acho que eram uns nomes de umas organizações,
com siglas... Será que era isso?
- Tu não conseguiste ler bem, diretor?
- Posso te
confessar uma coisa, Freud? Eu levo as pessoas muito à sério, às vezes levo
elas mais à sério do que elas levam a si mesmas, pelo menos eu sinto isso. Daí,
quando ela disse que aquilo era uma peça de arte, minha vista turvou, as
palavras embaralharam, entende? Não lembro o que li e o que li não entendi.
- Nossa, tu tens ideia do tamanho do que tu estás me
dizendo?
- Não, por que?
Tu quer o contato dela, é isso? Acho que ela continua aqui no rio.
- Não precisa, precisa não, diretor, obrigado. Nossa, o Açorian
vai pular de alegria. Isso quer dizer que a arquiteta também conhecia a crítica,
e quem sabe até a professora... A L. também precisa saber, um campo novo
se abriu: luzes! Nós vamos sair
dessa. Pelo menos enquanto eu estiver aqui no Arquivo Humano a gente pode acessar as consciências mais sensíveis
à matéria e mapear aquela década inteira, inteira. Que bom que eu terminei de pintar, mas me sobram poucos dias até...
- Freud, tu tá
falando sozinho, não tô entendendo nada disso que tu disse aí, posso ajudar?
- Já ajudaste demais, diretor. Agora é hora de eu ir, te deixar com seus trabalhos, em
paz.
- Muito obrigado
pelo caldeirão, Freud.
- [levantando-se]
O que é isso, a satisfação é minha. Agora, diretor,
eu vou começar uma frase dividida em 10 etapas. As primeiras cinco etapas eu
vou dizer, e da sexta etapa em diante, tu o dirás. Depois de dizer as últimas
palavras, quando alcançares o número dez tu adormecerás profundamente.
Entendido?
-
Entendido. mas duvido que tu me faça dormir assim, só com frases, quero ver
e...
- [cortando]
O céu é um [1]... A terra é dois [2]...
O céu é três [3]...
A terra é quatro [4]... O céu é cinco [5].
- [voz
fraca] A terra é seis [6]... O céu é sete [7]... A terra é oito [8]... O céu é nove [9]... A terra é dez [10].
[braço
que segura a lente se abaixa e o diafragma fecha]
. . . . . .
. . . . * . . . .
. . . . . . . .
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